Encerrar
um artista na sua nacionalidade, para nela procurar as razões da sua
abordagem, é algo redutor. Esse tipo de determinismo raramente nos
ajuda a compreender as suas opções, para além daquelas
circunstanciais que ditarão, por exemplo, a integração num modelo
editorial. Como o comic book, o tankobon, o álbum
franco-belga, o fanzine, ainda que mais recentemente, nos centros de
maior produção ou informados pelas tendências internacionais, o
advento do “livro”, ou “graphic novel” se preferirem, parecer
um modelo mais divulgado, mesmo que seja um modelo precisamente
marcado pela sua diversidade. Mas no caso deste título em
particular, a nacionalidade tem um papel decisivo, ou pelo menos uma
sua integração na história nacional, e a escolha da forma e modo
de edição é determinante também em relação ao seu significado
geral. (Mais)
Olivier
Schrauwen pertence a uma nova geração de autores belgas de
expressão flamenga que procura seguir tendências internacionais de
uma banda desenhada contemporânea, tanto atenta à sua própria
história global e prismática como a novas formas, mais livres de
géneros, de abordagens visuais convencionais, ou até mesmo de
coerência de estilo. Não se pode falar de “escola” no seu
sentido clássico. Se o “território” em si produziu nomes
incontornáveis na história da banda desenhada infantil, como o de
Willy Vandersteen, ou autores que na esteira das escolas de Bruxelas
e de Marcinelle apagariam a sua “belgitude” em nome de uma maior
integração em mercados internacionais – numa primeira fase,
francês, depois, europeu – como Morris, Bob de Moor, e mais
recentemente Kamagurka (de Cowboy
Henk,
divulgado em Portugal através da brasileira Animal),
no tempo presente a saúde dessa produção muitas vezes fica-se pelo
circuito Flandres-Holanda, através de editoras como a Bries, a
Oogachtend, mas também a holandesa Oog & Blik, entre outras
menores. Ainda assim, têm aparecido casos de sucesso internacional,
graças a traduções e prémios, como os de Brecht Evans, Judith
Vanistendael, e mesmo Pieter de Poortere.
Todavia,
isso não significa que os autores não traduzidos não procurem
também dialogar com um mundo mais alargado. Tão-somente não o
conseguiram até agora. Mas basta olhar para a forma como compõem as
páginas, o número de referências visuais que se convocam nelas, os
temas abordados, para verificar que nada têm de provinciano nas suas
tentativas de expressão. Schrauwen é um caso particular de sucesso,
sobretudo com My
Boy.
O crítico belga Gert Meesters falou da obra de Schrauwen como que
criando “uma rede de estilos” e, realmente, uma passagem de olhos
mesmo que cursória pelo volume The
man who grew his beard (Bries
e Fantagraphics) mostrará como cada narrativa, pois trata-se de uma
antologia de histórias curtas, senão mesmo no interior de cada uma
delas, o autor revisita toda uma série de registos figurativos,
estilísticos, composicionais, cromáticos e até no que diz respeito
a outros aspectos da materialidade da imagem (brilho, nitidez,
efeitos que imitam formas de fabrico e impressão das imagens), etc.
que compõe a história da banda desenhada.
Já
em My
Boy,
o livro que o lançara num certo estrelato, notava-se a forma como as
pequenas histórias não podiam ser lidas de uma forma independente
do conhecimento da história da banda desenhada. De certa forma,
existem algumas afinidades com aquilo que verificáramos em relação
ao trabalho de Closser, se bem que este autor norte-americano não
apenas surgiu depois
– pelo menos em termos de grande visibilidade – como não procura
reinventar
a tradição que mima, como víramos. Se Closser cria um “faz de
conta” em que a sua obra teria um lugar hipotético num passado
reinventado, Schrauwen deseja que olhemos para o passado de uma forma
mais crítica. Isto é, ele quer assegurar, como queria Walter
Benjamin, que olhamos sempre para o passado através dos olhos do
presente. Na verdade, Benjamin utiliza uma expressão que transforma
o telescópio numa forma verbal, e esse aparelho óptico, criando uma
proximidade sem destruir a distância, é perfeito para dar conta do
mecanismo criado por Schrauwen.
