2 de junho de 2014

Lune l'envers. Blutch (Dargaud)

Ao aproximarmo-nos deste objecto, criam-se dúvidas sobre o que será. Podemos encontrar neste novo livro de Blutch uma vontade em criar algo normalizado? Ou num desvio a uma certa ideia de normalização? Algumas das considerações de base para a leitura deste livro partem daquilo que já fora exposto a propósito de 978 e de Schtroumpfsnoirs/bleus, a que remetemos. Não se pode dizer que Blutch seja um autor de grande sucesso comercial, ainda que tenha incrementalmente angariado uma excelente recepção crítica, e Lune l'envers é uma espécie de pensamento em prática sobre um hipotético estado futuro da banda desenhada, em muitos aspectos de uma fantasia quase extrema. (Mais) 

Poder-se-ia descrever, numa primeira abordagem, esta história como uma ficção científica que abdica da parte da ciência para explorar o papel que a fantasia, o desejo e os complexos papéis que a introjecção e projecção psicoanalíticas têm na construção do sujeito, na própria condição de possibilidade da subjectivação. A “praga da fantasia”, como discutiria Slavoj Zizek.

A história segue as peripécias de duas personagens principais. Por um lado, Lantz, um autor de uma famosa série de banda desenhada, de estrondoso sucesso comercial (mas de que jamais vemos o interior): Le Nouveau Nouveau Testament. O papel que esta série tem na sociedade deste livro é idêntica à de certos “produtos” comerciais na área da música e do cinema popular, ou mesmo de alguma literatura (pense-se em Harry Potter), capaz de mover massas e de colocar a sua editora nos píncaros do interesse social, a Médiamondia (que é uma espécie de piscadela de olho ao conglomerado que detém a Dargaud, e que recorda o mesmo jogo que Ari Folman faz com a “Miramount” em The Congress, de que falaremos em breve). Histeria e filas de potenciais compradores, tudo espera pelo próximo número. Mas Lantz sente-se defraudado, cansado com o progresso da série, e a editora resolve procurar uma possibilidade de substituição do autor. O próprio Lantz é substituto do autor original, e encontra-se num momento em que não sabe como responder às exigências comerciais do conglomerado. Por outro lado, a segunda protagonista é Liebling, a rapariga que ele amava em jovem, a sua musa, mas também aquela que afinal funcionará como a substituta fantasmática da obra.

Logo à partida, este jogo parece ser um comentário sobre que papel é que a indústria de continuidade de personagens tem na tradição francesa, algo que pode ser pensado à luz da continuação de Spirou, Blake & Mortimer e de Astérix, e quer das notícias da futura continuação de Tintin e a anunciada (como boato, notícias séria?) repescagem de Tif & Tondu pelo próprio Blutch. Em que medida é que há um sacrifício autoral em nome da continuidade da fantasia? Qual o grau de mescla entre os processos criativos em França (e Bélgica) e os Estados Unidos no mundo da banda desenhada? Qual o papel que esta forma de arte, em declínio de vendas gritante, se reserva num futuro inter-, senão mesmo trans- ou pós-mediático? Além disso, e sem revelar em demasia a intriga, que é algo complexa nas suas ligações entre as personagens e na organização temporal, algo metaléptica – há uma possibilidade de que a história “quebra” paradoxalmente o desenvolvimento cronológico da vida das suas personagens, situação irresolvida -, o trabalho de Liebling é feito através de um terrível sacrifício pessoal. Ela perde a vista para dar continuidade à obra – um preço idêntico ao de Odin, Homero, Tirésias, ou outras figuras que equacionam a cegueira física à visão transcendente. Apesar de Liebling não o desejar sequer, ela acaba aprisionada a um dispositivo chamado “Eurifice”, espécie de máquina orgânica que não deixa ver, mesmo aos que vêem, o que ela produz no seu interior, mas envia directamente aos editores as pranchas acabadas no novo álbum.

Nunca aprenderemos como funciona, jamais veremos os seus mecanismos interiores. E como deveremos entender o trocadilho do seu nome? É para recordar a descida aos infernos de Orfeu, outro criador que teve elevado preço pela sua prática? Deve-se aos seus orifícios somente? É um computador cada vez mais frio e distante na sua relação com o acto criativo (uma disposição e leitura que é possível, mesmo que discordemos da sua lição moral)?

Existem outras máquinas, processos de trabalho, de comunicação e habitação que apontam para um hipotético futuro, mas onde a tecnologia, menos do que uma extensão dos nossos mecanismos hodiernos, passasse por um qualquer pequeno pesadelo orgânico, mágico e mais dado às impressões e sensações do que a um espartilhamento das funções. O autor, em várias entrevistas, explica como é que cada um desses objectos nasce das suas memórias nostálgicas ou projecções, mas a identificação é menos importante do que o modo como elas permitem que se entre no tal espaço de fantasias. E voltando a Zizek, o que importa nessa lição não é tanto o facto de que a fantasia cria uma ilusão que nos impede de ver a (suposta) realidade, mas de ela mesma influi na construção da realidade vivida e experienciada. Sem ela, não há “realidade”. Como escreve o filósofo: “...a fantasia está do lado da realidade,... ela sustém o 'sentido da realidade' do sujeito. Quando a moldura fantasmática se desintegra, o sujeito atravessa uma 'perda de realidade' e começa a aperceber-se da realidade como um universo 'irreal' de pesadelo, sem qualquer fundação ontológica sólida. Este universo de pesadelo não é uma 'pura fantasia' mas, bem pelo contrário, aquilo que remanesce da realidade depois da realidade ficar privada do seu suporte na fantasia”. Lantz, que se desdobra numa versão jovem – o amante de Liebling e aspirante a autor – e uma versão velha – o autor experiente, maduro e falhado, encontra-se precisamente num processo de desubjectivação que ocorre pela quebra do seu contrato na construção da fantasia do Nouveau Nouveau Testament e por a sua “musa” deixar de o ser para dominar os próprios instrumentos de produção. Ambos, possivelmente, os últimos limites que deveriam ser atravessados.

