20 de junho de 2014

Zona de desconforto. AAVV (Chili com Carne)

Não deixa de ser sintomático que as obras que acabam por ter um explícito valor de inscrição político da Chili Com Carne encontrem o seu lugar privilegiado na colecção Low Cost (povoada anteriormente por Boring Europa e Kassumai). Dizemo-lo dessa forma sublinhada, uma vez que acreditando que todo e qualquer gesto artístico e expressivo tem sempre uma leitura política, esta sua dimensão pode ser feita de forma velada, ingenuamente inócua, ou de forma confrontacional, como pensamos poder ler este gesto editorial, mais do que as histórias que o compõem. O cerne da colecção está relacionado com a ideia de viagem, e até com o género líquido e múltiplo da “banda desenhada de viagem”, que mistura a escrita diarística, a observação etnológica, o relatório de observações ora superficiais ora mais profundas, a interrogação do si e do outro, até a um ponto em que menos interessa talvez o espaço visitado do que a oportunidade de que essa deslocação permite para uma inquirição sobre a identidade e as suas implicações políticas. (Mais) 

Esta antologia reúne relatos de dez artistas, dizendo respeito a episódios das suas vidas passados em lugares que não os seus “berços” respectivos, quer estes sejam Portugal ou não (Christina Casnellie é norte-americana, Amanda Baeza é chilena-portuguesa, David Campos nasceu em França), o que abre desde logo as tais questões de identidade “nacional”. Até que ponto é que podemos, mesmo assim, encontrar neste grupo tão diverso um retrato diversificado do “ser português” (o qual pode admitir, como não?, pessoas de outras nacionalidades)? Muitas das experiências destes autores são relativamente simples e parte de um grão de privilégio cultural. Afinal de contas, a esmagadora maioria destas pessoas tem logo à partida uma actividade – precisamente aquela que lhes permite se expressarem, de uma forma mais ou menos original, mais ou menos criativa, mais ou menos dominante, através desta disciplina artística da banda desenhada – que os afasta de uma vivência mais socialmente atreita à experiência clássica do “emigrante”. Passar uns meses em residência artística nos anos 2010s não é o mesmo que ser passado para Espanha e depois para a França dos bidonville, fazer trabalho voluntário numa ONG num país africano não é o mesmo que ir bulir para as ex-colónias nos anos 1960. A cada experiência o seu peso e o seu papel na sociedade a que pertencem, sem moralidades ou hierarquias de valor, mas sem esquecer os “confortos” dos nossos tempos (desconhecemos que relação existirá, se é que existe, com o romance de J. Franzen).

Alguns partem em trabalho profissional, outros em trabalho académico, outros para estudar, outras talvez para uma breve visita. Não deixam todos eles, porém, de participar numa esfera de actividade a que se pode chamar “precária”, que se pode parecer uma promessa de mobilidade invejável, adaptabilidade contemporânea e flexibilidade inteligente – uma das razões pelas quais se sublinha a “independência” dos “trabalhadores independentes” – é na outra face da moeda, se moeda houver, profundamente desconcertante, desconfiada, descontínua e desconfortável. A visão da cultura como excedentária ou mesmo supérflua – e a da banda desenhada ainda mais, de uma forma exacerbada, como se nem merecesse esse papel -, não é mais do que uma das criações de dissimetria do capitalismo moderno, que olha para algumas funções sociais como mais importantes que outras, numa espécie de pirâmide de utilidades e mesmidade que apenas confirma a prepotência dos instrumentos que mesuram. Essa decisão de nomenclaturas e subsequentes inscrições jurídicas e fiscais não esconde a função disciplinadora e de construção de subjectividade que segue. Mesmo negando-a ou diminuindo o seu valor, essa atitude demonstra a total instrumentalização da cultura (pense-se na forma como se tem vindo a construir a imagem de Joana Vasconcelos enquanto “artista do regime” em detrimento do espaço de divulgação ou discussão de sejam quais forem outros praticantes das artes). Uma forma de resistência desse papel é precisamente, e faláramos sobre isto a propósito da Buraco, associando a arte a discussões onde as dimensões políticas (propriamente ditas) estão patentes.

