31 de maio de 2012
Unterzakhn. Leela Corman (Schocken Books)
Há mesmo já uma tradição, por assim dizer, da banda desenhada (ou “graphic novel”) judaica, isto é, melhor dizendo, judaica-americana, não no mero sentido de ter sido a própria indústria dos comic books produzida e desenvolvida num cadinho habitado sobretudo por segundas gerações de emigrantes judeus da Europa, mas por ter temas abertamente relacionados com as culturas específicas judaicas do “Velho Mundo” e a sua adaptação ao “Novo”. Não tendo necessariamente que abordar a Shoah, esse continua a ser uma espécie de eixo comparativo, capaz de lançar a sua sombra e presença quer no “seu” passado - através das várias formas da violência anti-semita que se verificou pela Europa fora, sobretudo na Rússia, que tem um papel preponderante neste livro - quer no futuro, nosso presente - através de preconceitos vários que se continuam a verificar, imaginários que sobrevivem ou pura e simplesmente um quadro de referências em relação ao qual a identidade judaica se forma, com um menor ou maior grau de discussão. E em Unterzakhn a representação do bairro do Lower East Side como um shtetl, os diálogos temperados com iídiche, a memória da Rússia, as constantes referências anti-semitas à cultura e identidade judaica reforçam esse espaço imaginário. Se se pode ver em Maus, de spiegelman, o seu primeiro grande representante, nomes tais como os de Will Eisner, James Sturm, Miriam Katin, Ben Katchor, ou projectos híbridos como o livro de Bernice Eisenstein, fazem parte dessa linha contínua (e ainda haverá a presença de traços distintivos dessa tradição em trabalhos mais convencionais, e mesmo da indústria mainstream). Fora dos Estados Unidos, talvez Joann Sfar seja o nome maior desta tradição que “olha para trás”. Há mesmo um volume académico dedicado a esta tradição, The Jewish Graphic Novel: Critical Approaches. Ora Unterzakhn inscreve-se aí.
Se a trama se prende ou concentra no crescimento de duas irmãs, filhas de emigrantes judeus russos nas primeiras décadas do século XX numa Nova Iorque em que a mobilidade social se faz através dos mais variados meios, o retrato que Unterzakhn propõe é bem mais alargado. O título remete a um termo iídiche que diz respeito à “roupa interior”, mas que tanto diz respeito ao pequeno atelier que a mãe de Esther e Fanya tem, mas igualmente a uma ideia que seria expressa em bom português de “roupa suja lavada em praça pública”. Apesar de estarmos a falar da cidade de Nova Iorque, a concentração numa meia-dúzia de ruas ou bairros e de uma rede circunscrita de personagens faz pensar sem dúvida numa pequena aldeia em que não só todos se conhecem como todos têm algo a dizer (maldizer) do outro a um terceiro. As duas irmãs revelam pequenas diferenças logo na infância, e que lhes ditará os caminhos de educação e sobrevivência de cada uma, cada vez mais divergentes, ainda que a natureza de uma obra de ficção fechada dite a que se procure uma qualquer espécie de desenlace reequilibrador.
Uma vez que esta história revela alguns elementos do melodrama, no sentido em que paradoxalmente pode apresentar uma faceta escapista, dada ao exagero das emoções, sobretudo as mais dramáticas, e uma certa exploração da esqualidez da vida das protagonistas, mas ao mesmo tempo revelar um aspecto subversivo pois dá corpo e voz a classes usualmente longe das representações, ficcionais ou outras, não é de estranhar que preencha aquele fito indicado pela teórica de cinema E. Ann Kaplan de oferecer um “contexto de uma procura por uma identidade, ordem social e regras morais nítidas segundo as quais viver na modernidade”. Partilhará ainda, e igualmente, elementos que já vêm da tragédia, como a da “catástrofe”, no seu sentido literário, do resultado final advindo da tensão entre aquilo que estava previsto desde o início (a pobreza, a impossibilidade de ascensão social, a inevitabilidade judaica) e os desafios a que as personagens se entregam para escapar desse destino: Fanya aprendendo a ler, envolvendo-se com uma espécie de ginecologista, assistente social e feminista da primeira vaga, trabalhando em abortos, contraceptivos, tentativas de educação das mulheres das classes sociais mais desfavorecidas em relação à higiene, ao planeamento familiar, mas igualmente aos seus direitos, quer em casa quer enquanto cidadãs lutando pelo direito de voto; Esther começando como empregada num bordel e depois tornando-se, sequentemente, prostituta, entertainer e grande estrela do vaudeville da época. A catástrofe é literal, uma vez que a dor e a morte são o corolário do “progresso” dessas duas irmãs que se reencontram no fim, depois da crise - económica, moral - as ter separado. Não sendo a última imagem, nem a última cena, quando Esther abraça a irmã na cama, que sofre das dores da gravidez complicada, e lhe assegura estar ali para ela, o regresso da harmonia não poderia ser mais marcada.
O uso da palavra progresso não é por acaso. É na verdade tentador olhar para este livro sob a luz, longínqua mas decisiva, do ciclo de doze gravuras Industry and Idleness, de William Hogarth. Nesse ciclo, o autor inglês expunha em paralelo o progresso moral e profissional de dois aprendizes de tecelão, um dos quais se apresentava com todas as características de um bom cristão - empreendedor, dedicado, cheio das virtudes cristão da fortaleza, caridade e temperança, e por isso recompensado socialmente - ao passo que o outro padece de todos os pecados capitais - é ocioso, dado ao jogo, não respeita a eucaristia, e é por isso condenado. Leela Corman, em muitos aspectos, segue as pisadas dessa e de muitas outras histórias em que se constrói uma alegoria moral em torno de duas personagens que partem de um mesmo ponto comum, e cujos caminhos divergentes levarão a desfechos contrários. A partir desses desfechos, a moral é exposta. Porém, como não poderia deixar de ser em relação a uma obra contemporânea, inteligente e até mesmo respeitando um certo espírito de contradição interna cultivado no judaísmo, algo estranhamente socrático, que prefere responder às perguntas com mais perguntas, Corman não constrói uma fábula moral linear e indiscutível. Ambas as personagens sofrem de contradições internas, e nenhuma delas pode ser vista como a “boa irmã” ou a “ovelha negra”. O contexto social e cultural tem um terrível peso na equação do crescimento de ambas.
Afinal, se o trabalho social e político de Fanya a vai tornando uma mulher que molda toda uma série de princípios éticos que tenta pôr em prática na sua vida, não é morosa a sua descoberta da hipocrisia que a rodeia e das dificuldades insuportáveis que é levar a bom porto essa disciplina ética férrea. Aliás, será mesmo no seu corpo que se inscreverá o erro e a ironia da sua vida. Por seu lado, Esther parece mergulhar no mais abjecto dos mundos, mas é o seu pragmatismo que acaba por se revelar como um traço superior de sobrevivência e até de providência. De certa forma, há em Unterzakhn uma noção enviesada de que a conquista da mulher pela sua própria força e personalidade pode passar por escolhas que as feministas, de primeira ou outras vagas, julgariam como impensáveis e degradantes. E, por isso, mais efectivas, duradouras e valorizadas do que a miséria de um “caminho moralizador”. Contudo, não se entenda esta mera descrição como desprovida de reduções drásticas. Não há, a nosso ver, qualquer tipo de julgamento da parte da autora/narrativa; bem pelo contrário, este é um retrato mais do ser humano do que de figuras alegóricas de uma moral, e nesse sentido está muito afastado do programa de Hogarth.
