Pelos
vistos, um dos segredos bem guardados da cultura homossexual, que
pode ser entendida como um monolito, é o facto “dele/as” usarem colheres para dissolver o açúcar no café. Isto de acordo com
um artigo de jornalismo de investigação lituano que tentou entender
as despesas de uma associação local. Além disso, graças
igualmente aos esforços de ideólogos, conclui-se que, uma vez que
os homossexuais não se conseguem procriar biologicamente,
multiplicam-se através de propaganda, da qual fará parte, sem dúvida
alguma, este livro. Pelo menos, de acordo com um político lituano,
cujo nome é citado, mas que julgamos não ser importante para o
cômputo da inteligência humana. (Mais)
No
seu monumental Journal,
uma das diatribes mais argumentadas e fortes de Fabrice Neaud é
contra a ideia da “tolerância” da sociedade para com os
homossexuais. Para Neaud, a própria noção de tolerância parte de
um pressuposto de existir, naturalmente, uma determinada ordem das
coisas, face à qual será possível aceitar um seu desvio. Mas
desvio, ainda assim. Uma personagem neste livro, e com razão, também
advoga que não deveriam “pedir pelos direitos” mas “exigi-los”.
E esta questão é profundamente ética, na verdadeira assunção da
palavra. Não se trata de discutir algo que “poderia ser”, que
“poderia ter lugar”; não, é algo que “deveria ter lugar”,
sem quaisquer possibilidades de concessões. Pois porque haveria
concessões que dizem respeito à realidade emocional, psicológica,
económica e política de seres humanos idóneos, responsáveis e,
acima de tudo, livres?
Joana
Estrela é uma jovem autora de banda desenhada que passou uns meses
como voluntária na cidade de Vilnius, na Lituânia, um jovem país
de história atribulada nas transformações de poder desde a 1º
Grande Guerra, que ganhou a sua independência da União Soviética
em 1991 e se tornou parte da União Europeia há cerca de dez anos. O
seu voluntariado foi feito numa organização não-governamental,
chamada Lithuanian Gay League, ou LGL, e o objectivo do seu trabalho
era preparar tudo aquilo que seria necessário para a organização
da “Marcha pela Igualdade”, ou Baltic Pride, sendo esta uma
palavra apropriada um pouco por todo o mundo (em Portugal, é a ILGA
que organiza o anual Arrail
Pride),
e que provoca alguma discussão nesta narrativa.
Este
trabalho de Joana Estrela seria algo que se encaixaria perfeitamente
em Zona de Desconforto,
mas de uma maneira mais alargada. Na verdade, a autora cria uma
espécie de relato em que ela é o mecanismo espoletador da
perspectiva, mas não serve nem para criar “explicações”, nem
para construir, como poderia dar a entender o título, um “ensaio”
onde se esgrimariam argumentos “a favor” de uma determinada
natureza. Bem pelo contrário, é necessário algum empenho da parte
do leitor para identificar o que se passa nesta trama, que abdica de
quaisquer dramatismos ou estruturas narrativas usuais para nos
ofertar com um olhar, apaixonado mas sereno, sobre a vida como ela
discorre nos dias. Com efeito, a autora não parece particularmente
preocupada em construir uma autobiografia. No fundo, acabamos por
“saber pouco” dela, não se apresentando formalmente, nem criando
narrativas que fossem buscar uma narrativa de “origem da
personalidade” ou “da sexualidade”, nem coloca um qualquer
trauma ou grande acontecimento no centro dos acontecimentos. Há uma
pausa na sua estada na Lituânia, em que ela regressa a Portugal,
para passar o Natal no Porto: três páginas elípticas concentradas
numa amnésia provocada pelo álcool e nada mais. E praticamente
nenhuma das relações – familiares, de amizade, até amorosas –
são escavadas com pormenores.
É
como se a autora, mesmo colocando-se na esfera das acções, se
desejasse apagar a ela mesma com um peso excessivo, e se tornasse um
fantasmático ou efectivo eixo através do qual temos acesso aos
mecanismos e dinâmicas pessoais daquele grupo, LGL. Mais ainda, a
própria marcha acaba por ser uma espécie de McGuffin, uma vez que
nem sequer a “vemos” com extensão. Apenas lhe é votada uma
brevíssima passagem de três a quatro páginas, já no final, para
que se confirme tão-somente que o objectivo do trabalho de
Joana-a-voluntária, a sua realização, foi cumprido e isso em si
mesmo é uma vitória significativa.
A
atenção concentra-se então em todos os passos necessários para
que esta manifestação possa ocorrer, e os obstáculos naquele país,
sobretudo em termos políticos e societais, é imensa. Os jornais
mais tradicionais, e muitos dos agentes com poder mediático, como os
políticos e outros, exercem o seu poder não tanto para discutir
quaisquer possibilidades e limitações éticas que pudessem emergir
deste confronto de moralidades ou filosofias, mas para simplesmente
repetirem ideias feitas, nutridas por uma ignorância tremenda e pura
e simplesmente um medo irracional, talvez da felicidade dos outros.
