19 de junho de 2014

Buraco # 6. AAVV

São muitos os pensadores do político que apontam para o modo como os poderes instituídos, ou a hegemonia, exerce esse seu poder de forma insidiosa e praticamente absoluta por legislar igualmente sobre o possível espaço de dissensão dos seus próprios discursos. Isto é, sendo eles mesmos que criam as regras de quem pode falar, quando pode falar, como pode falar e sob que condições, não é de surpreender que todo e qualquer discurso que esteja fora desse campo de possibilidade seja visto como “não-discurso”. E há várias maneiras de o entender, apelidando-o de “radical”, “mal-educado”, “não conforme as regras da discussão democrática”, “insatisfeitos permanentes”, “desinteressados em contribuir de forma positiva ou construtiva”, “bota-abaixo”, e por aí fora. Mas se se apenas podem discutir os discursos principais e legais através das suas próprias regras, como se esperará alguma vez que possa haver um discurso verdadeiramente anti-hegemónico? (Mais) 

Contemporaneamente, talvez seja Jacques Ranciére quem explorou esta questão de uma forma clara e produtiva em termos da filosofia do político, quando distingue a “política propriamente dita” do que ele chama de “polícia”, a qual ele define, “por princípio, uma ordem dos corpos que define a distribuição entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que fazem com que a esses corpos sejam indicados exclusivamente um lugar e a um papel específicos. É uma ordem do visível e do dizível que faz com que certa actividade seja visível e outra não, que certa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído” (La mésentente. Politique et Philosophie). A polícia é portanto o exercício da política num sentido estrito e institucionalizado, com que a maioria dos cidadãos acaba por se sentir insatisfeito e até mesmo apático, o que resulta no esboroamente progressivo da democracia parlamentar e representativa, ao passo que a política propriamente dita é “o conflito sobre a existência de uma cena comum, sobre a existência e a qualidade daqueles que se fazem presentes” (esta tradução pode estar algo mal-amanhada). Por outras palavras, a política propriamente dita é a conquista mesmo de um (novo?) espaço de discursividade política, a da emergência de uma nova subjectividade política, a auto-criação de um sujeito político.

Sobre os 4 primeiros números da Buraco, já havíamos falado, e remetemos a essas considerações para compreender em que medida é que um projecto que aparentemente tinha surgido como uma quase concentrada vontade de “voltar à banda desenhada” de um grupo de artistas do Porto e convidados, acabou por se associar a movimentos de contornos explícitos de acção política propriamente dita, que foram alargando o espaço possível da voz e acção naquela cidade. Se todo e qualquer gesto criativo é sempre desde logo político, existem alguns porém que o são de forma mais explícita porque engajados em pormenores ou referências claras. Esse é o caso de Buraco.

Neste último projecto, a qualidade mutante em termos formais continua. Este número consiste tão-somente num “mix and match book”, em que várias imagens de rostos se encontram divididos em três lamelas recombináveis, criando-se uma multiplicidade de novos rostos recombináveis. A singularidade deste livro é que os rostos que compõem o livro são colhidos entre toda uma série de personalidades públicas portuguesas (um caso de um estrangeiro, mas até pelas suas aquisições, cidadão certamente honorário), sobretudo de agentes políticos do dito “arco da governação”, mas passando ainda por agentes financeiros, desportistas, apresentadores de televisão e outras personalidades famosas. Além disso, o colectivo resolveu colocar pelo meio rostos de alguns animais, do porco à raposa, passando pelo tubarão e o morcego. Cada lamela, do lado do verso, apresenta uma pequeníssima biografia, uma descrição e uma citação da personalidade.