Portanto, temos neste livro uma complexa mescla entre retrato de uma época, sobretudo na luta pela identidade e criação de direitos de classes desfavorecidas a vários graus (mulheres, pobres, judias, em profissões “de risco”), fábula moral, e re-lançamento de uma memória cultural na qual a autora poderá reivindicar as suas raízes (se bem que não existam traços facilmente identificáveis que iluminassem o papel da própria banda desenhada no seu contexto actual enquanto reflexo das outras artes tratadas no livro, na sua época histórica).
A combinação - e necessária negociação e tensão - entre a história das duas irmãs e a do pai na Rússia, fugindo dos pogroms dos cossacos, é muito própria dessa tradição indicada (podendo mesmo encontrar em Maus o seu gesto inaugural neste território criativo, mas tendo raízes literárias). Essa é uma interrupção longa na diegese que faz repensar a ideia de destino, tão típica do judaísmo, mas também serve para não só reconstruir a imagem do pai que fora possível até esse momento como ainda servirá de entendimento das conquistas entretanto conquistadas… O desfecho do livro volta a empregar uma analepse, dando a entender que as memórias felizes têm de ser necessariamente portos de abrigo suficientes para o sofrimento do presente. Como diz um provérbio iídiche (parafraseamos de cor), “os vermes comem-te morto, as preocupações comem-te vivo”. A memória serve assim de consolo, mesmo que momentâneo.
Corman tira partido, em alguns momentos, da compressão dos eventos, empregando aquilo que Scott McCloud chama de “transições de cena a cena”, mas de uma maneira que permite compreender o modo como as relações entre as personagens se vão alterando à medida que o tempo passa, assim como a subentender os eventos que não são representados de forma directa, mas que influem nessas mesmas relações. Isto permite que, numa economia representacional (isto é, um número circunscrito de vinhetas e/ou pranchas), se avance a largos passos no tempo diegético e na complexidade dos eventos. Os actos de maior violência - duas violações, assassínios, as mortes de algumas personagens - nunca são representados de modo directo (algo que, por exemplo, Craig Thompson não se coíbe de fazer, senão mesmo explorar, em Habibi), precisamente para haver uma maior focalização nos seus efeitos afectivos sobre as personagens envolventes.
Os desenhos da autora, assim como o seu trabalho de composição, de gestão entre texto e silêncio, figuração e colocação das personagens, é relativamente convencional e simples, mas de uma extrema pertinência e com um grau de expressividade pessoal que lhe garante o poder de assinatura. Algumas personagens, por exemplo, apresentam cabelos “selvagens”, e estes são representados por manchas cruas ora de lápis ora de tinta meio-seca, sendo trabalhos de diferenciação gráfica interna ao livro (e essas pilosidades têm alguma importância no trabalho de identidade dos judeus neste livro). Alguns cenários são construídos de forma sumária, quase como apontamentos, para haver uma maior concentração na expressividade das personagens. Há um equilíbrio significativo entre momentos de imitação de grafismos da época (cartazes, panfletos, montras, pormenores de vestuário ou de arquitectura) e outros em que o pincel se abandona à mais repentina das passagens. E o trabalho de legendagem é tão pessoal que unifica todas as palavras num contínuo plano, unindo as personagens a um quadro coeso.
A autora tem alguns livros publicados, como a sua série pós-punk Subway Series, mas parece-nos que esta é a sua produção mais acabada, quer em termos de desenvolvimento gráfico quer literário (no seu mais integrado aspecto no plano da banda desenhada, como é natural). Seguramente, porém, Unterzakhn se tornará uma referência maior, citada, influente e estudada.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Publicada por Pedro Moura à(s) 3:45 da tarde 0 comentários
Etiquetas: EUA
30 de maio de 2012
"Estudo para banda desenhada", poema de António Barahona
treparam à colina onde corria
um bando de crianças à gandaia
em redor duma casa arruïnada,
tão depressa, em banda de surpresa,
que ganharam tal mêdo na subida
lentamente assombrados por medida
de Deus, que mede os sustos sem ter
/pressa
Depressa, mais depressa: segredava
a rapariga atlética ao poeta
no balão da legenda: as crianças,
aos gritos, entretanto, param a corrida:
emudecem ao ver o som e as dansas
do casamento alquímico das sombras
De Raspar o fundo da gaveta e Enfunar uma gávea (Averno 2011, pg. 108). Nota: foi respeitada a ortografia pessoal do autor, considerando "que o rigor do pensamento tem relação efectiva com a ortografia" (Rosa Maria Martelo, "Procrustes e a ortografia", in Cão Celeste # 1).
Publicada por Pedro Moura à(s) 8:41 da manhã 0 comentários
28 de maio de 2012
Celluloid. Dave McKean (Fantagraphics)
A banda desenhada não é alheia à pornografia, mas a sua introdução em produções visíveis, comercializadas legalmente e até mesmo celebradas publicamente é algo de muito recente, podendo apontar-se, no Ocidente, para os primeiros movimentos do underground comix na década de 1960 - com autores como S. Clay Wilson e Crumb e que rapidamente atingiriam explorações histéricas com títulos tais como Bizarre Sex, Young Lust, entre tantos outros - e no eixo transformador das publicações afectas a Eric Losfeld no final dessa mesma década em França, e que permitiria a introdução de um erotismo (ou pura e simplesmente cenas de “fan service”) mais directo na banda desenhada mainstream, por um lado, e, por outro, o surgimento de pornografia no meio com distribuição comercial e “visível”, desde autores inovadores em mais do que um factor, como Guido Crepax, a outros que ainda procuram uma torção interna qualquer, como Roberto “Magnus” Raviola, àquelas mediocridades de grande sucesso, como Milo Manara ou Paolo Serpieri… Compreender-se-á igualmente que, apesar de tudo, estes autores profícuos no desenho só poderiam surgir num ambiente que lhes permitisse desenvolver os instrumentos, e a Itália parece ter sido um território perfeito, ao contrário de Portugal ou Espanha, que preferiam a “porno-chanchada”, com histórias derivativas e desenhos verdadeiramente medíocres, salvo raríssimas excepções. Em França, poder-se-ia falar de Varenne, de Pichard, de Forest. A aliança entre a pornografia e o humor é vetusta, das Tijuana Bibles a projectos como os de Wallace Wood, Firkin de Hunt Emerson e Tim Manley, ou os volumes Dirty Stories, a alguns dos títulos da Eros Comix. E a procura por nichos de mercado especializados (e por vezes na corda bamba da legalidade) não está ausente desta equação tampouco, desde as Bondage Fairies à Softpaw Magazine.