Numa das primeiras imagens que circulou, previa-se que a maquete da capa recuperasse aquela da antiga colecção Histoires fantastiques, também da Dargaud. Ora, se esta colecção teve muitos títulos algo olvidáveis, também contou com outras coisas que, caindo num ou outro perigo datado, como os casos de Molterni, Druillet, Bilal, Cothias, etc., contribuíram de uma maneira decisiva para a fabricação de uma ficção científica com um travo muito particular. Essa colecção, assim como a Métal Hurlant nos seus primeiros anos, e a Terrain Vague e Losfeld como precursoras, haviam feito surgir uma banda desenhada que pouco tinha a ver com as fórmulas narrativas, épicas e heróicas pós-Star Wars, mas antes com o espaço que a ficção científica permitia para inquirições a nível psicológico, religioso, existencial, do ser humano. O diálogo pretendido assim não se perderia.

E na verdade, se considerarmos que Blutch é, no fundo, o maior herdeiro vivo de Jean-Claude Forest, que também auscultou os limites desses géneros, vislumbraremos a passagem que a banda desenhada de ficção científica permite para o terreno do mais verdadeiro e sentido neo-surrealismo. Se por um lado, não deixa de existir uma espécie de velocidade, leveza e centralidade na intriga que o torna quase um “clássico” - e nesse sentido, apetece unir este livro a Aama de Frederick Peeters ou ao óptimo Les derniers journs d'un immortel de Fabien Vehlman e Gwen de Bonneval – por outro a parte de onírico e denso é mais eficaz que Debeurme, uma vez que Blutch consegue criar momentos de uma grande emotividade, por vezes até de forma desligada da intriga. É o seu traço aparentemente rápido, de esquisso, que moldando uma expressão, uma posição do corpo, uma distribuição de papéis, faz brotar essa intensidade. E a dimensão da sua assinatura gráfica, se nas pranchas originais se compreende como molda figuras e espaços e brancos, tem nas cores temerárias e sólidas de Isabelle Merlet um excelente complemento, que tem resultados mais felizes do que trabalhos anteriores de Blutch. Além de Merlet, o autor conta ainda com a participação de Bertrand Mandico, que providencia as pinturas livres e “monstruosas” criadas por Liebling, também elas fruto de uma espécie de transformação orgânica das formas (ver abaixo).

Num cômputo final, talvez descobriremos que todos os livros de Blutch abordam o próprio métier e filosofia de acção da (sua) arte. Se em Blotch e aqui a banda desenhada de encontra no centro do foco, tornando tudo isto num exercício metalinguístico, não é por estar o cinema ou a dança ou o jazz no foco de outros livros que a questão de dilui ou perde a sua eficácia (e a banda desenhada nunca está longe)... E há mesmo nesta história um “Blütch”, assistente de edição, algo fuinha e instrumentalizador das relações entre as outras personagens.

A máquina a que nos referimos acima, a Eurifice, recorda o conceito de Antonin Artaud, o do corpo sem órgãos. Esta noção foi exposta pela primeira vez no texto radiofónico do actor, “Pour en finir avec le jugement de dieu”, que Blutch cita obliquamente no seu “Pour en finir avec le cinéma”. Para Artaud os órgãos são totalmente inúteis, pois criam uma hierarquização no interior do corpo humano que permitem a entrada e assunção de Deus numa posição superior. Houvesse um organismo total, holístico, e não haveria espaço para Deus, e todos os outros poderes que dele derivam. É depois Deleuze quem recupera e reaviva essa noção, e quem escreve: “O juízo de Deus arranca [o corpo] da sua imanência e torna-o um organismo, um significado, um sujeito”. Um organismo tem uma identidade, está fechada nela. A máquina, ou melhor, na terminologia de Deleuze, o “mecanismo” de Lune l'envers é uma extensão monótona desses mesmos órgãos, até ao ponto que não se especializam em qualquer um única função – como é que desenham, como é que produzem banda desenhada? - , mas são antes elas que impõem um controlo sobre o homem – a sua escravatura no processo de produção, e a produção da obra acabada e consumível.

Para Deleuze, “máquina” é antes um termo reservado para apenas as conexões entre as coisas: não e feita de nada nem tem propósito específico, e tampouco escala ou identidade. Seja ao nível do indivíduo, ou antes dele, ou em grupos de indivíduos, a máquina são as próprias ligações, onde ocorrem movimentos excessivos, e de onde parte toda a liberdade política.


Mesmo que, no interior da intriga, Lantz e Liebling não atinjam a “felicidade”, é precisamente na ambivalência dessa resolução que se encontra o próprio excesso (reverso?) de Lune l'envers, e é isso o que o torna um livro que exponencia a liberdade proporcionada pela banda desenhada.
Nota final: agradecimentos a X. L., pelo empréstimo do livro; todas as imagens colhidas da internet.

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