A relação entre este
filme e o livro que lhe poderá ter dado origem, a saber, o magnífico
Congresso futurológico, de Stanislaw Lem (que foi publicado
em português num dos primeiros volumes da saudosa colecção de fc
da Caminho), é da mesma ordem que entre Do Androids Dream of
Electric Sheep? de Philip K. Dick e Blade Runner de Ridley
Scott: menos do que uma adaptação, ou até de uma versão, ou
sequer de uma transmediação, os textos literários acabam por ser
antes uma bateria de conceitos, estruturas e estímulos para depois
se tecerem novas histórias e desenvolvimentos. Logo, importa menos a
ideia de “fidelidade” do que a “pertinência” ou mesmo a
“força” desse aproveitamento. A questão, porém, é: ocorrerá
essa força em The Congress? (Mais)
De facto, a relação
entre um e outro é meramente superficial. Estabelecem-se ideias
paralelas entre a possibilidade de criar uma segunda ou terceiras
realidades passíveis de experiência, que progressivamente nos faz
afastar de uma suposta realidade primeira, mas o trânsito entre esta
e as outras é bem diverso entre o romance de Lem e o filme de
Folman. Se para Lem, no final de contas, há um desejo último, a um
só tempo racional e romântico, de regressar à realidade – a
existência física, numénica, material, humana, pobre mas genuína
– da parte do viajante Ijon Tichy, no caso da protagonista do
filme, Robin Wright, a opção é antes pela contínua fuga, o
mergulho decidido na ilusão construída.
Neste futuro hipotético
que quase não é mais do que uma espécie de comentário social sobre o
futuro do cinema (na perspectiva de Folman), actores e actrizes vão
sendo substituídos por cópias digitais. Literalmente, os artistas
são digitalizados na sua completude, os corpos, as expressões, as
emoções, os tons de voz, e ao mesmo tempo “congelados” numa
idade e beleza ideais. Desta forma, em vez de trabalharem para cada
papel e tomarem opções erradas (porque informadas pelas emoções e
sensações do momento), os estúdios que têm a propriedade desses
“corpos” podem empregá-los em toda a espécie de produções
cinematográficas, sobretudo aquelas pautadas por políticas dos
géneros: acção, comédia romântica, terror, pornografia – todos
géneros tratados como intrinsecamente inferiores a um suposto cinema
puro. Quando vemos o trailer de Rebel Robot Robin,
Streetfighter, um dos resultados da digitalização de Robin, ou
escutamos a entrevista da actriz-simulacro, tudo isso surge como uma
sátira a um cinema pós-Zack Snyder, mas em que a crítica é bem
menos interessante, porque forçada e desinspirada, do que o objecto
criticado (o qual não deixa de ter uma juissance muito
própria). É muito difícil não ler nos gestos de Folman uma
gritante agenda de posicionamentos em relação à indústria que ele
retrata. Através de trocadilhos (o estúdio Miramount), de formas de
representar os executivos e agentes (várias espécies de
caricatura), de carreiras (o cineasta promissor que acaba como mero
captador ou digitalizador dos actores), de gestão de franchise,
etc., The Congress parece estar sempre preocupado em
martelar-nos a ideia do “lado negro” do cinema. E, mais uma vez,
tal como acontecera em Valsa com Bashir, Folman parece
utilizar a animação para a confirmar como a linguagem maior desse
caminho errado. Se em Bashir, como disséramos antes, a
animação acaba por ser a língua do “sonho” ou das “memórias”,
rasgadas pela realidade do último trecho videográfico, a economia
entre animação e imagem fotográfica, em The Congress, acaba
por repetir a mesma relação ontológica.