Porém, qualquer tentativa em criar pornografia na banda desenhada mais interessante, quer do ponto de vista narrativo, político, gráfico ou até meramente sexual - quer dizer, que explore a sexualidade ou as relações sexuais de uma forma mais cabal, integrada, variada e subtil - é não só rara como difícil de ocorrer. Existirão alguns casos e algumas das histórias de True Porn ou da XXX Strip Burger que poderão estar próximos desse fim, ou a obra de Alex Barbier, mas a “universalidade” sexual é uma contradição de termos, desde logo… E se envolver questões de ética, por exemplo, a discussão torna-se ainda mais complexa, apaixonada e difícil, sobretudo com trabalhos como Elles de Frédéric Boilet ou Paying For It de Chester Brown. Celluloid, ainda assim, é uma dessas tentativas, em que Dave McKean parece reunir todas as suas forças e metodologias criativas para nos ofertar uma experiência de leitura que seja, a um só tempo, titilante, apelativa, aberta e subtil.
O livro não tem texto, e apresenta quase sempre uma imagem por página, e por vezes recorre mesmo à dupla prancha. Nos casos em que há subdivisão do plano de composição ou é para dar conta de um movimento rápido, ou de um pormenor, ou tira partido das especificidades materiais da película de filme, que não só dá nome ao livro como é o seu mote. A história em si é tanto clara como complexa. Uma sua descrição é simples de obter: uma mulher entra num apartamento, não consegue convencer o seu parceiro a visitá-la (ele está ocupado com trabalho), e ela resolve tomar banho. Nele, acaricia os seios e depois deita-se nua no sofá, ofertando desde logo os seus dotes e beleza ao olhar do leitor - que pela economia usual, é um olhar masculino ou masculinizante. No centro da sala encontra-se um projector (de 16 mm, parece-nos), que a protagonista acciona, e que projecta um filme pornográfico - as imagens, fotográficas e riscadas, não são claras, mas percebe-se ser uma mulher com uma máscara fantasiosa veneziana, de gatas, e um homem por trás. McKean tira proveito de uma “montagem paralela”, em que numa página temos três “fotogramas” do casal, e na outra página a protagonista masturbando-se. O filme acaba por queimar-se e quebrar, e revela-se uma porta projectada na parede, que não estava ali antes. A mulher abre-a, dando início assim a uma travessia de várias paisagens que podemos chamar de oníricas, em cada uma delas dando-se encontros sexuais de naturezas diferentes.
Até certo ponto, McKean identifica esses espaços ao atribuir-lhes marcas distintas, ou melhor, ao alterar as técnicas de representação correspondentes a cada um deles, reforçando a ideia de diferença e travessia. Podemos identificar talvez sete espaços. A sala de estar, que corresponderá ao momento “real”. Uma praça exterior, com uma fonte, do outro lado da porta projectada, em que a protagonista encontra vários casais envolvidos, e onde ela projectará um segundo filme, que a “acariciará”, e que lhe abrirá passagem a uma espécie de paisagem natural. Essa paisagem, verde, onde se envolverá com uma primeira personagem, espécie de deusa Artémis de Éfeso fantasiosa (pelos muitos seios) e Baco embriagado (pelos cachos de uvas por cabelos). Um espaço interior e nocturno, para o qual acorda, e onde dará prazer oral a um demónio à Fuseli. Um quarto etéreo onde observa uma sósia a receber prazer oral de um homem. Um terceiro projector abre uma porta no interior da qual uma imensa e desincorporada vulva despede um homem fantasmático com o qual faz amor (na posição a quatro patas idêntica à do filme primeiro). Segue-se um espaço de passagem interno, intervalar, em que a protagonista - agora representada de modo fotográfico e claro, sem quaisquer manipulações - se apresenta a um público que aplaude, e logo a seguir, de novo na sua forma desenhada, desaparece no interior de uma luz pura. A última parte do livro, espécie de prólogo, mostra o amante a chegar a casa, procurando-a e a recorrer ao projector, onde troca olhares com a actriz, talvez fazendo pensar numa comunicação transcendente ou então uma repetição do padrão.
Se esta descrição é longa demais, e revela em demasia a história, a verdade é que a sua leitura analítica exige um cuidado particular, precisamente para entender que forças estão patentes nesta obra de McKean.
Esses aspectos estruturais da história fazem recordar narratemas comuns, e que encontraremos desde Alice no País das Maravilhas a, mais óbvio neste campo, o filme Behind the Green Door: A passagem para um outro mundo, aparentemente paralelo ao real, serve para dar a ver a protagonista e entrar numa esfera que tanto pode ser vista como sendo a das fantasias, dos sonhos, e ao mesmo tempo servirá de uma “defesa” do real. No entanto, uma vez que as passagens propriamente ditas são ora “horizontais”, dando a sensação de simplesmente se atravessar para um local à frente - como nos casos em que a protagonista atravessa - ou “de nível”, em que parece entrar numa esfera espacial ou existencial interior à de que parte - como no caso das projecções nas paredes - essa ideia de viagem torna-se complexa e impossível de cartografar. Assim, deveremos apreciar cada “episódio” como se fosse um bloco específico de sensações, a ser apreciado em si mesmo. A ausência de texto apenas confirma a ideia da pulsão escópica contínua. Afinal, um livro que não tem palavras parece convidar apenas ao olhar (é claro que a leitura ocorre, pois cognitivamente fazemos associações e gestão dos acontecimentos que se desenrolam com as personagens, mas ela é, pelo menos aparentemente, suspensa; dir-se-ia, comummente, “não tem história”, é “muda”, etc.), podendo mesmo tornar-se mais “rápida” de ler, ou, por outras palavras, convidar ao frenesim de Tom Gunning, citado por Linda Williams no título indicado.
No entanto, eis outro aspecto que se torna complicado. A transformação do óptico em háptico é absolutamente clara, e não somente por haver mãos que tocam corpos, ou os seus próprios corpos, ou o autor empregar imagens que convidam à ideia de texturas tácteis, inclusive pelo uso de planos aproximados ao centímetro (algumas imagens fotográficas são explícitas, invasivas, pormenorizadas, como as do clítoris da actriz). Por exemplo, da superfície da segunda projecção, onde a imagem se deveria formar, brota uma enxurrada de mãos (claramente masculinas) que se dirigem à mulher e a acariciam sexualmente: metáfora clara da tal “interactividade física” da pornografia? De como um filme nos pode “tocar”? Não pode ser por acaso, também e seguramente, que a imagem fílmica (fotográfica) na primeira instância se começa a queimar precisamente pelo olho da actriz. São vários os momentos em que os olhos das personagens explodem em luz, por vezes como que uma metáfora do orgasmo. Mas é importante notar igualmente que há momentos em que o enquadramento e a focalização dos olhos, sobretudo da “actriz/modelo” de carne e osso, faz pensar em que ela nos olha, isto é, como se ela ganhasse consciência e pudesse, dessa forma, desvirtuar parcialmente a natureza voyeurística do tal olhar heteronormativo, como se essa consciência limitasse a objectificação possível e em curso, e lhe ofertasse algum grau de controlo na entrega ao prazer do leitor, ou leitora.
