É
inevitável falarmos deste livro sem assinalar o prémio que angariou
na Feira do Livro Infantil de Bolonha no início deste ano. Um
galardão dessa categoria é um garante imediato de uma circulação
significativa, em termos de informação e atenção mediática,
claro, mas igualmente de edições. No entanto, mesmo a celebração
a que esse prémio permite não nos deve impedir de ler o livro
criticamente, pois esse exercício libertará decerto as forças que
ele contem. (Mais)
Porém,
a primeira impressão é uma de menor intensidade.... Este livro é
menos radical que os anteriores, e estará mais próximo de
Vazio em termos figurativos, com a sua estilização
geometrizante e efeitos de cor e materialidade que recordam a
linogravura ou o stencil em certos pormenores (aliás, o júri de
Bolonha assinalou precisamente esta vertente, associando-a às
tradições dos anos 1950 – pensarão em Mary Blair, Elisabeth
Brozowska, Miroslav Sasek, ou mesmo Alain Grée, Jim Flora ou Eric
Carle? -, como tem sido repetido neste mesmo espaço em relação à
mais visível tendência na ilustração nacional dos últimos anos).
Por “radical”, ou afastamento, queremos indicar, por um lado, um
abandono da abordagem multímoda dos livros Greve e Achimpa,
optando antes por uma certa homogeneidade de esquemas de cor, de
perspectiva e escalas relativas, da utilização de um eixo
horizontal contínuo, de unidades mais moderadas nas páginas ou
mesmo páginas duplas, e, por outro, em termos narrativos, uma
focalização mais centralizada, uma linguagem menos exploratória da
sua poeticidade plástica e antes mergulhando na representatividade
das memórias e emoções.
No
entanto, os contrastes cromáticos, que têm um valor de
narratividade assinalável, são mais visíveis em O meu avô,
como veremos.
O
livro rapidamente estabelece a sua estrutura: a atenção contrastiva
para com duas personagens, a saber, o avô do narrador, que também
surge e participa, e o Sr. Sebastião. Se bem que o vermelho e o
verde surjam como as grandes cores opostas, elas não assumem
totalmente os seus valores simbólicos mais usuais (por hipótese,
“permitido/proibido”, “calmia/paixão”, etc.), mas tiram
partido antes da relação que estabelecem entre si, sobretudo se
tivermos em conta a percepção visual e a complementaridade entre
elas. Ou seja, o seu uso é perfeitamente funcional, sublinhando o
contraste entre as personagens, as suas acções e, mais
importantemente, a atitude para com a vida que parece transparecer
desse mesmo contraste. E essas cores dominantes são enfatizadas pela
presença de apontamentos e áreas em azul marinho, amarelo, preto e,
claro, o branco. Os apontamentos em questão muitas vezes são apenas
pormenores de representação – os padrões das meias, tufos de
relva, reflexos nas escadas, sombras, chuva ou os círculos
concêntricos na água -, mas outras vezes são os tais “excessos”,
não-representativos, que lhe incutem a tal materialidade de gravura.
Olhando
este contraste, reparemos que a ideia de “oposição” é
completa. Esta imagem que coloca o avô e o Sr. Sebastião sentados à
secretária servirá de modelo. O avô é visto de frente, revelando
todos os seus instrumentos do momento, entre labor e prazer: o
cachimbo, a caneta de tinta permanente, a folha de papel ainda por
preencher (e sem a angústia abissal mallermeana do branco), o café
e o livro inspiracional. O Sr. Sebastão, pelo contrário, trabalha
num computador, levando à ideia de trabalho, funcionalidade,
estandardização, celeridade e eficiência. Se
por um lado a posição dos corpos das duas personagens é
precisamente a mesma, com os braços abertos e os cotovelos
descansando sobre os tampos, a cabeça ligeiramente inclinada e os
pés cruzados um sobre o outro e lançados em frente, as posições
relativas deles em relação à perspectiva do leitor torna-as bem
diversas, como se o avô revelasse e se se oferecesse à aproximação
onde o Sr. Sebastião cria uma barreira à intimidade, pelo menos
momentânea. No entanto, isto não significa que não haja aspectos
“românticos” no jovem trabalhador. Em primeiro lugar, o
mobiliário não parece ultra-funcional e moderno, mas também
partilha da materialidade familiar do que se encontra no café. E o
ambiente do escritório é relativamente calmo, com as duas janelas
abertas para o exterior, deixando vislumbrar a natureza lá fora (o
facto de vermos dia e noite recordará a passagem de tempo de Where the Wild Things Are, mais simbólica que referencial). Essa
tranquilidade no familiar é, de certa forma, sublinhada
pela presença do candeeiro Luxo L1, de Jac Jacobsen de 1937, uma
peça clássica de design. Poderíamos entender essa “invasão”
de tranquilidade e familiaridade no mundo do Sr. Sebastião como a
possibilidade de, no futuro, ele aceder ao mundo do avô? Se isso for
possível, então estaremos próximos de uma outra referência
oblíqua à estrutura mesmo deste livro, que é a contaminação que
o Sr. Hulot provoca no mundo moderno em Play Time.
