Quando
escrevemos sobre Children’s Picturebooks, de Salisbury e
Styles, havíamos notado a presença de um projecto, à altura
“escolar”, de Madalena Moniz. Na secção dos comentários
correspondentes, a notícia de que o livro estaria a ser produzido
para publicação pela Mini Orfeu não se fez esperar e aqui surge
ele. A ideia de “escolar” não tem nada de pejorativo, tal qual o
havíamos debatido no texto anterior, e é particularmente
significativo, sobretudo para a instituição em si, que a qualidade
dos livros produzidos no seio desses projectos apresentem desde logo
características suficientemente musculadas que façam adivinhar a
sua circulação mais alargada. Isso estava patente desde logo no
livro de Moniz. (Mais)
O
livro em si sofreu alterações a todos os níveis, quer em termos da
língua – tratando-se de um alfabeto, a escolha das palavras teve
de procurar caminhos que não o inglês – quer em termos da
composição e das próprias imagens. Pode-se dizer mesmo que o livro
original foi antes a semente que, após o filtro editorial – sendo
essa precisamente a sua função -, desabrochou num livro acabado e
novo. A estrutura continua a ser muito simples, mas efectiva. Cada
página dá continuidade ao título, que passa a ter uma relação
textual intrínseca e interna ao livro, e não somente uma relação
indexical. Nesse aspecto, desde logo, o livro tem uma estratégia
textual-estrutural pouco comum. A palavra, o adjectivo, que
configurará os sentimentos da personagem – a qual, continuando a
ser um menino, não tem já o nome proposta na versão primeira –
surge sob a forma da letra, desenhada com um padrão, textura ou
material que remete à imagem, incutindo uma natureza material
concreta à palavra. A imagem, ocupando toda a página da direita, dá
corpo ao sentimento, quase sempre procurando relações metafóricas,
ora mais naturalistas ora mais fantásticas.
A
autora não está interessada em criar uma personagem propriamente
dita, não lhe dando qualquer biografia ou identidade moldada, mas
existem suficientes pormenores visuais que permitiram uma
micro-narrativa, ou adivinhar alguns aspectos da sua vida. No
entanto, isso não é importante, sendo-o antes a sua transformação
numa cifra, que será preenchida por cada leitor. Essa ideia de
“preenchimento” é mesmo levada de uma forma literal quando, no
final do volume, se apresenta um espaço para ser preenchido pelos
leitores com as suas próprias notas sobre os seus sentimentos
diários. Mesmo que não tenha um propósito pedagógico propriamente
dito (logo, tornando-o mais significativo), ainda assim Hoje
sinto-me... pode ser empregue como um instrumento de aprendizagem
bastante claro, quer das letras em si, das palavras em si. Existem
aquelas talvez menos comuns (“audaz”, “revoltado”,
“baralhado”) até a termos internacionais (“k.o” e “x.l.”,
que talvez demonstrem alguns limites na busca das palavras), passando
mesmo por sentimentos que merecem maior contextualização e esforço
(“genuíno”, ou “torto”) até aos mais estrambólicos
(“jupiteriano”).
Os
desenhos da autora são feitos a tinta-da-china e aguarela, sendo
este o material que mais ocupa o corpo das imagens. Madalena Moniz
não se inscreve na escola mais em voga da ilustração portuguesa –
a escola “geometrizante” e de cores puras, como já repetimos
noutras ocasiões -, mas bem pelo contrário parece cultivar uma
abordagem mais suave, texturada. Há um labor paciente em desenhar os
fios de cabelo, as ondas individuais de um mar, as folhas de uma
árvore, os padrões dos azulejos, os reflexos de um papel de
embrulho de bombons, as mãos carimbadas no chão, as pedras maiores
e menores que compõem uma imensa parede, e depois dar-lhes, a cada
uma dessas superfícies, cores específicas e matizadas. Além disso,
o uso quase revezado – nas páginas “das imagens” - de
composições cheias e de grandes áreas de vazio, ou ainda de
distribuições equilibradas, incute um ritmo interno ao livro, mesmo
que ele possa ser lido sem seguir a ordem alfabética/estrutural.
O
próprio rosto do protagonista e de outras personagens é muito
simples (a escolha dos “botões-negros-como-olhos”), mas eficaz e
contrastivo na economia da composição e outros objectos. De certa
forma, talvez haja aqui alguma associação, quiçá nostálgica, a
uma certa ilustração de há uns 40 anos. Pensamos sobretudo em Dick
Stenberg, que ilustrou toda uma série de pequenos livros de lições
emocionais que foram publicados entre nós numa colecção
da Editorial Presença e Martins Fontes a meados dos anos 1970. Se
esses livros tinham ecos cristãos, mas procuravam sobretudo aquelas
repercussões mais universais, este livro de Moniz está despojado de
um contorno mais religioso e espiritual, mas não é menos emotivo e
tocante por isso.
Não
sendo o primeiro livro da autora, que lhe angariou atenção e um
galardão, será este porém que a colocará numa senda mais
pessoalizada, ao mesmo tempo que vem trazer uma pequena inflexão à
nossa “carteira” de ilustradores contemporâneos.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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