Uma vez que a esmagadora maioria da pornografia é produzida por agentes e dedicada a um público heteronormativo, e sobretudo masculino, é mais raro encontrar produções pornográficas fora do âmbito das sexualidades minoritárias que seja capaz de criar discursos não apenas inovadores como para além da mera defesa do próprio género (se o quisermos chamar assim, se bem que não seja a palavra apropriada). Seria expectável encontrar algum tipo de “crescimento” ou complexificação ao longo da diegese, mas não nos parece que isso ocorra. A mulher não ganha um papel cada vez mais activo, nem a sua posição - mesmo no interior da variedade sexual - aumenta em relação aos seus parceiros sexuais. Seria interessante encontrar nas dimensões materiais de cada método gráfico uma espécie de avanço, e até certo ponto isso pode ser argumentado, mas mesmo tendo em conta que a cena final mostra a protagonista na sua forma real (em relação à nossa realidade) e fotográfica, ela não ganha mais “volume”, uma vez que se apresenta como uma actriz, surpresa em descobrir um público a aplaudi-la. Quer dizer, se ela é sujeito observador no princípio, passa a parte activa nalguns episódios mas acaba novamente observada (e observando?). O facto de usar máscaras e o público também, aliada a um porta-chaves que remete a Paris, faz apenas recordar clubes reservados e festas particulares BDSM nessa cidade, cuja secretividade e jogos eróticos fazem aumentar a disponibilidade, a liberdade de gestos, a ultrapassagem de barreiras sociais, mas ao mesmo tempo poderá acarretar a impossibilidade da comunicação entre personalidades totalmente alertas ao outro. Por outras palavras, as relações sexuais desprovidas da palavra, da personalidade, e por um total e abandonado contacto físico que tipo de vantagens e problemas acarreta? Celluloid não responde a essas e outras questões, mas contribui para a sua formulação.
Uma vez que a banda desenhada é um meio que vive da multiplicidade de imagens, ela apresenta, a um só tempo, alguns dos prazeres escópicos que são permitidos pela fotografia, o desenho e o cinema, a saber, a representação, a indexicalidade, e o movimento. McKean, ao empregar estratégias pluridisciplinares e a própria natureza usual da banda desenhada, consegue tirar partido de todas essas dimensões. Apesar de um desenho não ser indexicalizado como uma fotografia, isto é, não tem elementos que façam pensar na realidade física e tangível da presença de um corpo que se representa, o uso da fotografia, da montagem e da ideia do modelo, em Celluloid, leva a essa noção.
Não podemos operar uma separação brutal entre as técnicas artísticas empregadas por McKean do que elas mostram, mas é isso o que faremos, por necessidade analítica. Como é de esperar deste artista pluridisciplinar, ele emprega todas as ferramentas que tem ao seu dispor, desde o desenho de linha, que tanto atravessa a sua famosa abordagem estilizada-expressionista (por vezes recordando Egon Schiele na figuração esquálida, feita de linhas finas, e tons cálidos, mas numa outra fase fazendo pensar num Fernand Léger diluído), empregando pincel, caneta ou grafite, à fotografia, sempre trabalhada de algum modo, digitalmente ou não, em sequências ou isoladas, a cores e nitidez absoluta ou a preto-e-branco e com um alto grau de grão (imitando o filme de 8 ou 16 mm que dá início à diluição do mundo), à manipulação digital de imagens, passando pela colagem, utilização de objectos (que regressam ou se tornam em símbolos recorrentes, ou então ganham uma presença destacada no plano de composição), passando por o que parece ser pintura. Cromaticamente, Celluloid também é variado: existem imagens a preto-e-branco e cinzentos, segundas cores (vermelho) sobre composições a negros densos, sépias, ilustrações coloridas que tiram partido de uma escolha limitada de cores mas explorando os seus tons, a outras que manipulam texturas e cores reais (fotografia e digitalização) para criar composições ou estruturas impactantes. A associação entre certos frutos e o sexo da protagonista é, nalguns casos, um cliché bastas vezes repetido - maracujás, papaias, figos abertos a meio, expondo ou espalhando as sementes e os sucos, uma pêra cortada em quartos e mal-ajustada - mas ainda que sem a exuberância e a efectiva eroticização do não-humano de Nobuyoshi Araki, por exemplo, serve o propósito narrativo, episódico, das várias “alianças” da personagem principal.
A comparação, inevitável talvez, surgirá com Lost Girls, outro dos projectos contemporâneos que tentam reempregar a pornografia enquanto género ou modelo passível de transmitir uma obra de arte de banda desenhada acabada em termos visuais e conceptuais. Todavia, os contrastes são imediatos e radicais (no sentido verdadeiro da palavra, de ser algo “de raiz”, a sua natureza): se a obra de Moore e Gebbie era uma espécie de doutrinação verborreica e quiçá demasiado nítida nos seus propósitos e simplificação da relação entre Eros e Thanatos, a de McKean segue a via da ambiguidade, permitida pela ausência de matéria verbal e pelas estratégias visuais que podem ser alvo de algum grau de interpretações diferentes; se Lost Girls apresenta até certo ponto uma multiplicidade de sexualidades (que podem ser nalguns casos controversas e problemáticas, como as que envolvem menores ou cenas de violação), Celluloid deixa-se ficar pela heteronormatividade - a cena lésbica da protagonista com a estranha personagem feminina não deixa de se inscrever na característica “cena lésbica para olhares masculinos” (acentuada pelas tais associações, visuais-literais, à fruta).
É também complicado, parece-nos, entender se existe alguma emotividade neste livro. É verdade que a expressão das personagens, quer aquela procurada através das regras da fisiognomonia gráfica quer aquelas que pertencem desde logo à linha deixada sobre o papel (a “lei de Töpffer”, cf. Gombrich), a ausência de texto não nos permite ter a certeza. Além do mais, a gestão dos acontecimentos aponta para a possibilidade de uma espécie de hipnotismo ou delírio onírico, o que suspende a vontade, o arbítrio, as decisões plenamente conscientes da personagem.
Não deixa de ser de uma extrema significância que o autor faça um livro de banda desenhada intitulado “Celulóide” e empregue a fotografia para transmitir esse outro meio. Acabamos por ter aqui um exercício multidisciplinar que usa o corpo, objecto visual de contemplação e de manipulação erótica, e mais especificamente a pessoa e o prazer de uma mulher, para repensar todas estas questões. Ou seja, McKean cria não apenas uma “máquina de desejo”, como querem Deleuze e Guattari, que se reformula sem cessar, que procura várias intensidades e personalidades nele mesmo (expressos pelos vários “estilos” e pelos vários “parceiros”, mas também pelos “corpos sem órgãos” e os “órgãos sem corpo” que se vão formando na sua passagem), mas ainda uma “máquina pensante”, fazendo com que Celluloid possa dirigir-se igualmente ao mais importante órgão sexual do ser humano: o cérebro.
Publicada por Pedro Moura à(s) 2:42 da tarde 2 comentários
Etiquetas: Reino Unido
24 de maio de 2012
Kardec. Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa (Barba Negra)
Se bem que dizer que um qualquer século o foi “cheio de contradições”
seja uma frase que poderia ser aplicada praticamente a toda a história humana,
o olhar retrospectivo que parte do século XXI encontrará no XIX o cadinho de
muitas das contradições que nós próprios herdámos (ainda filhos do XX) e que,
por isso, são mais ressoantes nas nossas experiências. Apesar de todo o livro,
começando pelo título, parecer estar concentrado numa só pessoa, a matéria de Kardec é precisamente o estranho, fluido
e etéreo caldo que foi sendo formado pelas forças culturais do século XIX.