A primeira parte do filme
cria as condições necessárias ao desaparecimento da artista no seu
avatar animado. O facto da personagem-que-é-actriz ter o mesmo nome
(e corpo, afinal) que a actriz-que-a-representa, Robin Wright, cria
desde logo uma dimensão complexa entre a ficção e realidade. Todos
os outros actores assumem uma personagem, mas esta escolha em relação
à protagonista/actriz principal é desde logo um comentário também:
a de que, não obstante o trabalho dos actores dever ser o de se
“perderem” nas personagens, os filmes são quase sempre pautados
pelos corpos específicos dos seus actores – e isto
independentemente do estilo ou escola ou período do cinema: isso
ocorre com Buster Keaton e com Tom Cruise, com Brigitte Bardot e com
os “modelos” de Robert Bresson. De uma forma mais ou menos
mecânica, todos os elementos são apresentados da sua vida, que
criam a ideia de “missão” - a idade que avança, o filho doente,
as relações difíceis de trabalho, e por aí fora -, tudo sempre
num ambiente relativamente onírico – ela vive num hangar de aviões
– para não reflectir em demasia um quotidiano “normal”, mas
antes sublinhar a diferença desta vida das demais. Após a
“digitalização”, saltamos uns anos no futuro (estamos a 45
minutos do filme), e a actriz visita o suposto Congresso – que por
sua vez será uma má-velada sátira às apresentações dos novos
gadgets da Apple - na cidade de Abrahama (Folman procura aqui
talvez sublinhar uma ideia de “origem comum”), a qual é uma
“zona restrita de animação”, em que as pessoas só podem estar
ali sob o efeito das substâncias químicas que lhes permite viver
nesse outro estado. Não é somente uma alteração de percepções,
nem tampouco uma entrada numa realidade virtual, mas entrar num outro
estado existencial mesmo. E é nesse momento que se dá a entrada
triunfalista na animação. Já voltaremos às razões do uso
desta palavra. Nesse outro trecho, então, é lançada uma nova
aventura, pejada de acção, citações, e mais diatribes
mal-disfarçadas sobre a ética de Hollywood. Finalmente, provoca-se
o curto-circuito que vai permitir a Robin abandonar a ilusão
animada, dá-nos acesso à “realidade pobre” (Lem falaria de um
“naufrágio na realidade”) que se escondia, mas nenhuma revelação
nos surpreende, já que o filme acaba por se abandonar numa redenção
pela via da lamechice, da relação entre a mãe e o filho doente,
apesar de não termos estado nesse registo durante o filme inteiro, e
todas as outras dimensões – o amante, a filha – serem
praticamente descartadas. Como diria Aristóteles, esta é uma
narrativa em que os episódios se sucedem não por relações causais
(di'allela) mas simplesmente por sucessão “episódica”
(met'allela). E, de facto, The Congress parece ter mais
“quadros” do que peças incrustadas umas nas outras para compor
um mosaico coerente.
Apesar de termos dito que
não faz sentido sequer falar de adaptação, ainda assim, uma
perspectiva tomada em relação ao livro de Lem far-nos-á notar que
The Congress apresenta uma organização temporal mais
limitada e linear, assim como as passagens entre os planos de
realidade/ilusão são unidireccionais e, no balanço final,
cartografáveis de modo simples e sem problemas de metalepses ou
ambivalências. Nesse sentido é algo similar a Memento, de
Christophr Nolan, que apenas os mais distraídos podem considerar
“muito complexo”, mesmo que se o considere, com razão, como
parte dos “puzzle films” (título de uma colecção de ensaios de
teoria do cinema editados por W. Buckland) contemporâneos. Em ambos
estes casos, criam-se estruturas um ou dois pontos afastados da
linearidade, acumulam-se efeitos de estranheza, mas sem jamais
quebrar definitivamente um regime de representação natural e
lógica. Quer dizer, os efeitos ilusórios são afinal empregues para
reforçar e confirmar a realidade, não para a colocar numa crise
total, como o farão os filmes de, por exemplo, Alain Resnais
(Marienbad) ou Lynch (Lost Highway), ou noutros
registos, Parajanov (que criava, precisamente, belíssimos “mosaicos
de partes”), Tarkovsky, Bergman ou Tarr. Recordemo-nos que no caso
do livro de Lem as passagens não são propriamente procuradas de
propósito, e há momentos em que não há certezas de que momento se
vive (até ao “acordar” final), ao passo que neste filme as
passagens são voluntárias e compreendidas pelas personagens.
A produção da animação
atravessou toda uma série de estúdios de vários países, alguns
dos quais associados sobretudo a filmes comerciais, de distribuição
televisiva ou videográfica, mas também com outros projectos de
maior perfil (Ernest & Celestine, The Secret of Kells,
Les triplettes de Belleville, etc.) e plataformas mais
independentes ou até mesmo de artistas individuais. Existem textos e
recursos que saberão fazer melhor o historial desse processo em
relação ao filme, mas basta olhar para o número de co-produtores
para compreender que esses passos não foram simplificados, o que
pode desde logo impor uma série de obstáculos. Seja como for, isso
leva a que tenha havido intervenientes franceses, alemães, polacos e
belgas nessa produção, num filme que também teve trabalho nos
Estados Unidos e outros locais. No entanto, tal como em Bashir,
as responsabilidades artísticas têm a mesma equipa, com Yoni
Goodman e David Polonsky ao leme, e as primeiras imagens divulgadas
deste filme, ainda em fase de produção, pareciam seguir a mesma
linha estilística, figurativa e cromática. O resultado final e
efectivo, porém, seguiu uma direcção bem diversa, e que, de certa
forma, revisita quase toda a história da animação. Quase se
poderia dizer que, ao vermos cada nova cena ou, como dissemos,
“quadros” de animação, que os autores pretenderam criar
homenagens sucessivas às suas fontes e influências.