O que é que a combinação dos rostos permite dizer? Uma ideia feita: a de que são todos “o mesmo”, provindo de um mesmo fundo, quiçá lodacento, informe, pouco singularizado, e que não obstante poderem ocupar vários espectros políticos e de interesses corporativos específicos, acabam por “remar na mesma direcção”. Será correcta essa visão, essa perspectiva? Não, de forma alguma. Mesmo que se queira entender que a responsabilização primeira do estado actual do país – financeira, política, cultural e estruturalmente – é atribuível de facto a quem exerceu funções governativas e efectivas, ou seja os partidos “do arco da governação”, existirá seguramente uma quota-parte de bloqueios, defesos de interesses, entraves e pressões que estariam nas mãos de outros poderes, digamos, de uma “esquerda alargada”, que não se encontra representada nestas personalidades. Mas o colectivo do Buraco não é uma entidade de quem se possa exigir algum tipo de equilíbrio “objectivo”, de “consensualidade” ou mesmo de “idoneidade política”. Isso seria esperar que fizessem precisamente o jogo que os discursos oficiais exigem para que “possam falar”. Bem pelo contrário, este é um fortíssimo e subjectivo “j’accuse” a que todo e qualquer cidadão tem direito, quanto mais numa situação em que se é confrontado com espaços cada vez mais apertados de possibilidade de discurso. Basta ver que a praça pública apenas admite os discursos de sempre, das pessoas de sempre, com os instrumentos de sempre, numa ilusão de “democratização e variedade de opinião”.

São os passos progressivos do colonialismo dos instrumentos demoliberais sobre o nosso tempo livre que vão fundando, cada vez mais, a sociedade de controlo preconizada por Foucault e Deleuze. Que resistência é possível? A fuga do jogo. O não-discurso lúdico. O desrespeito pela regra através da “gazeta” e da galhofa.

Num pequeno mas incisivo texto em Como se faz um povo, Silvina Rodrigues Lopes faz duras críticas a uma certa forma de filosofar sobre o “espírito português” a partir de exemplos literários e quase nefelibatas, em vez de perseguir experiências de um quotidiano mais sofrido, ao rés-do-chão. Discutindo sobretudo José Gil, Lopes escreve o seguinte: “Claro que os governos respondem às reivindicações que não satisfazem desvalorizando a força que as sustenta: essa desvalorização oscila entre o considerá-las subversivas e considerá-las inexistentes ou quase. Mas isso não implica a sua conversão em ‘não-acção’, em ‘brincadeira de crianças’, em ‘acção não-performativa’ [tudo termos de J. Gil]. Chama-se propaganda, manipulação da informação, etc.” (“Portugal sem destino”). Buraco 6 é seguramente um desses discursos estranhos de reivindicação – mas de quê, com estas “brincadeiras” de trocas de rostos? – que cairá na sua própria inexistência enquanto discurso, pequena palermice ou inépcia rapidamente esquecida – será que daqui a dez anos nos recordaremos de algumas destas personalidades, “moscas de um dia”? A “simples” colecção de rostos, mesmo que eles se troquem, acabam por tornar as acusações possíveis – corrupção, prepotência política, representação de poderes alheios à maioria da população, interesses corporativos, distracção, e mesmo estupidez – numa espécie de papa informe, enfraquecendo os argumentos a utilizar. Mais, o cruzamento com os animais, alguns dos quais com leituras simbólicas clássicas, pode ser visto como escolha óbvia, até mesmo um cliché, e potencialmente ofensiva e grosseira, tirando mais um furo nas tais “regras do discurso”. No entanto, sobre este último ponto, arriscar-nos-íamos a colocar-nos ao lado de Luís Cília que, na sua canção “Ofensa à lagosta”, que ao comparar a besta humana a esse crustáceo, não pretende ofender o animal ao coloca-lo lado a lado a criatura tão reles. Presumimos que o mesmo pedido de desculpas possa ser feito em relação à fauna apresentada neste livro, que não tem quaisquer responsabilidades pela “classe” (já o havíamos dito que esta é uma palavra despropositada neste caso em particular) política…