É possível que a figura de Allan Kardec seja relativamente secundária
na Europa - mesmo no interior dos interessados pelos assuntos do ocultismo,
dominadas por outros nomes como Blavatsky ou Crowley – mas no Brasil é um nome
não só de grande importância como extremamente influente ainda nos nossos dias,
o que se poderá explicar pelo substrato sincrético do imaginário e da
sensibilidade religiosa-espiritual desse país (com todo o perigo de generalização
e idiotia que uma afirmação destas pode sofrer). As ligações ao Brasil são
tocadas não só pela menção, na introdução de Marcel Souto Mayor, a “Chico
Xavier”, ou Francisco de Paula Cândido, que é visto como um herdeiro e
proponente das lições de Kardec no Brasil (senão mesmo sua “encarnação”), como
na aparição desta figura numa das cenas “visionárias” do livro (a elas
voltaremos). Logo, o surgimento de um livro dedicado - não é propriamente uma biografia - a Kardec, ou melhor ainda, à
“transfiguração” do homem da ciência Hippolyte Denizard Rivail em o pai do
espiritismo, terá uma recepção significativa naquele país.
Outro aspecto surpreendente é a estranha acalmia do projecto. Isto é, Kardec abdica totalmente de fazer explorações melodramáticas e histriónicas dos eventos retratados. Apesar de tudo – isto é, a matéria fantástica e espiritual – é uma obra sossegada. Até mesmo no que diz respeito às imagens, desenhos tecidos na cor tranquila da grafite, moldada e dúctil. Podemos dizer termos três esferas de representação neste livro: primo, o “mundo real”, digamos assim, ou todos os momentos em que vemos cenas que se desenrolam no mundo tangível e consensual que habitamos, secundo, as cenas “oníricas” ou “visionárias” e que corresponderão ora à vida de um druida gaulês - o original Kardec de que Rivail seria uma encarnação e de quem adoptaria o nome – e, tertio, todas aquelas cenas em que vemos o mundo dos espíritos em contacto com o mundo dos vivos, desde as séances das mesas até aos fenómenos estranhos na ilha de Reunião (de onde parte um outro grupo de personagens secundários mais importantes, os Baudin, e que faz adivinhar uma história cultural, multicultural mesmo, belíssima) e até na casa de Rivail… Em relação à primeira, digamos que é ela que compõe a maioria do livro, ou pelo menos a sua primeira metade, que retrata a vida de Rivail antes do contacto, e a sua “aprendizagem”. Quanto aos momentos de “entrada perpendicular” dos espíritos no nosso mundo, mesmo quando há registos visuais de intervenção sobrenatural, os autores têm uma predilecção em mostrar as reacções das personagens à volta, e a capacidade de Rosa em dar a ver com rigor as suas expressões leva-nos a ver-se formando o espanto, o medo, a angústia da dúvida, a apreensão estúpida, o fascínio acrítico e a cuidadosa aproximação de todas elas. Com Rivail, como é natural, o principal visado da focalização contínua.
A esfera “visionária” é usualmente introduzida ou marcada por uma qualquer estratégia visual diferenciadora: ora o fundo da página é a preto, e não a branco, ou a figuração das personagens passa a ser feita a linhas mais simples, mas sem a textura de grafite dos ambientes (já para não falar da temática, que remete à invasão romana da Gália, à derrota de Vercingetórix, e as actividades do druida). Esses são os casos das visões de Rivail, apesar de não existir qualquer modo indiscutível de deixar isso claro (através de, por exemplo, uma focalização no rosto do protagonista antes ou depois dessas cenas, ou vendo-o a acordar: porém, a segunda cena é seguida por uma das Baudin a ser acordada por Rivail, o que poderá “anexar” essa visão à mulher). O importante, porém, é que esse acesso é narrativamente autónomo e, por isso, obriga à inferência do leitor, que sempre pode ser ambivalente.
As páginas finais são reservadas para a transformação derradeira de Rivail em Kardec, tratando-se mesmo de um clímax elucidativo, mas sempre fazendo o livro se distanciar das mais habituais expectativas contemporâneas de sword & sorcery. A esmagadora maioria do livro segue uma composição de página convencional, sólida e sóbria, oscilando-se entre construções regulares ou “retóricas”, com pequenos e expressivos desvios. Mas neste último bloco, as separações habituais das vinhetas diluem-se num pano contínuo de negros, marcando talvez a final fusão entre os mundos. Estas últimas páginas são duplas e mostram rostos ou cenas que compõem a história do final do século XIX e o busílis do século XX (de certa forma é um cliché, mas recordemo-nos que é esse precisamente o âmago do livro, que é dar a ver em que medida as tais contradições do século XIX são o cadinho das do XX), passando por Nietzsche, Freud, Einstein, Hitler, Gandhi, os Beatles, Borges, Chaplin, Hawking… A matéria verbal, que é a escrita ditada a Baudin pelo espírito Zéfiro, Zéphyr ou “Verdade”, e que se dirige a Rivail, ganha uma autonomia própria, plástica, que vai obrigando a inverter as páginas, até terminarmos “de cabeça para baixo”, com o druida aparecendo uma última vez, sob os auspícios do símbolo dito “triquetra”, e finalmente virando para a última página, surgindo Rivail rebaptizado como Kardec. Um livro que se termina, fisicamente, por ler de cabeça para baixo é um estratagema material, físico, e relativamente inusitado para dar conta da inversão na vida de Rivail que acabámos de testemunhar…
A arte de Rodrigo Rosa, do que nos é possível conhecer de obras anteriores, parece ser mutável no interior de uma abordagem naturalista, expressiva, em que se respeitando as formas e proporções anatómicas permite um “intervalo” de expressão da linha, sem jamais chegar a estilizações demasiado vincadas. Neste livro em particular não há trabalho de cor, mas isso não significa que não haja trabalho de volume, densidade, e luminosidade: bem pelo contrário, o domínio da grafite e do pincel, das tramas, texturas, sombras, leva a que se crie uma espécie de contínua ambiência espessa, submersa e nocturna, independentemente dos momentos de dia ou das fontes de luz se representam. A inscrição de Rosa parece-nos ser de toda uma escola norte-americana da banda desenhada, em que a clareza da figuração está em primeiro lugar, mas uma enérgica mais-valia do lápis surge das formas.
