14 de julho de 2014

Little Tommy Lost. Cole Closser (Koyama Press)

Desprevenidos, poder-se-ia pensar que este livro era uma reedição de uma qualquer tira obscura dos anos 1920, num formato pequeno e barato que recorda as da Fantagraphics dos anos 1990 (Dickie Dare ou Pogo). É claro que o selo da Koyama Press nos apontaria de imediato para uma qualquer tendência contemporânea, mas o interior do livro não tem nada a ver com as abordagens ultra-estilizadas de um Michael DeForge, Hellen Jo ou dos Tin Can Forest. Mas de que se trata Little Tommy Lost? Um exercício de imitação? Um pastiche? Uma homenagem? (Mais) 
Em termos visuais, estruturais e até, como veremos, materiais, Tommy parece ser uma tira feita de acordo com os princípios estilísticos e narrativos de um época passada e praticamente extinta. Como aponta a leitura de Benoît Crucifix, cujas ideias repetiremos aqui, as referências visuais de Closser bebem dos mais variados clássicos da banda desenhada norte-americana de jornal das primeiras décadas do século XX: ponto por ponto, ingrediente por ingrediente, encontraremos aqui elementos cujas raízes estarão em Little Orphan Annie, de Harold Gray, em Gasoline Alley, de Frank King, no Dick Tracy de Chester Gould, no Captain Easy de Roy Crane e no Popeye de Segar, mas também, ainda que de forma mais lateral, no Little Nemo de Winsor McCay. Acompanhamos as aventuras de um pequeno menino, que perde os pais num mercado e é rapidamente “recrutado” para um estranho negócio onde crianças trabalham com máquinas numa fábrica possivelmente ilegal, sob as ordens de um clone de McScrooge, Mr. Greaves, e também sob a ameaça de ser levado por uma ainda mais implacável personagem, Cromwell. As crianças que são levadas por este parecem ter destinos ainda mais cruéis. O autor, no prólogo, pede-nos que leiamos as tiras num ritmo diário, mas não tendo elas jamais tido essa existência na realidade, e seguindo a tendência da leitura “em livro”, acabaremos por ler rapidamente, e de forma célere, os acontecimentos da vida de Tommy. E descobrimos que a máquina avança inexoravelmente em frente, sempre fazendo-o tombar no próximo desenvolvimento, sem tempo para criar uma espessura do tipo psicologizante.

Com efeito, e ainda seguindo a leitura daquele crítico, Little Tommy parece estar menos integrado nas tendências “literárias” dos nossos dias do que num trabalho de recuperação do “serial” de aventura dessas mesmas épocas. Não encontraremos aqui uma exploração mais profunda das personagens para além do que é necessário para o avanço da narrativa. Apesar de termos indicado uma certa velocidade de leitura, uma vez que Tommy respeita toda uma série de fórmulas, talvez pudéssemos antes dizer que há um desenvolvimento lento, o que não é paradoxal: é apenas uma dimensão que avança, e onde nenhumas outras se movem. Não faria sentido, por exemplo, querer colocar perguntas que tivessem a ver com a racionalidade ou a lógica do mundo real, uma espécie de pesquisa da história sobre este pequeno universo diegético – como ocorre, por exemplo, nos livros recentes de Spirou, de Émile Bravo e Schwartz e Yann, que “re-colocam” essa personagem no tecido da História -, mas aceitar a sua construção em torno dessas tais fórmulas. Como se se tratasse de um espectáculo de "números", todos expectáveis: o rival terrível, a transformação do rival, a descoberta do animal-companheiro, o plano de fuga, o amigo que tomba, etc. Que, aliás, se anunciam se tornarem ainda mais espectaculares no segundo volume, com Tommy perdido nos altos mares.

O pastiche é, como se sabe, uma da formas de intertextualidade, em que o autor procura, através da manipulação de aspectos formais, recriar um determinado modelo. Há menos uma criação de paródia ou de citação e desvio, do que uma tentativa em recuperar toda uma estrutura. Neste caso, a nível figurativo, estilístico, estrutural, narrativo e até mesmo cromático. Já nos havíamos deparado com o autor em vários outros curtos trabalhos em antologias, jornais, e uma consulta do seu site permitirá compreender que os interesses de Closser estarão próximos de um R. Sikoryak, mas em vez de querer provocar curtos-circuitos entre “forma e conteúdo”, Closser está mais interessado em seguir de perto estilos reconhecíveis de autores clássicos para os recuperar e relectrificar com novas histórias. Se algumas das suas outras peças parecem mais irónicas e veiculando histórias modernas, Little Tommy Lost aparente querer perder-se na ilusão de um tempo perdido.