Benoît
Crucifix, num ensaio inédito, fala ainda de um “estilo citacional”
deste autor, o que é muito apropriado, mas em vez de uma aproximação
somente a um ou outro autor em particular – como nos casos mais
óbvios de McCay (não apenas o do Little
Nemo
mas também de Sammy
Sneeze e
Rarebit
Fiend)
ou Hergé, ou mais obscuros como Charles Forbell) – interessará
mais a abordagem e apropriação materialista, da cor da impressão,
que ganha neste caso um valor patente e gritante na superfície. E
aqui há um elemento importante que nos liga à primeira parte da
discussão, sobre a circulação social, editorial e material. É
que, curiosamente, apesar da circulação dos seus livros “maiores”
e de ter presença em títulos prestigiantes como a Strapazin,
a Canicola,
Kuti
Kuti,
Mome
e a kus!,
o autor parece ter-se virado para plataformas independentes e até
mesmo de auto-edição, em baixas tiragens, primeiro com Le
miroir de Mowgli,
de 2011, e agora com esta trilogia (falta o terceiro número ainda)
impressa em risografia.
De
que se trata Arsène Schrauwen? É precisamente o tema que
permite apresentar Schrauwen como um autor belga do seu tempo.
Crucifix, no mesmo escrito, fala de uma “ideologia residual” do
colonialismo presente neste título, mas que é já herança das
explorações sobre o mesmo tema nos livros anteriores do autor.
Podemos mesmo dizer que o colonialismo belga pode ser mais do que um
tema, ou então entender “tema” de uma perspectiva musical, em
torno do qual se vão explorando várias composições. Em Arsène
essa obsessão torna-se instrumental e central pelo facto de se
tratar igualmente de, pelo menos se crermos na afirmação textual do
autor, uma biografia do avô.
Basicamente
esta trilogia reconta as “aventuras” do avô Arsène na
“colónia”: a sua partida de um cais belga, o isolamento a que se
entregou durante a travessia no barco, que levou desde lá a pequenos
episódios quase-psicóticos, a sua chegada ao destino onde se
encontra com o seu primo empreendedor e que lhe promete um lugar de
trabalho num projecto megalómano, que constrói com o apoio
financeiro do pai da sua mulher, uma segunda fase de isolamento que o
leva quase à loucura – ou pelo menos à travessia de uma fase
louca, provocada por levar à letra um conselho de um companheiro de
viagem, que lhe cria uma imagem de perigo biológico na densa e
misteriosa África, etc. Mas rapidamente as dendrites do perigo se
estendem à sexualidade (ele apaixona-se pela mulher do primo), à
violência (cita-se uma intriga de um romance pulp que lê [ver prancha adiante],
que promete ser um espelho do que se passará na intriga da sua
própria vida), às distâncias raciais (o branco colonizador versus
o selvagem local), e até mesmo alguns traços que parecem nascer da
banda desenhada do tempo histórico correspondente – uma cidade
futurista à la Saint-Ogan, o carro anfíbio digno de um Franquin, as
alucinações tenebrosas típicas de um Haddock em delirium
tremens, etc.
Se
acreditarmos que este projecto é de facto “real”, isto é, que
há mesmo aqui um pacto histórico de que o autor está a contar-nos
eventos reais ocorridos na vida do seu avô, é por demais visível
como todos os elementos diegéticos não deixam de espelhar as
estruturas e ingredientes que fizeram toda a história de um número
de géneros da banda desenhada de aventuras da primeira metade do
século XX, e até para além disso. Mas tal como nos casos
anteriores, em que a citação não deixa de criar uma certa
distância que nos exige a reler
essas mesmas aventuras, “sombras” ou “fantasmas” sempre
presentes – enquanto “traços” - nesta obra presente – em
termos cronológicos – Arsène quer ser lido enquanto também
comentário dessa outra tradição criativa.
A
colónia, por exemplo, não é chamada pelo nome (Congo, quase
certamente), mas simplesmente como “colónia”. Há uma recorrente
repetição dessa ausência
noutra escala na forma do “rapaz” que vive numa barraquita perto
da casa de Arsène, que lhe traz cerveja e ovos, lhe limpa a casa e
faz outros serviços, mas nunca aparecendo fisicamente – nem sequer
a partir de uma perspectiva externa e universal. Há portanto um
apagamento dos traços locais da colónia e os seus habitantes –
quando surgem, é apenas em cenas que representam descrições de
outras personagens que não Arsène, logo imaginamos serem imagens
mentais do protagonista, e os corpos dos “nativos” não diferem
na roupa e aspecto dos cabelos, por exemplo, do que outros belgas,
ainda que não tenham rostos – um apagamento que não deixa de
ecoar com a “des-belgização” típica que ocorreu na banda
desenhada belga entre as décadas de 1920 e 1930 (em Tintin,
em Spirou,
etc.), para que essas personagens fossem mais “acessíveis” a um
público mais vasto, como já citámos.