Há uma grande diferença entre a experiência do século XIX e a do XX. Uma das noções mais estruturantes e influentes de Walter Benjamin é a de que a modernidade veio trazer uma alteração da consciência, a que ele deu o nome de choque, e que é resultante de todos os sistemas tecnológicos que viriam a determinar a cultura (como pela fotografia e o cinema), a guerra, a indústria (raízes e primeiras consequências das quais se sentem já no século XIX, como provam as discussões neste livro das políticas de profunda transformação urbanística que o Prefet Haussmann obriga Paris a sofrer, e de que modo isso impacta na “psique” social e histórica). Em contraste com essa experiência quebrada, em bocados, estaria a experiência tradicional, com a sua estrutura unificada. Um contínuo. A razão pela qual as experiências de actividades que nos parecem agora suspeitas poderiam ser exploradas ao lado de outras mais austeras, sem que os paradoxos necessariamente levassem à dissolução da relação, mas antes pelo contrário, encontrassem nela a sua energia, é precisamente aquilo que pauta o gesto de Rivail/Kardec, que age como que uma espécie de elo dessas (agora) experiências distanciadas entre si. Para essa noção também concorrem muitas das estratégias visuais do livro, desde vinhetas que se unem “sob” os intervalos, por jogos de olhares entre personagens – Rosa não desenha pupilas, mas sim olhos negros, isolados, mas a expressão humana não se vê diminuída, como antes se verifica uma estranha intensificação desses olhares (e que nos recorda nesse ponto uma certa luminosidade líquida à la Guy Davis) – à própria “luz de grafite” que atravessa a obra.
É, portanto, notório que o livro não seja tanto uma biografia completa de Kardec, tampouco uma investigação sobre os seus “poderes mediúnicos”, mas antes um retrato das condições imediatas desta sua transformação. É claro que a inteligência e equilíbrio de Ferreira e Rosa permite que o livro não possa ser visto nem como um panfleto proselitista das doutrinas fundadas por Kardec nem tampouco um tratado de desmistificação. É um livro que pode, julgamos nós, ser apreciado tanto pelos cépticos como pelos crentes, havendo matéria - apesar da visualização das “visões” - para satisfazer ambos os argumentos possíveis. Até mesmo por leitores que não tenham qualquer interesse, por assim dizer, no tema central e alargado do livro, e somente queiram ler esta história de forma desarticulada com as suas correspondências históricas.
É o contínuo dessas experiências descontínuas, então, que se une, como as mãos dadas dos médiums sobre o tampo da mesa redonda…
Publicada por Pedro Moura à(s) 8:27 da tarde 2 comentários
Etiquetas: Brasil
22 de maio de 2012
O pequeno deus cego. David Soares e Pedro Serpa (Kingpin)
Estamos em crer que o tema de O pequeno deus cego é precisamente a dos paradoxos da sabedoria e da ignorância, e dos caminhos que quer um quer outro podem tecer à frente dos passos de um homem ou de uma mulher.
Este pequeno livro revela do conto - no seu sentido de género de modo, e respeitando, mesmo na sua especificidade de banda desenhada, a sua extensão, a sua concentração, o número reduzido de acções, um intervalo temporal restrito e um espaço circunscrito, o número fechado de personagens e até a focalização numa acção “simples”, que é a catábase do jovem Sem-Olhos, protagonista. A “simplicidade” a que aludimos, e o cuidado de a colocar em aspas, dever-se-á ao facto de ser passível de uma breve descrição dos factos. Sem-Olhos, também chamado de Papa-Moscas e Caganita pelas outras personagens com que se cruza, é uma criança do sexo masculino, numa China mistificada, que é obrigada pela mãe a ser uma menina (recordando a menos cruel mas igualmente traumática vida de Lord Fanny, dos The Invisibles) para que siga a tradição da família; um velho ancião, cujo nome só aprendemos no fim, desafia Sem-Olhos a rebelar-se contra essa imposição, permitindo-lhe que enfrente o dragão que o havia castrado e, dessa forma, poder reconquistar o seu próprio alvedrio e destino. Para esse efeito, o ancião “empresta-lhe” um panda, que serve aqui o propósito de animal totémico, familiar ou psicopompo.
Não deixa de ser estranha a opção dos autores em fazer representar uma China que mais parece ser feita de elementos estanques e comutáveis retirados de uma miríade de fontes, inclusive populares, em vez de uma construção contextualizada (aspecto em que as obras de Soares são cuidadosas). Uma mera descrição quase parece caricata: um panda, um dragão (chinês), os pés torturados, algumas indicações textuais a bodhisavttas específicos, o velho sábio… Isto aliado a rostos que não procuram de forma alguma imitar o fenótipo asiático, mas sim apresentando personagens com rosto ocidental. Erro? Limitação do aspecto visual? Deliberada transformação? Eis o que pensamos: quando lemos um livro, sem acesso a uma imagem específica, ainda livre de qualquer tradução imagética, é muito comum que se façam projecções utilizando-se imagens familiares: a utilização do nosso próprio rosto no protagonista é talvez o mecanismo cognitivo mais básico e corriqueiro. Poderíamos entender então que O pequeno deus cego é um relato curto, narrado por uma voz descarnada e pedagógica, e que a faixa visual é uma tradução possível e que aponta à possibilidade alegórica de lê-lo como “aplicável” fora do seu imediato contexto localizado. Quando o venerável ancião regressa, no fim da história, encontra-se transmutado num senhor ocidental, apessoado, o que não nos deixa de fazer imaginá-lo como um possível comentário de substituição de um sistema cultural ancião e tradicional por novos valores “ocidentalizados”, e todas as dicotomias que isso implica. No entanto, ele finalmente apresenta-se como “P’an Ku”, tomando o nome do “senhor dos destinos” - isto é, o Imperador de Jade, o progenitor celeste, formador do universo e da cosmogonia chinesa -, e apregoando uma superação das paixões.
A condição de Sem-Olhos - onde eles deveram existir só se encontra uma superfície suave de pele - não é uma impossibilidade genética, ainda que a sua deformação se apresente de um modo simétrico e, até se poderia dizer, belo. Em nenhum momento é demonstrado que ele possua qualquer tipo de capacidades perceptivas que ultrapassem essa condição; bem pelo contrário, e apesar de pequenos momentos que nos podem deixar em dúvida, apresenta-se como uma criança simples, normal, mas limitada quer por essa condição quer pelas imposições cruéis da mãe (e que passam pela deformação dos pés, que é algo objectificada e descontextualizada nesta narrativa, servindo antes como apontamento de condição). Essa criança, com a excepção dessa sua condição, normal, quer, como os outros humanos, sentir as paixões e as curiosidades que lhe pertencem. Chorar, por exemplo, é repetidamente desejado. O que a mãe impede, o ancião insiste para que procure. E o desafio está então em descer à caverna e enfrentar o dragão Wang, o Castrador, se bem que não haja um objectivo claro, digamos um ganho, da parte de Sem-Olhos, mas antes uma suspeita de manipulação da parte do ancião.
Como havíamos escrito noutro lugar, os monstros de David Soares seguem sempre – quer na obra de banda desenhada quer na literária - um mesmo pressuposto, um desígnio comum: servem sempre um sentido de justiça (não de moral, atenção, e muito menos de moralidade humana, apesar do género do conto parecer obrigar a uma concentração temática pedagógica) que ultrapassa, preside e impera sobre e fora da esfera das personagens humanas desses mundos diegéticos. São como que um sinal breve, possível de ser perceptível, de uma sublimidade transcendente e incompreensível e, claro está, aterradora. De Cerasta à Salta-Pocinhas, estes monstros são como que um reflexo distorcido e supre-humano: é como se o rosto das personagens humanas pudesse fazer contraponto ao dessas criaturas, se bem que o delas seja muito maior, não apenas em escala como na própria natureza, como se fossem apenas a parte visível, sensível, perceptível, como dizíamos, de algo muito mais além. O confronto com eles pode significar a morte, mas sobretudo significará uma consciência nova (nem que seja a do próprio leitor).