Essa “papa” ainda se torna mais significativa pela promessa que a capa faz, mas não explora no seu interior, por misturar objectos heteróclitos que parecem fugir à regra das escolha do interior: a coroa da Virgem Santa, os olhos de um famoso palhaço (literal, não figurativo), e a barba de um rosto de pedra (uma estátua, Adamastor?). Até que ponto seria possível estudar o informe dessa “classe” de sujeitos no interior pelo vastíssimo território de referências culturais portuguesas? Aumentaria ou diminuiria o humor? De resto, pensamos ter já dito esta ideia numa ocasião anterior, a de que a grande justificação pela qual o humor político é pobre em Portugal (existe, afinal, mais fortuna em fazer anúncios publicitários ou abandonar-se em jocosidades medíocres) se deve particularmente ao facto de que os próprios políticos se prestam às suas próprias caricaturas. Talvez seja essa a razão pela qual esta Buraco não faz qualquer gesto de humor: não existem intervenções textuais que não os “factos”, não existe manipulação das imagens (com excepção do seu corte), não existe nenhuma contextualização específica que convide a uma interpretação específica. É da responsabilidade (manual!) do leitor entender que significados emergirão da sua manipulação. 


Existiriam vários comentários a fazer em relação à forma como cada uma destas personalidades em particular, mas individualizá-las era, no fundo, dar-lhes uma importância desmedida ao papel que a longo prazo terão em relação ao país e à nossa cultura (que não é uma e uma, mas múltipla e sempre transformando-se). Gastar tempo a dar-lhes importância é, lá está, aceitar que sejam elas mesmas a impor as regras do jogo. A melhor subversão a isso é, então, jogar com o livro, apenas, despreocupadamente, como um brinquedo, com rostos divertidos e algo tolos.

2 comentários:

  1. Olá Pedro,

    Assim à primeira vista este é realmente um objecto heteróclito à BD: inclina-se para lados opostos à mesma, quer pelos aspectos mais óbvios, quer, talvez, pelos mais laterais àquilo que eventualmente interessará à BD que habitualmente costume encontrar no teu blogue, não obviamente, por critérios de classificação, mas pelo caracter menos subtil (também a mim me falta aqui subtileza :-) desta obra. Livros como este, contrariamente ao que se propõem, repetem o diálogo com as mesmas personagens com as quais convivemos no dia-a-dia através dos mass media e que perpetuam a moldagem/orientação da opinião publica pela produção ideológica de um tecido social virtual que estabelece entre as classes trabalhadoras uma aceitação das suas condições e do seu papel na sociedade. Este tipo de livros, na questão da escolha e manipulação dos personagens concretos, não difere, na minha opinião, dos movimentos opostos de propaganda, pois parece-me que, desde logo, travam ex ante quaisquer intenções de mera discussão a que se propõem, iludindo a profunda contradição entre a difusão e a real partilha entre as populações de uma correcta representatividade, em amplitude e identificação, dos seus líderes políticos, empresariais e espirituais e dos seus valores (morais) representativos. Mais que escolher os mesmos responsáveis à esquerda e à direita, discutir a política com arte não será questionar a presença recorrente de determinados "tribunos" e a gritante ausência de outros? Serão os politicos realmente importantes? Aparentemente não conseguimos fugir a essa armadilha, recordo que quando foi feita uma sondagem perguntando à opinião pública portuguesa quais eram as personalidades mais influentes nos 40 anos do 25 de Abril, à excepção do CR7, as respostas só encontraram nomes de politicos. Nem um escritor, um cantor, um empresário? Está o diálogo assim tão condicionado que quando assim dialogamos falamos da arte?

    Obrigado e Abraços,

    José

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  2. Caro José,
    Pois é isso mesmo o que encontro muitas vezes nos gestos mais interessantes: é de certa forma esquecer estas personagens e avançar para outras realidades que mais interessam. Ao entender uma realidade em que cada vez mais as pessoas pautam as suas opiniões, inclusive político-partidárias, através de "notícias da hora" no Facebook, ou afunilam o seu conhecimento sobre a cultura artística e literária pelo "tempo de antena" nos meios de comunicação mais corriqueiros, e a redução do património nacional - não numa óptica "nacionalista" ou "patriótica" mas "identitária" - ao apoio à selecção e a uma meia-dúzia de cromos, sinto cada vez mais uma espécie de soberba, quase inevitável. De facto, que importa o Pedro Costa, o Emanuel Nunes, o M.S. Lourenço, se temos o Rolando para todo o serviço? E como o esforço intelectual é substituído por "bater punho", não nos admiremos, de facto...
    Abraços,
    Pedro

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