Desprevenidos,
poder-se-ia pensar que este livro era uma reedição de uma qualquer
tira obscura dos anos 1920, num formato pequeno e barato que recorda
as da Fantagraphics dos anos 1990 (Dickie Dare ou Pogo).
É claro que o selo da Koyama Press nos apontaria de imediato para
uma qualquer tendência contemporânea, mas o interior do livro não
tem nada a ver com as abordagens ultra-estilizadas de um Michael DeForge, Hellen Jo ou dos Tin Can Forest. Mas de que se trata Little
Tommy Lost? Um exercício de imitação? Um pastiche? Uma
homenagem? (Mais)
Em
termos visuais, estruturais e até, como veremos, materiais, Tommy
parece ser uma tira feita de acordo com os princípios estilísticos
e narrativos de um época passada e praticamente extinta. Como aponta
a leitura de Benoît Crucifix, cujas ideias repetiremos aqui, as
referências visuais de Closser bebem dos mais variados clássicos da
banda desenhada norte-americana de jornal das primeiras décadas do
século XX: ponto por ponto, ingrediente por ingrediente,
encontraremos aqui elementos cujas raízes estarão em Little
Orphan Annie, de Harold Gray, em Gasoline Alley, de Frank
King, no Dick Tracy de Chester Gould, no Captain Easy
de Roy Crane e no Popeye de Segar, mas também, ainda que de
forma mais lateral, no Little Nemo de Winsor McCay.
Acompanhamos as aventuras de um pequeno menino, que perde os pais num
mercado e é rapidamente “recrutado” para um estranho negócio
onde crianças trabalham com máquinas numa fábrica possivelmente
ilegal, sob as ordens de um clone de McScrooge, Mr. Greaves, e também
sob a ameaça de ser levado por uma ainda mais implacável
personagem, Cromwell. As crianças que são levadas por este parecem
ter destinos ainda mais cruéis. O autor, no prólogo, pede-nos que
leiamos as tiras num ritmo diário, mas não tendo elas jamais tido
essa existência na realidade, e seguindo a tendência da leitura “em
livro”, acabaremos por ler rapidamente, e de forma célere, os
acontecimentos da vida de Tommy. E descobrimos que a máquina avança
inexoravelmente em frente, sempre fazendo-o tombar no próximo
desenvolvimento, sem tempo para criar uma espessura do tipo
psicologizante.
Com
efeito, e ainda seguindo a leitura daquele crítico, Little Tommy
parece estar menos integrado nas tendências “literárias” dos
nossos dias do que num trabalho de recuperação do “serial” de
aventura dessas mesmas épocas. Não encontraremos aqui uma
exploração mais profunda das personagens para além do que é
necessário para o avanço da narrativa. Apesar de termos indicado
uma certa velocidade de leitura, uma vez que Tommy respeita
toda uma série de fórmulas, talvez pudéssemos antes dizer que há
um desenvolvimento lento, o que não é paradoxal: é apenas uma
dimensão que avança, e onde nenhumas outras se movem. Não faria
sentido, por exemplo, querer colocar perguntas que tivessem a ver com
a racionalidade ou a lógica do mundo real, uma espécie de pesquisa
da história sobre este pequeno universo diegético – como ocorre,
por exemplo, nos livros recentes de Spirou, de Émile Bravo e
Schwartz e Yann, que “re-colocam” essa personagem no tecido da
História -, mas aceitar a sua construção em torno dessas tais
fórmulas. Como se se tratasse de um espectáculo de "números", todos expectáveis: o rival terrível, a transformação do rival, a descoberta do animal-companheiro, o plano de fuga, o amigo que tomba, etc. Que, aliás, se anunciam se tornarem ainda mais
espectaculares no segundo volume, com Tommy perdido nos altos mares.
O
pastiche é, como se sabe, uma da formas de intertextualidade, em que
o autor procura, através da manipulação de aspectos formais,
recriar um determinado modelo. Há menos uma criação de paródia ou
de citação e desvio, do que uma tentativa em recuperar toda uma
estrutura. Neste caso, a nível figurativo, estilístico, estrutural,
narrativo e até mesmo cromático. Já nos havíamos deparado com o
autor em vários outros curtos trabalhos em antologias, jornais, e
uma consulta do seu site permitirá compreender que os interesses de
Closser estarão próximos de um R. Sikoryak, mas em vez de querer
provocar curtos-circuitos entre “forma e conteúdo”, Closser está
mais interessado em seguir de perto estilos reconhecíveis de autores
clássicos para os recuperar e relectrificar com novas histórias. Se
algumas das suas outras peças parecem mais irónicas e veiculando
histórias modernas, Little Tommy Lost aparente querer
perder-se na ilusão de um tempo perdido.
Mas
isto não significa que não haja uma qualquer “distância” do
mundo estilístico que espelha. Certo, não se colocam questões de
ordem social, política ou moral significativas. O trabalho infantil,
esta espécie de escravatura, a violência física e os abusos de
poder, são o pão nosso de cada dia, e vistos agora, no nosso tempo,
há suficiente carga crítica para os compreender como problemáticos.