Os disparates citados no primeiro parágrafo, infelizmente, não
foram por nós inventados, mas são antes citações directas do que
foi pelos vistos dito e debatido naquele país, devido ao trabalho da
LGL, e que Joana Estrela repete.
Entrar
nas discussões que envolvam a sexualidade quase sempre entram em
discussões apaixonadas e, as mais das vezes, enveredam por
justificações insustentáveis, agregando razões biológicas e
inatas, a desvios psicológicos, normas religiosas, ponderações
sobre o “futuro”, mas quase sempre se descamba, na nossa opinião,
em discussões azedas e sem sentido. Sobretudo humano. É portanto
salutar entender que Joana Estrela opta antes por uma discussão em
que representa/retrata as pessoas que a rodeiam nesta sua “aventura” não
tanto como representantes (num sentido político),
e muito menos como símbolos,
do que como pessoas.
Com preocupações banais, comezinhas, diárias, mas também com
todos aqueles gestos hercúleos necessários para criar condições em que possam viver precisamente como tais. Isto não significa que não
haja momentos em que se enfrentam os jogos absurdos das forças
políticas e dos moralismos em vigor, ou que não se procurem
desmontar os mecanismos que impedem estas pessoas, por uma questão
de sexualidade, de aceder a uma esfera financeira e legal da...
“normalidade”. Na Lituânia os problemas parecem ser de maior
monta do que em Portugal, ainda assim, apesar do nosso próprio
conservadorismo, valores patriarcais, algum grau de provincialismo e
os jogos de oportunismos políticos que trazem tantos paradoxos
(devemos regojizarmo-nos pelo casamento dito gay, mas deveríamos ter
profunda vergonha do que sucedeu a propósito do referendo de
co-adopção). Nesse sentido, talvez fosse desejável, digamos assim, encontrar em
Propaganda
um maior desenvolvimento contrastivo entre os dois países, em termos
de culturas e legislação, mas isso levaria precisamente o livro na
direcção da reportagem ou ensaio que não é o propósito da
autora.
Em
termos formais, Joana Estrela inscrever-se-á naquela escola que, nos
anos 1990, foi buscar o nome de “minimalismo”, mais ou menos de
forma ludibriada, mas que serviu para criar uma ideia de família e
eleger algumas características comuns. O traço, aparentemente a
lápis, descansa sobre o papel de uma forma limpa e desobstruída de
forma suficiente para a representação das coisas. Aqui e ali
espalham-se algumas manchas, tramas, ou mesmos “riscos” e
“caracóis”, para dar conta de uma sombra, uma textura, algum
volume. Se o trabalho de base pode lembrar um John Porcellino tardio,
as texturas aparentam-se às de Joanna Hellgren. Mas Estrela não
está presa a nenhuma fórmula de composição de páginas, existindo
desde grelhas regulares a splash
pages,
passando por “páginas-listas”, a composições mais livres e
vinhetas sem limites que permitem as personagens “flutuar” na
página, e há mesmo momentos (como a tal visita ao Porto) que quase
se aproxima de abordagens conceptuais ou abstractas. Como se costuma
dizer, faz lenha de toda a madeira para que possa ir procurando o
melhor veículo possível ao que quer contar.
Mas
estamos em crer que esta abordagem minimal tem a ver não apenas com
um “estilo” mas com uma urgência do gesto diarístico ou de
viagem, se assim se quiser compreender o livro. Ainda que possamos
ver esta redução das linhas ao que pareceria um conteúdo
informativo puro, uma funcionalidade rigorosa e objectiva em que toda
a visualidade redundante teria sido eliminada, essa leitura seria ela
mesma redutora e errada. Não há nada de diagramático nesta
simplicidade aparente, antes procurando-se uma outra via de
expressividade gráfica. Por exemplo, quando Estrela representa a
poetisa norte-americana Eileen Myles, que faz uma leitura num espaço
local, a artista opta por uma maior concentração figurativa e mais
um número de traços identitários para o retrato. Este está bem
mais próximo do rosto real de Myles, de uma forma bem diversa dos
“esquemas” mais generalizados com que se representa a si própria
e às pessoas com quem se dá diariamente. Também o fazendo em
relação a outras personagens identificáveis (políticos, líderes
da organização, etc.), esta abordagem diferenciada recorda ainda
Joe Sacco, na distribuição de estratégias visuais, salvas as
distâncias do “preenchido” do autor maltês-americano.
Publicado
em inglês, e igualmente disponível num formato digital pelo
site/blog da autora, este é um outro gesto da Plana, depois do
“comic” de Marco Mendes, e alguma outra produção. Com mais de
110 páginas, a opção de encadernação não deixa de ser algo
estranha. Se é sem dúvida mais barato fazer apenas um caderno
dobrado e agrafado com estas folhas todas, transformando-o numa
espécie de fanzine monstruoso, se se tivesse optado por mais
cadernos, ou uma qualquer outra escolha que levasse ao surgimento
de uma lombada teria inscrito este livro na categoria de, bom,
“livro”. Logo, estamos em crer que esta escolha não será
somente por razões financeiras, mas igualmente como forma de
inscrever na dimensão textual uma opção material que ecoa uma
opção política, reforçando de novo um intento global.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e a João
Machado, por nos ter colocado na senda dele.
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