Mas isto não significa que não haja uma qualquer “distância” do mundo estilístico que espelha. Certo, não se colocam questões de ordem social, política ou moral significativas. O trabalho infantil, esta espécie de escravatura, a violência física e os abusos de poder, são o pão nosso de cada dia, e vistos agora, no nosso tempo, há suficiente carga crítica para os compreender como problemáticos. Mas eles não são desmontados em si mesmos na história, a não ser pela ingenuidade de Tommy. Essa distância existe através das citações visuais, que o leitor historicamente informado saberá detectar e compreender que tipo de força exercerá sobre esta nova história. É nesse sentido que este livro é menos pastiche do que homenagem, mas uma homenagem que obriga o leitor a uma participação activa de re-construção. E há momentos de ligação directa: a própria personagem, na página que corresponderia ao Domingo do Dia de Acção de Graças, e onde um imenso peru invade as tiras, confessa que esta ideia “já foi feita, e melhor!”, como citação directa e auto-derisória por comparação a uma página de Nemo (de 1905).

Não obstante, a ilusão prossegue. A estrutura do livro mima precisamente o ritmo diário das publicações em que se baseia, com seis tiras diárias seguidas de uma “meia-página” a cores, com várias tiras ou mesmo uma composição unitária, a dita “página de Domingo” (Sunday page). A atenção do autor é dedicada, pois nestas páginas maiores ele cria estruturas que permitem a possibilidade de “decepar” a primeira tira, com o título, sem que se perca o sumo da narrativa dessa mesma tira, como acontecia, por exemplo, com as tiras dominicais dos Peanuts de Schulz. Serão menos espectaculares que as originais de McCay, King, Feyninger e Herriman, é verdade, mas se imaginarmos que estes são os primeiros “meses” da tira, poderemos também imaginar que o melhor estará para vir... Para mais, essas mesmas narrativas dominicais não adiantam grande coisa à história central em continuidade, uma vez que muitos leitores “diários” dispensavam a compra do jornal ao Domingo, tal como outros leitores (menos) comprariam somente ao Domingo. Este tipo de diferenciação de leitores é precisamente o que permitia uma abordagem diferente entre as tiras diárias e as páginas dominicais de Wash Tubbs/Captain Easy de Crane (curiosamente, a obra que terá fundado a ideia de “tira de continuidade”, escapando da anedota diária ou gag simples) e de Gasoline Alley.

Existem outros pormenores gráficos que corroboram essa ideia. Ao contrário das novas edições do património da história da banda desenhada (Popeye, Dick Tracy, Peanuts, PríncipeValente, etc.), não há uma procura por homegeneidade gráfica das páginas no interior, mas um sublinhado de materialidade das imagens muito particular. Se se olhar com atenção, aperceber-nos-emos que as tiras parecem impressas num papel de jornal: vemos manchas provocadas pelo manuseamento, sujidades e o típico amarelecimento do tempo, vemos letras ou anúncios impressos “do outro” lado da folha de papel, etc. Além disso, cada tira e página de Domingo parece estar colada sobre a folha imaculadamente branca do próprio livro que temos nas mãos, ao ponto de vermos uma levíssima sombra sob as tiras, dado essa ideia de volume, criando a ideia de se tratarem de uma colecção privada, e não tanto de um projecto editorial. Talvez compreendendo tratar-se de uma ilusão criada por ferramentas digitais não a destrua propriamente mas aumente a surpresa do esforço de Closser em criar esta materialidade, que informa o próprio texto.

E tudo parece caminhar de facto para a possibilidade de relançar esta forma.
Nota final: agradecimentos a Benoît Crucifix, pelo empréstimo do livro. 

2 comentários:

  1. Olá Pedro,

    É sempre muito bom (tão simples quanto isso) que alguém nos recorde que em sonhos de criança a nossa casa foi engolida por um gigantesco peru pré-atómico ou que fomos uma vez raptados por um selenita para dentro de uma lua sardónica. Confesso-te que ainda sinto o mesmo prazer fundamental, o mesmo de abrir os meus primeiros livros de BD (de qualidade muito duvidosa), sempre que folheio as edições gigantes do Little Nemo da Daily Press (a soberba desta posse não é para ser escondida :-). Do que recolho das tuas palavras, o valor da obra que apresentas hoje reside em grande parte do reviver do passado em Slumberland e noutras paragens distantes no tempo e encontrar espaço para a divulgação de um passado que esquecido se apresenta novo. Como nunca deixará de ser...

    Obrigado e Abraço,

    José Sá

    P. S.: Mais uma vez surpreendido pelas tuas "connections" no meio da BD... até os irredutíveis habitantes de uma certa aldeia gaulesa te emprestam livros :-)...

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  2. Provavelmente haveria mais a dizer sobre o livro, mas uma vez que a minha verborreia não é apreciada por todos (mas que, bem vistas as coisas, me leva a perguntar porque a lêem e comentam), tento diminuir as entradas. Em termos gerais, é isso mesmo, o prazer em ler este livro é que tenta recuperar um certo prazer ante-diluviano, ou pré-atómico, o qual, ingenuamente, deseja apenas "um prazer simples" (mas talvez cego para toda uma série de outras coisas). O livro de que falei hoje, de Trippe, cumpre a mesma coisa, de modo diferente.
    Quanto às conexões, bom, neste momento estou na Bélgica, a estudar, e há outros cruzamentos. Não se lhes posso chamar "gauleses", porém, ou há batata!
    Pedro

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