Mas eles não são desmontados em si mesmos na história, a não ser
pela ingenuidade de Tommy. Essa distância existe através das
citações visuais, que o leitor historicamente informado saberá
detectar e compreender que tipo de força exercerá sobre esta nova
história. É nesse sentido que este livro é menos pastiche do que
homenagem, mas uma homenagem que obriga o leitor a uma participação
activa de re-construção. E há momentos de ligação directa: a
própria personagem, na página que corresponderia ao Domingo do Dia
de Acção de Graças, e onde um imenso peru invade as tiras,
confessa que esta ideia “já foi feita, e melhor!”, como citação
directa e auto-derisória por comparação a uma página de Nemo
(de 1905).
Não
obstante, a ilusão prossegue. A estrutura do livro mima precisamente
o ritmo diário das publicações em que se baseia, com seis tiras
diárias seguidas de uma “meia-página” a cores, com várias
tiras ou mesmo uma composição unitária, a dita “página de
Domingo” (Sunday page). A atenção do autor é dedicada,
pois nestas páginas maiores ele cria estruturas que permitem a
possibilidade de “decepar” a primeira tira, com o título, sem
que se perca o sumo da narrativa dessa mesma tira, como acontecia,
por exemplo, com as tiras dominicais dos Peanuts de Schulz.
Serão menos espectaculares que as originais de McCay, King,
Feyninger e Herriman, é verdade, mas se imaginarmos que estes são
os primeiros “meses” da tira, poderemos também imaginar que o
melhor estará para vir... Para mais, essas mesmas narrativas
dominicais não adiantam grande coisa à história central em
continuidade, uma vez que muitos leitores “diários” dispensavam
a compra do jornal ao Domingo, tal como outros leitores (menos)
comprariam somente ao Domingo. Este tipo de diferenciação de
leitores é precisamente o que permitia uma abordagem diferente entre
as tiras diárias e as páginas dominicais de Wash Tubbs/Captain
Easy de Crane (curiosamente, a obra que terá fundado a ideia de
“tira de continuidade”, escapando da anedota diária ou gag
simples) e de Gasoline Alley.
Existem
outros pormenores gráficos que corroboram essa ideia. Ao contrário
das novas edições do património da história da banda desenhada
(Popeye, Dick Tracy, Peanuts, PríncipeValente, etc.), não há uma procura por homegeneidade gráfica
das páginas no interior, mas um sublinhado de materialidade das
imagens muito particular. Se se olhar com atenção,
aperceber-nos-emos que as tiras parecem impressas num papel de
jornal: vemos manchas provocadas pelo manuseamento, sujidades e o
típico amarelecimento do tempo, vemos letras ou anúncios impressos
“do outro” lado da folha de papel, etc. Além disso, cada tira e
página de Domingo parece estar colada sobre a folha imaculadamente
branca do próprio livro que temos nas mãos, ao ponto de vermos uma
levíssima sombra sob as tiras, dado essa ideia de volume, criando a
ideia de se tratarem de uma colecção privada, e não tanto de um
projecto editorial. Talvez compreendendo tratar-se de uma ilusão
criada por ferramentas digitais não a destrua propriamente mas
aumente a surpresa do esforço de Closser em criar esta
materialidade, que informa o próprio texto.
E
tudo parece caminhar de facto para a possibilidade de relançar esta
forma.
Nota
final: agradecimentos a Benoît Crucifix, pelo empréstimo do livro.
2 comentários:
Olá Pedro,
É sempre muito bom (tão simples quanto isso) que alguém nos recorde que em sonhos de criança a nossa casa foi engolida por um gigantesco peru pré-atómico ou que fomos uma vez raptados por um selenita para dentro de uma lua sardónica. Confesso-te que ainda sinto o mesmo prazer fundamental, o mesmo de abrir os meus primeiros livros de BD (de qualidade muito duvidosa), sempre que folheio as edições gigantes do Little Nemo da Daily Press (a soberba desta posse não é para ser escondida :-). Do que recolho das tuas palavras, o valor da obra que apresentas hoje reside em grande parte do reviver do passado em Slumberland e noutras paragens distantes no tempo e encontrar espaço para a divulgação de um passado que esquecido se apresenta novo. Como nunca deixará de ser...
Obrigado e Abraço,
José Sá
P. S.: Mais uma vez surpreendido pelas tuas "connections" no meio da BD... até os irredutíveis habitantes de uma certa aldeia gaulesa te emprestam livros :-)...
Provavelmente haveria mais a dizer sobre o livro, mas uma vez que a minha verborreia não é apreciada por todos (mas que, bem vistas as coisas, me leva a perguntar porque a lêem e comentam), tento diminuir as entradas. Em termos gerais, é isso mesmo, o prazer em ler este livro é que tenta recuperar um certo prazer ante-diluviano, ou pré-atómico, o qual, ingenuamente, deseja apenas "um prazer simples" (mas talvez cego para toda uma série de outras coisas). O livro de que falei hoje, de Trippe, cumpre a mesma coisa, de modo diferente.
Quanto às conexões, bom, neste momento estou na Bélgica, a estudar, e há outros cruzamentos. Não se lhes posso chamar "gauleses", porém, ou há batata!
Pedro
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