Prevíamos
escrever sobre esta obra ainda na sua forma online, onde ainda
permanece totalmente acessível. O compasso de espera levou a que
surgissem, rapidamente, uma edição disponível na Amazon e agora
esta pela portuguesa El Pep (com
alguns retoques, pelos vistos), que tem procurado, como temos visto,
multiplicar o seu catálogo não apenas em termos de quantidade, de
número de títulos, mas em termos de géneros, artistas, tipos de
abordagem e até mesmo formato e materialidade dos livros em si. No
caso presente, temos uma espécie de comic
book
em “prestige format”, com lombada, uma história contida, que
tanto é devedora às raízes da cultura escrita humana como aos
clássicos dos super-heróis da DC dos anos Weisinger. (Mais)
The
Mighty Enlil
é, basicamente, uma utilização de alguns dos mitos (no seu sentido
de “narrativas”, mesmo) sumério-acádicos, mas passados por um
filtro muito próximo da banda desenhada de super-heróis, num
período que compreenderia o advento da dita “Silver Age” e a
Marvel dos anos 1960, em que se pautavam por uma espécie de leveza e
entusiasmo na sua própria condição efémera, etc. e à qual
regressaremos.
O
autor lança as suas personagens imediatamente na acção, sem
grandes prelúdios ou preparações, em que Enki lança o seu irmão
e rival numa armadilha inescapável que o transporta para o seu
futuro, isto é, os nossos dias. Não se compreende totalmente o
desvio espacial, que o transporta das margens então férteis do
Tigre e do Eufrates para uma Nova Iorque mais ou menos simbolizada,
que tanto pode ser lida como a que corresponde à nossa realidade,
compreendo-se a presença dos deuses antigos (como em Sandman
ou American
Gods,
Fables
e outras séries) pelo “poder” ali presente, ou então uma
espécie de futuro alternativo que corresponderia à presidência de
Enki no leme do mundo (e não seria NY, mas Babilónia, que no final
Enki deseja queimar, à Nero). E as viagens espaciais também abrem a
possibilidade de uma expansão das referências no interior daquele
universo diegético, mas nada disto nos deve preocupar em demasia,
pois não “rompem” o modo decidido como a intriga se estabelece e
desenrola. Aliás, em alguns aspectos, sobretudo esta passagem
Suméria-Nova Iorque, recorda-nos uma história clássica do Conan
de Roy Thomas e John Buscema, em que o bárbaro é transportado para
a cidade então contemporânea, e onde os zigurates familiares ao
campeão se invertem no Guggenheim... (What
if...?
no. 13, 1977). É menos importante, então, uma qualquer lógica e
exaustão dos pormenores do que criar, com os elementos determinados
pela escolha de género, abordagem, tamanho da publicação, etc.,
algo coerente em si mesmo. E isso, The
Mighty Enlil cumpre.
A
abordagem gráfica, em termos gerais, de Pedro Cruz, participa de uma
espécie de ingenuidade juvenil. Uma mescla entre a linha clara
franco-belga mais tradicional – contornos perfeitamente delineados
a um negro sólido, cores sólidas sem matizados praticamente
isoladas, ausência de sombras, uso de todos aqueles signos típicos
de uma banda desenhada clássica (os emanata,
na nomenclatura de Mort Walker) -, uma figuração icónica e
“abonecada” - que tanto recordará uma linha límpida de Mort
Weisinger e as suas variações contemporâneas pela estilização
mais descontraída de um Gilberto Hernandez -, mas um ritmo narrativo
alternadamente tranquilo, criador de ambientes e também célere e
potente nas cenas de acção que é algo devedor à mangá ou a
outras linguagens mediáticas, tornam a arte de Cruz, pelo menos
neste livro, próximas do que já foi chamado de “estilo global”,
de que faláramos a propósito de Iba.
No entanto, aquela qualidade a que chamámos de “juvenil” é
assinalada também pela estrutura narrativa, bastante simples,
adaptando elementos da mitologia suméria, ou melhor, subsumindo-os
ao género dos super-heróis; convenhamos, Cruz não está
interessado nem numa tradução directa da matéria original, como é
o caso de, por exemplo, Bonneval e Duchazeau em Gilgamesh,
nem em criar uma investigação de carácter antropológico, querendo
antes criar uma história concisa, directa, sem complexidades de
maior, divertida e salutar.
Existem
elementos que abrem a narrativa para aquelas associações narrativas
e estilísticas. Por exemplo, a relação entre Enlil e Enki, e
depois a intervenção do pai, recorda por demais aquela entre os
Thor e Loki e Odin de Lee-Kirby (até a armadura final do pai,
pós-fusão – influência de Dragonball?
- recorda a da Destroyer), numa espécie de intriga telenovelesca. A
presença de Ninlil permite que a dimensão amorosa possa também
estar presente e traga uma outra pequena camada de interesses, mas
também associável a essa fase inicial da Marvel dos anos 1960.
E
nada daquela descrição quanto à “forma” quer dizer que o autor
não tem soluções, gráficas, narrativas ou estruturais que mereçam
ser assinaladas. Mas num campo em que a criatividade se tem pautado
sobretudo por efeitos de grande espectacularidade, não deixa de ser
surpreendente em si mesmo que as opções de Pedro Cruz escolham
antes um caminho de modéstia e sem pretensões. Todavia, uma página
como esta, em que o corpo, e a pele, e a sua cor, de Enki se parece
espalhar sem forma por toda a páginas, contra a qual Enlil se vai
dissolvendo, impotente, mostra como o uso de uma grelha implacável
para estruturar as páginas pode ser usada para uma sua subversão,
simples mas eficaz. E as finais, do regresso de Enlil, têm também
uma dinâmica muito própria, que uma escolha em ter splash
pages
básicas, se não alteravam a “intriga” nem o que é
representado, distorceria o modo
coerente como é contado de capa a capa.
A
opção de manter o inglês justificar-se-á para uma possibilidade
de chegar a um público mais alargado e internacional, já que o
doméstico não é de modo algum suficiente para alimentar a
sobrevivência e até a justiça dos autores. Ainda que possa haver
alguma reacção em círculos mais restritos, a recepção destas
obras, sobretudo em termos públicos e economicamente é algo
limitada. O que é lamentável, uma vez que são esforços que têm o
seu caminho a trilhar. Não fossem algumas dimensões mais violentas
do livro – e afirmá-lo não é sinal de conservador, mas sim numa
compreensão do desenvolvimento cognitivo e emocional das pessoas –
e The
Mighty Enlil
poderia ser perfeitamente algo integrável nas prateleiras de “jovens
leitores”. Neste cruzamento, estará mais próximo, portanto, de
Invincible,
ainda que numa dimensão bem mais curta. Todavia, eficaz nessa sua
leveza e direcção.
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