E curiosamente, parte dessa natureza de sensibilidade à precariedade global moderna torna todos estes observadores particularmente atentos precisamente às outras precariedades com que se cruzam, sejam elas financeiras, sociais ou mesmo históricas (sobretudo no caso de Tiago Baptista). São esses os diálogos e trânsitos explorados e devolvidos ao ponto de partida.

Mas são apenas queixumes que se apresentam aqui? Tratar-se-ão de observações de uma espécie de antropologia de trazer por casa (com a excepção de Daniel Lopes, antropólogo de formação académica e profissão)? Meras impressões que todos temos quando nos vemos a habitar fora do ninho? Os exercícios quotidianos das descobertas das diferenças e, ao mesmo tempo afinal, dos traços identitários que tinham sido até esse momento invisíveis para nós mesmos? É mesmo verdade que só descobrimos sermos (conforme o caso) portugueses quando estamos no estrangeiro, europeus quando fora da Europa, ocidentais quando noutros blocos, “brancos” quando rodeados de outras cores, “a-normais” quando as nossas normas se diluem e evaporam?

Num texto que já havíamos citado do crítico de cinema Serge Daney (“La fonction critique”), este afirmara que deveremos estar atentos para que a fortíssima, decalcada presença do autor não deve ofuscar o facto de que por trás dele ou dela “e da sua rica subjectividade [“excesso de subjectividade”, acrescenta à frente] existe sempre, em última análise, uma classe que fala”. Sem denegrir de forma alguma os artistas aqui presentes – alguns dos quais revestindo-se de formas visuais/estruturais de grande conquista, como Amanda Baeza, Tiago Baptista, José Smith Vargas, Francisco Sousa Lobo, outros ganhando mais força na concentração narrativa, como David Campos, Casnellie, outros ainda pela forma como criam estruturas quase de cristal em que as observações se desdobram em associações cultural e politicamente intensas, como Daniel Lopes – é mais interessante e significativo o gesto conjunto que as histórias individuais em si mesmas (e presumimos que este projecto possa ainda ser continuado com outros artistas). Não saberíamos identificar que tipo de “classe” seria esta, de acordo com Daney, mas sente-se uma espécie de voz comunitária, não homogénea, mas que partilha uma direcção.


Ainda Daney, ao discutir a possibilidade de interpretar um dado filme de forma política, uma “leitura dupla” (no seu caso, lendo-se a época histórica da representação do texto e a época histórica da sua produção), uma leitura dupla que é não apenas inevitável mas igualmente necessária, permite uma maneira – talvez porque dessa forma respondendo à ideologia patente da sua época-de-produção - , de distinguir um artista reaccionário de um progressivo e de um revolucionário. Para Daney, o primeiro nega essa leitura dupla (“não há nada político no meu texto”, diria o artista), o segundo aproveita-a somente, e o terceiro assume a sua total responsabilidade. Os autores destas histórias a vermelho, nada inocente, seguramente, poderão usar diferentes intensidades dessa leitura dupla. Podemos lê-las como pequenos apontamentos autobiográficos ou impressões do “lá fora”, mas perder-se-ia parte do seu poder colectivo. Mas é na sua conjunção, e no seu gesto editorial total, que percebemos a responsabilidade assumida na identificação do desconforto apontado.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Nevermind, acabei de ler o "Buraco" anterior...

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  3. Olá,
    Ando a tentar escrever-te, mas todos os teus endereços têm falhado, os emails voltam atrás.
    Escreve-me para o email uma mensagem pessoal para que possa responder.
    Em todo o caso, obrigado por tentares assinalar as distracções (neste caso, acho eu, inexistente), é sempre bem-vindo!
    Pedro

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