Não deixa de ser notável, portanto, como o dragão se entrega a um monólogo longo (oito páginas inteiras), não estabelecendo propriamente um diálogo com o protagonista, mas antes com uma ideia do que projecta ele ser. O dragão faz uma leitura de Sem-Olhos e segue-lhe as linhas. A inacção do “Papa-moscas” é precisamente o que faz afugentar o dragão da sua posição de superioridade. É como que um modo de mostrar que a heroicidade não necessita de ser expressa através dos costumeiros combates ou sequer de inteligências esgrimadas. Como diz o próprio ancião, também os que confiam podem ser vistos como seres com coragem, mesmo na cegueira que isso implica. O silêncio, a presença, a “cegueira” podem ser igualmente sendas de iluminação. E como quer o bom koan, essa iluminação, essa lição, não é passível nem de ser verbalizada nem de ser explicável de um modo dito racional.
Este livro, então, não é de forma alguma um Bildungsroman, não apenas pela sua fórmula narrativa curta, mas porque não se exploram as personalidades desdobradas das suas poucas personagens. Encontram-se soluções para criar vincos de vários momentos temporais, e criar ambientes espaciais diferenciados, mas eles são sempre palcos para o desenrolar da acção principal, que é a “travessia” do pequeno protagonista pelo seu teste, cuja emotividade é quase reduzida ao mínimo. É como se o conhecimento e a ignorância não fossem somente uma sombra uma da outra, mas duas superfícies confundíveis, conforme a perspectiva. Poderíamos mesmo dizer que a história segue aquelas estruturas modelares clássicas à la Joseph Campbell, mas Soares (e Serpa) sabem bem que a imitação dessa estrutura em nada sofre se se explorarem outras dimensões diferenciadoras, e é a “ignorância” do menino e o monólogo do dragão que tornam a acção deste pequeno livro num adágio à lição final.
Sendo este um livro quase num formato de bolso, a composição das páginas segue uma ordem convencional, ou regular (seguindo a tipologia dupla de Peeters e Chavanne), se bem que Serpa (ou o argumento de Soares, usualmente pormenorizado e estruturado) tire partido de forma significativa de splash pages (inclusive a apresentação do grande dragão), ora dramáticas ora de uma pausa no hausto do livro, ou da famosa técnica de quebrar cada tira em três vinhetas com transições apertadas para dar conta de uma evolução de uma expressão, de um gesto subtil, de uma progressão de uma acção, ou de uma “equação” visual. Técnica esta que foi, se não instituída, pelo menos disciplinada e tornada assinatura por Harvey Kurtzman. Pedro Serpa utiliza precisamente a composição, a perspectiva, a relação entre planos, as posições dos corpos, para colmatar uma certa qualidade de empedernido da expressividade dos rostos, e também corpos, das suas personagens, muitas vezes reduzidas a traços mínimos e pouco avolumados (recordando Hergé, é certo, mas sobretudo Julian Opie). No entanto, é a concentração da narrativa, da arte, e até mesmo do objecto - cuja responsabilidade passa pelas mãos do editor Mário Freitas, que tem mostrado a vontade de uma diversidade calma e sustentada no seu projecto editorial - que torna O pequeno deus cego numa lição breve, mas que exige uma interrogação pessoal.
Adenda: David Soares fez um comentário na sua página do Facebook, que passo a citar: "O Pedro diz que o tema central do livro é o Conhecimento e envereda por essa via para analisá-lo... Ora, o tema central de "O Pequeno Deus Cego" relaciona-se com o conhecimento, sim, mas é outro: o Crescimento - o crescimento através da Iniciação (crescer das Trevas para a Luz). Não quero desvirtuar a leitura que o Pedro fez, somente esclarecer, enquanto autor, qual é o tema central do livro - que, claro, permitirá sempre mais que uma leitura.". Uma vez que acreditamos (piamente) que não se deve jamais entrevistar o autor a propósito dos significados de um livro ("o que é que quis dizer com isto?"), é sempre saudável ainda assim entregar-nos a discussões com os mesmos. É verdade que o crescimento é patente em O pequeno deus cego, mas ainda assim ele parece-nos ser feito a preço alto. Seja como for, isto poderá ser uma demonstração de que a aparente simplicidade do livro só o é desse modo, aparente.
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:33 da tarde 0 comentários
Etiquetas: Portugal
21 de maio de 2012
A Cadeira que queria ser sofá. Clovis Levi e Ana Biscaia (Lápis de memórias)
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:53 da tarde 0 comentários
Etiquetas: Brasil, Ilustração, Infantil, Portugal
20 de maio de 2012
Pequeno-almoço sobre cartolina. Jorge Varanda (Fundação Calouste Gulbenkian)
Jorge Varanda foi aquilo que se pode chamar um polimata. Tirando partido de qualquer material, por mais “baixo” que parecesse, que tivesse à mão para dar corpo à arte que criou, as disciplinas atravessadas e os objectos criados são múltiplos: a exposição contempla pintura sobre papel e madeira, desenhos, biombos recortados e pintados, e aquilo a que se poderia dar o nome de instalações, assim como de filmes de animação (que importa ver com tempo, atenção e instrumentos específicos que ultrapassem as notórias limitações técnicas e lhes perscrutem o “espírito”). A banda desenhada - Varanda participou numa série de projectos e publicações, como o jornal Se7e e a revista Lx Comics - era um dos outros ingredientes, e ela não é tratada como suplemento nesta exposição, mas, bem pelo contrário, parte integrante. Mais, ela é tratada respeitando a sua especificidade expressiva: sendo o catálogo uma espécie de caixa com vários fascículos, cada um deles apresentando uma série de trabalhos mais ou menos unificados por um princípio material ou configurador, revelando desde logo a noção de série, narrativa, unidade, do autor, um deles é um fac-símile preciso desse mesmo fanzine.
Transcrevemos o parágrafo que torna clara a condição de produção: “A encenação, marcada por uma relação de proximidade com o teatro e a sua escrita, ganha um lugar de destaque na produção de Jorge Varanda. A propósito da peça Ninguém (1979), posta em cena por Ricardo Pais para o grupo Cómicos a partir de Frei Luís de Sousa, Varanda realiza uma banda desenhada homónima que integra o boletim editado aquando da exibição daquela no Teatro da Trindade, e que foi posteriormente publicada no semanário SETE. No mesmo ano, Varanda publica As Quatro Gémeas, banda desenhada gore que parte do texto integral da peça de teatro de Copi e da respectiva tradução de António Barahona, cuja realização teria decorrido de uma encomenda do encenador Victor Garcia para a publicação simultânea (que não ocorreu) à estreia da peça levada à cena pela Empresa Sérgio de Azevedo, em 1977 (com Eunice Muñoz, Vicente Galfo, Graça Lobo e Carlos Cristo).”
