7 de junho de 2014

Sandman, Overture # 02. Neil Gaiman e J. H. Williams III (Vertigo).

Continuando o exercício explicado quando do primeiro número desta série, navegamos nas águas incertas de uma ideia fechada, do selo que é permitido pela leitura global de um texto. Ao auscultar as impressões ao longo do rio, sem a ideia de toda a sua cartografia final, que nos permitira apelidá-lo de “recompensador”, “cruel”, “célere”, ou outra leitura, esperamos encontrar algumas das suas pequenas enseadas ou escolhos. (Mais) 


 Em termos estruturais, verifica-se desde logo aquilo que se esperaria, que é uma breve procissão das várias personagens que compuseram a paisagem variada da saga de The Sandman, mas essas presenças têm um peso equilibrado entre a mera cameo para gáudio dos fãs como um papel importante na narrativa – isto é, em que é fulcral que sejam essas personagens a desempenhar esse papel. E, além disso, é também de salientar como elas se desdobram de alguma maneira. Acima de todas está Mad Hetty, que mesmo no seu breve delírio durante o diálogo com o Sandman-Daniel, vai revelando algumas pistas da sua backstory. Mesmo que esta não seja jamais desenvolvida numa história própria, torna-a mais trágica ainda do que já era. É também evidente que a presença do novo avatar de Morfeus, o dos tempos contemporâneos, e a sua busca pelo “relógio”, terá um preponderante papel ou poder explicativo para a aventura do Sandman pretérito. Esse estranho relógio, cuja face revela símbolos indecifráveis, e se derrete como os pintados por Dali, assim como todo o discurso de Daniel em torno do tempo e da sua natureza, fazem recordar aquele brevíssimo e belíssimo texto de Julio Cortázar, “Preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio” (em Histórias de cronópios e famas), em que não apenas se fala do relógio, o mecanismo, como um “pequeno inferno florido”, que poderia ser perfeitamente uma descrição do perigo no qual Sandman cairá, provavelmente, ou já está lá caído, como ainda do facto de que o tempo não nos é tanto oferecido como nós a ele, como quem fala de um sacrifício. Essa é talvez uma forma de entender Overture.

Desta feita, grande parte deste número – 13 de 24 pranchas – centra-se no Sandman a falar com si próprio, ou melhor, o avatar “humano-terrestre” (central à perspectiva que resultou na saga conhecida) discutindo com tantos outros, e descobrindo-se assim, ou desdobrando-se, sobre o que os diferencia e aproxima. É um mecanismo complexo narrativo este que Gaiman inventou (ainda que bebendo de várias tradições mitográficas, sem dúvida), mas a um certo ponto também se pode encontrar algum grau de repetição, mas que é explorado, até se pode dizer, com efeitos cómicos. Este Sandman é ainda aquela criatura sem humor e sem humildade que encontramos no “pretérito contínuo”, antes de todas as lições que aprenderá ao longo de The Sandman. Se todos os livros anteriores nos mostraram uma espécie de Bildungsroman do Sandman contemporâneo, como é que de soberano arrogante se tornaria uma criatura mais amena e emotiva, mesmo que isso lhe custasse caro (o assassinato do filho, a destruição de alguns companheiros, e a sua própria morte-transfiguração), Overture apontará decerto para a personagem menos empática que fora capturado por Burgess (que é o corolário narrativo desta nova série, como sabemos), mas talvez revele mais detalhes da “família”.

Seja como for, esta estrutura de prismas não deixa de ser uma forma de poder introduzir algum grau de reflexividade cómica. Daí que ele se desdobre no final na versão felina, e que pode servir de companheiro nos passos que se adivinham nos próximos episódios.

O desdobramento, portanto, continua e em várias direcções. Mesmo que os avatares apareçam nesta narrativa para serem de imediato apagados – para que possamos compreender qual o perigo gravoso que espera pelo protagonista -, essa escrita efectivamente estende o universo de referências, a esmagadora maioria das quais afecta a todo um imaginário da história humana (egípcio, gigante medieval, à Feiticeiro de Oz, etc.) e até mesmo das tradições da banda desenhada norte-americana, que Williams imita em pormenores estilísticos (um “super-Sandman”, um Sandman kryptoniano, outro “Monstro Marvel”, etc.). A primeira que importa sublinhar é a que bebe dos mitos inventados por Lovecraft: vemos aquele que é suposto ser a “primeira” das manifestações de Sonho pelos seres que vivem nos interstícios do espaço e esperam, pacientes.

Gaiman, tendo estudado ou aproveitado ideias do Talmude, do Midrashim e de toda a pseudopigraphia judaica, e acima de tudo, o edifício cabalístico, introduz aqui a estrutura do universo tal como havia sido proposta no Zohar. Gaiman não faz uma exposição desse mundo de uma forma enciclopédica – Moore fá-lo em Promethea, mas como já dissemos noutras ocasiões, essa outra obra é uma enciclopédia – mas apenas aproveita uma sua ideia de forma transversal e, mais importante, personificada. É claro que, de acordo com a sua estratégia de ambivalência e incompletude da informação, a figura com quem Morfeus se encontra é tanto chamada de “Glória” (um dos sephirot) como de “Shekinah” (que tanto levanta a problemática questão do género da Presença Divina como se refere a uma problemática espacial).

Se Gaiman e os seus colaboradores “brincaram” com os deuses vezes sem conta, enquanto personagens das histórias e pequenos dramas, numa extensão, de resto, de estratégias há muito presentes na banda desenhada mainstream da DC e da Marvel, nunca houve uma decisão acabada sobre a estrutura definitiva e final neste pequeno universo de referências. Em Season of Mists temos a única referência ao “Deus” judaico-cristão, absoluto e expansivo, e sempre através de todos os seus prolongamentos demiurgos, sejam os anjos ou Lúcifer. O entendimento do universo de acordo com os ensinamentos de Isaac Luria, no seu uso aqui, seriam plásticos o suficiente para englobar os conceitos inventados por Gaiman, o seu panteão fictício (ou melhor dizendo, “literário”, “banda desenhístico”, já que fictícios são todos os panteões).

A um só tempo, a expansão desse universo de referências é feito igualmente juntando tudo aquilo que já sabemos e que pertencerá ao “futuro” de Sandman. As duas grandes peças centrais deste número em particular é entender que o perigo e o combate central deve-se à emergência de um vortex dos sonhos (cujo novo avatar aparecerá no arco que lemos antes, The Doll's House) e que existirá um hipotético “pai” dos Infindos, ou The Endless.


A grande “magia” de Gaiman continua a encontrar-se na forma como atribui responsabilidades e consequências a uma escala relativa, pessoal e até quase mundana, a personagens que nada têm de mundano, já que são personificações de forças cósmicas quase incompreensíveis e inanalisáveis com os actuais instrumentos científicos, sendo apenas a teologia, a filosofia e as artes aqueles que nos permitem, não tanto uma aproximação directa, como uma dança em seu torno e capaz de revelar, nos seus movimentos elegantes, algum reflexo dessa hipotética realidade. Inventada, citada ou reformulada, pouco importa, já que tornar-se-á sempre um texto a ler. 
Número 3.

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