Na
Bélgica fala-se mesmo de um “Congo à papa” e de uma “Belgique
à papa”, imagens que nutrem a ideia de uma narrativa fechada,
suave, sem grandes problemas de herança multicultural, de violência,
de atropelos éticos, religiosos e de um grande custo humano, e onde
a perspectiva congolesa é simplesmente apagada. Nesse sentido, não
é muito diferente do fenómeno de “silenciamento” ou
“indiferença” que pauta a atitude em Portugal para com o seu
passado colonialista, se bem que existam diferenças quer de grau
quer de natureza entre as relações das duas “metrópoles” com
os respectivos territórios africanos.
O
crítico de arte Hal Foster, num seu ensaio intitulado “The
Funeral is for the Wrong Corpse” (em Design
and Crime and Other Diatribes)
fala dos modos como, no círculo das artes, existem várias
categorias ou versões de uma “sobrevivência” (a expressão em
inglês é “living on”) de processos, técnicas e posicionamentos
críticos em relação às instituições que se perseguem em
momentos mais tardios (no seu contexto particular, e simplificamos
drasticamente, como o modernismo sobrevive no pós-modernismo). Estas
categorias não são puras, antes surgindo como graus ou intensidades
momentâneas e que se cruzam, sendo aquelas que ele chama de
“espectral” e “não-síncrona” a que mais parecem adequadas
para caracterizar este livro.
Em
relação à primeira, estamos a falar da utilização de, por
exemplo, formas ou estratégias de géneros anteriores, mas de uma
forma diluída, espectral, ou como Freud diria, unheimliche:
a acção no Congo traz de imediato à mente toda a banda desenhada
que se relacionou com o projecto colonizador, quer se o queira
unilateral e redutoramente entender como racista,
paternalista,
civilizador,
obsceno,
inevitável,
histórico.
O processo é bem mais complexo do que isso, e os instrumentos
pós-coloniais que têm lido Tintin,
Zig
et Puce,
Spirou,
e outras séries menos conhecidas do público português, ou até
mesmo trabalhos de outros países (como Portugal) em relação às
suas ex-colónias (veja-se o trabalho de Mark McKinney), têm
libertado muitos dos elementos a ler nesses textos originários. Mas
Arsène
Schrauwen
faz parte desde logo, enquanto texto primário, desse discurso
secundário também sobre esses outros passados. Há momentos mesmo
em que a transformação física do avô Schrauwen num louco barbudo,
isolado e alucinando nos faz pensar num capitão Haddock, como
dissemos, mas abandonado no tecido histórico a que nunca, afinal de
contas, pertenceu de pleno direito.
Quanto
à categoria “não-síncrona”
de Foster, refere-se ao uso de técnicas aparentemente obsoletas para
as deslocar socialmente no presente. Associando-as ao “fora de
moda” dos Surrealistas, estudado por Benjamin, Foster explica como
esta estratégia “cria pressão sobre as ideias preconcebidas
totalitárias da cultura capitalista, e questiona a noção de
intemporal de que se reivindica.” Isso é visível também em
Arsène,
pensamos, por um lado por o autor estudar formas de produção,
materialização e circulação que não estão no seguimento
“natural”, ou pelo menos “expectável” do seu sucesso
comercial e editorial anterior (ele deveria afinal “crescer”), e
ainda mais por empregar risografia, uma técnica que recupera formas
de trabalho de impressão mais artesanais (uma espécie de nostalgia por tecnologia recente parece ter tomado conta de todo um sector de banda desenhada independente), como também, por outro
lado, trabalha sobre a intemporalidade suposta das séries de banda
desenhada sobre as quais, mesmo que de modo oblíquo, trabalha.
Haveria
ainda algo a dizer sobre o trabalho de cor, de composição de
páginas e até mesmo de figuração e representação, que é
paradoxalmente simples – em termos técnicos, se preferirem – e
complexo – em termos das suas repercussões de significação. O uso de vinhetas de cantos arredondados para imitar formas cinemáticas, ou de romances visuais dos anos 1920 e 1930, o uso de um inglês pejado de erros e imprecisões, etc. seriam ainda outros elementos. Todavia, talvez com o terceiro volume possamos regressar à
discussão, pois seguramente que este será um título estimulante
nos próximos anos.
Nota
final: agradecimentos a Benoît Crucifix, pelo empréstimo dos
livros.
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