Veremos
criaturas reminiscentes do primeiro Disney e do imenso Snow
White, veremos movimentos e
formas plásticas que tanto deverão a McCay como aos Fleischer,
cores e atitudes frenéticas de um Heinz Edelmann ou dos The
Simpsons, marcas talvez de um
Raoul Servais ou René Laloux... mas para dar início a toda
uma procissão de breves homenagens a actores ou personagens famosas,
ícones da cultura popular, referências dos mais variados
quadrantes, Bosch como designer de jardins urbanos, sobretudo na
parte do futuro mais além do futuro. No entanto, há algo nesse
caleidoscópio de formas que impede que essas referências jamais se
coalesçam numa tessitura suave, coesa e com significância, no seu
sentido epistemológico. Este malabarismo de figuras revela um grande
virtuosismo, sem dúvida, mas a nosso ver no quadro de um
entendimento algo pobre da animação enquanto linguagem própria e
autónoma em relação ao cinema “em geral” (estas relações são
complexas e sempre redutoras, pois partem do pressuposto que é
possível falar-se de “animação” e de “cinema” como se não
fossem territórios entrosados um no outro, quando no fundo existe um
elo histórica, técnica e ontologicamente indestrinçável). Tal
como em Bashir, há uma sensação de que se secundariza, no
fundo, a própria animação.
Por isso é que falámos
de uma entrada triunfalista e não triunfal na
animação. Pode ser apenas um jogo de palavras, mas a segunda seria
antes utilizada para um resultado que fosse intrínseco ao modo,
iluminando-o na sua perfeição, elevando-o a uma linguagem própria
e a resultados poéticos. Por exemplo, a cena das chaminés no início
de The Yellow Submarine, a impressão de uma estranha forma de
vida nos olhos do protagonista de Street of Crocodiles dos
irmãos Quay, a alegria musical contagiante de 78 Tours de
Georges Schwizgebel, ou o frenesim dos objectos no Jabberwocky
de Svankmajer. O que vemos em The Congress porém é apenas
um excesso: de ideias, de formas, de citações, num tom marcial.
Excesso corroborado pelo trabalho dos actores, dos gestos, dos sons,
da música (cujos esforços de cruzamento de estilos são por demais
gritantes na sua busca de “relevância”). Se a entrada em
Abrahama City recorda o excesso de Logorama (dos H5), no caso
da curta esse excesso tem um propósito causal e final em relação à
diegese, ao passo que em The Congress é tão-somente um
décor. E o facto da protagonista criar uma distância
metalinguística em relação ao ambiente em que se encontra – ela
descreve, convenientemente, Abrahama como “sick” (“estranha”,
“tortuosa”, “aflitiva”?), e “como se um animador genial
estivesse numa má trip de ácido” - não é suficiente para
redimir essa mesma construção. Tal como contar uma má anedota e
depois confessar o quão má a anedota é não redime a pobreza da
própria anedota.
De certa forma, uma ideia
que nos surge é que a animação é empregue de uma forma negativa,
para demonstrar que ela não é o cinema, não é ela a linguagem de
uma suposta “verdade”, da “realidade”, de uma perspectiva
livre e humana, mas antes a prisão que nos encerra. Maravilhosa, mas
prisão, como uma espécie de encontro entre o panóptico e o
praxinoscópio: um espaço enclausurado em que entramos por nossa
vontade para assumirmos um papel qualquer que nos transforma com o
simples intuito de sermos vistos por outros e participarmos dessa
cultura de visibilidade e papéis fictícios. Não é algo de
particularmente surpreendente depois de Second Life, das
selfies, do Facebook e de outros instrumentos em rede que
possam vir a surgir, ou mesmo de todo o nosso comportamento composto
de “máscaras sociais” (cf. Erving Goffman). Todavia, essas
intenções não transformam The Congress num manifesto forte
de acusação e libertação dessas construções sociais e
ilusórias, já que Robin opta por voltar a mergulhar nelas. O que é
lamentável e estranho é que a animação seja empregue, de modo visualmente magnífico, em seu próprio
detrimento.
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