E
de facto, começando pelo título, e apesar da presença do Sr.
Sebastião, a “faixa textual” presta uma atenção quase
exclusiva ao avô e ao mundo das suas ocupações prazenteiras e
livres.
Até
aquela página em que as duas personagens parecem partilhar um
quarto, todos os objectos visíveis jogam-se um contra o outro a
partir de pressupostos românticos: um despertador analógico versus
um alarme digital, um abajur art déco de vidro versus um
candeeiro moderno, os blocos de notas pessoais, que implicam
expressão, versus o jornal universal, que antes informa, etc.
Tudo é pensado nesse nível (até as riscas das cobertas da cama, ou
o que fecha a janela)...
Para
mais, a utilização do retrato famoso de Pessoa por Almada, de 1964,
constitui mais uma camada de significação, óbvia na sua
intertextualidade. De acordo com Robert L. Patten, as ilustrações
dos contos de fadas, e a literatura infantil ilustrada, ou mesmo
todas as narrativas visuais, criam uma “estranha familiaridade”
por criarem elos entre os leitores e textos anteriores. Toda a
história da ilustração tem inúmeros exemplos dos artistas
empregando modelos icónicos, composicionais e figurativos que
recordarão obras de arte anteriores, desde George Cruikshank a
Sobral. Não interessa propriamente uma imitação exacta, nem sequer
uma exploração precisa de todas as consequências desse uso, mas
antes o domínio impreciso das impressões que esse uso implica.
Essas presenças abrem-se para uma re-imaginação, um re-lançamento
dessas figuras em novas consequências narrativas, morais e sociais.
O
meu avô acaba assim por ser uma bateria de referências, uma
espécie de arquivo visual, demonstrando como a questão em si não é
tanto a sua existência (jamais inerte, como Derrida demonstrou em
Mal d'archive, uma vez que a sua própria constituição é
activa e revelatória de um qualquer poder, mas cuja existência e
sobretudo uso irá acentuar o poder existente sobre ele), como o seu
emprego. No caso de Sobral, este arquivo é empregue com o intuito de
criar uma ideia de uma possibilidade de viver a vida de uma forma
livre de responsabilidades quotidianas e banais através das artes e
cultura. Pouco importa que a realidade social obrigue a tal, sendo o
Sr. Sebastião mais novo, parte da população activa, e que o avô
seja reformado. O importante é a perspectiva e aproveitamento da
parte do neto. Mais curioso seria notar que a “liberdade”
aparente do avô é feita afinal através de “imagens feitas”, de
blocos referenciais pré-preparados, o tal romantismo a que nos
referimos atrás.
Uma
vez que a autora optou por colocar no assento da narração, ou pelo
menos aparentemente, um menino, entendemos que O
meu avô não se tratará de um livro
propriamente autobiográfico, mesmo que tenha algum laivo de
auto-ficção. O arquivo é, portanto, uma deliberada opção da
artista em dialogar com a cultura em termos gerais, a sua própria
cultura, para dela despertar uma nova ficção. De modo muito, muito
diferente, verificáramos o mesmo em Hortus
Sanitatis, de Frédéric Coché, por
exemplo, que bebe de toda uma série de ícones da história das
artes visuais belgas para construir uma espécie de rábula de
Bruxelas, ou em autores tão distintos como Chris Ware, Cole Closser,
Olivier Schwartz, Olivier Schrauwen, Ilan Manouach, J.-C. Bertoyas,
etc. que bebem das mais distintas famílias gráficas da banda
desenhada para relançarem esses elementos ora em homenagens,
détournements,
reinvenções críticas ou relançamentos.
É
evidente que a questão de se essas referências são acessíveis aos
leitores mais novos pode surgir. E o mais provável é que não sejam
claras. No entanto, isso jamais deverá ser motivo de impedimento à
procura pelos instrumentos mais acertados escolhidos pela artista,
esperando-se que esse estímulo possa ser retroactivo na futura
descoberta das fontes das imagens. O mesmo ocorre com as outras
referências mais ou menos claras, de Manet a Tati. Porque os avós,
afinal, podem sempre abrir as portas a um mundo estranho e
fascinante.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. A imagem da página dupla foi colhida do site da Feira de Bolonha.
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