Teresa Gouveia, na breve introdução institucional do catálogo, fala de “contaminação”, mas a transversalidade presente na obra de Varanda parece-nos mais da ordem da expressão de facto - ele fê-lo assim porque assim o deveria ser - do que da ordem de uma programação e emprego de elementos, estruturas ou estratégias de uma linguagem sobre outra. Isto é, tudo isto faz parte da natural respiração artística de Varanda. Lígia Afonso, na nota biográfica, emprega mesmo a expressão “sistemas combinatórios”, visível de peça para peça, na manipulação a que algumas delas convidam (biombos, telas tridimensionais, com peças móveis ou destacadas, com ambos os lados pintados, pequenos puzzles, teatrinhos de papel, etc.), mas também pelo toque de exacerbação constituído pelo desenho do espaço da exposição e pela estratégia visual de montagem do catálogo. Se a primeira permite mesmo que a navegação do espectador se torne um potencial acto de “leitura contínua” e, por isso mesmo, se transformem todos os elementos apresentados como parte de um texto contínuo, os fascículos do catálogo, para além da sensação de série coesa, como afirmámos, permite outros jogos ainda de combinatória, ou até de contaminação, de desejarem. De resto, a própria configuração temática, que voga por entre espaços domésticos e cheios, misteriosos e modernos gabinetes de curiosidades, labirintos e espaços fechados sobre si mesmos, espaços urbanos mas reminiscentes de pequenas vilas, convida a esta ideia de concentração.
Há, pensamos nós, uma sensação de que as personagens que habitam todas estas imagens se passeiam entre elas, se cruzam, dialogam. Tal como Varanda parece ter sido adepto da respingadura, do reaproveitamento, da recondicionação (hoje falar-se-ia de “reciclagem”, o que não era de todo a despropósito), da reformulação dos objectos, também as suas figuras parecem ter ganho uma espécie de autonomia ideal que lhe permite reaproveitá-los em situações diversas. Personagens com volume, com história, portanto. Talvez esta seja, porém, o nosso próprio olhar “contaminado”, formado a partir da banda desenhada, sobre todo o corpus apresentado.
O nosso texto é tão-simplesmente uma close reading d’As Quatro Gémeas (aqui usamos imagens do zine original). Uma peça teatral de um outro autor, também de banda desenhada, Copi, através de uma tradução e de “actores de papel”. O objecto circulou num grupo reduzido de amigos, em dois formatos diferentes (A3 e A4), e tentamos estudar o que significa esse “gesto caseiro”, como escrevemos, em termos de linguagem estética, materialidade, e veículo expressivo, que relação estabelece com as temáticas, as figurações e a sexualidade do texto de Copi, e outros trânsitos específicos à banda desenhada. Este pequeno melodrama acelerado e celerado de um acto, que envolve quatro mulheres cujas interrelações são desde logo problemáticas em termos de interpretação, tiram partido de uma violência tragicómica que ganha uma força inesperada nos desenhos a preto-e-branco e Varanda, devedor em alguns aspectos a Crepax, neste trabalho em particular (a nível da figuração, mas sobretudo na composição de página, pequenos pormenores técnicos, no uso da matéria verbal, etc.), mas encontrando uma voz muito própria.
Apesar de menções esparsas a este livro em livros de referência, As Quatro Gémeas não faz parte de um imaginário vivo na historiografia da banda desenhada portuguesa - já de si circunscrita em muitos aspectos e com obstáculos ainda a ultrapassar. Como perguntamos no nosso texto: “O que é tem lugar quando vemos pela primeira vez publicamente uma obra com décadas de idade? Poderá ela integrar-se numa tradição histórica retrospectivamente se não se havia inscrito nela a tempo?” Esta é uma obra dessassossegada e irrequieta que importa recuperar e integrar de pleno direito na história contemporânea da banda desenhada portuguesa, até pela dimensão de abertura e transversalidade que ela apresenta - isto é, expandindo a própria ideia e campo social da banda desenhada. É possível que a exposição de todas estas obras torne o nome de Varanda novamente num factor a ter em conta no pensamento da arte do seu tempo, e esperemos que pelo menos este seu título passe a ser igualmente redivivo.
Aproveitamos ainda para mostrar um pequeno fanzine, intitulado História da Digestão, publicado pelo Ministério da Educação (portanto, um instituizine?), possivelmente datado de 1989, criado a propósito de um programa sobre alimentação saudável. A história, pedagógica, foi escrita por Jorge Varanda e Isabel Loureiro, e desenhada por Alice Geirinhas, que se acabara de formar na ESBAL. Apenas um conhecimento mais profundo da obra de Varanda revelaria se se trata de um trabalho meramente - e literalmente! - alimentar, ou se há elementos que permitam entender em que medida se integra na continuidade. Mas serve esta breve menção pour prendre date.
Nota: agradecimentos a Lígia Afonso, pelo convite que nos estendeu, e ao CAM/CG, por tudo o resto; a Alice Geirinhas, pela oferta do História da Digestão.
Publicada por Pedro Moura à(s) 3:11 da tarde 0 comentários
Etiquetas: Portugal, Territórios contíguos, Zines
17 de maio de 2012
2CBDPT 2012
Trata-se tão-somente, ou finalmente, de parte do cartaz que se revelará mais tarde para a 2ª edição das Conferências de Banda Desenhada em Portugal, que terão lugar na Biblioteca Orlando Ribeiro, em Lisboa, no final de Setembro.
Estão desde já todos convidados a seguirem para o blog respectivo, onde encontrarão o "call for papers", instando à participação dos interessados, assim como regras de participação, alguns conselhos e comissão de apreciação das propostas.
Agradecimentos a JMP, por tudo.
Publicada por Pedro Moura à(s) 3:25 da tarde 3 comentários
Gaylord Phoenix. Edie Fake (Secret Acres)
Gaylord Phoenix é um objecto difícil de categorizar em adjectivos que nos permitam explicar-lhe os horizontes habituais de expectativa. É um livro de art comix, por um lado, mas por outro uma saga de ficção científica/high fantasy relativamente linear. É uma narrativa cujos elementos são muito fáceis de identificar e devolver numa sinopse mas a sua forma altera a maneira habitual com que eles são manipulados. É um livro que tem uma faceta estranha, contemporânea, disruptiva, mas que a ancora numa tradição nítida e convencional.
Tendo sendo publicado sob a forma de fanzines, este volume reúne toda a saga e torna-a acessível a um público mais alargado. Essa, na verdade, é uma tendência verificada em vários sectores contemporâneos dos mini-comics norte-americanos, que têm acesso à colecção através de toda uma série de plataformas editoriais independentes pequenas, mas mais dadas a projectos que dificilmente se encaixam nas categorias já previstas quer no dito circuito mainstream quer no alternativo (falamos de selos tais como Secret Acres, mas também AdHouse, Wow Cool, Koyama Press, mas também a britânica NoBrow, entre tantas outras).
Como já havíamos apontado a respeito de Forming, este livro integra-se nessa tendência, então, de estratégias expressivas e comerciais, cada vez mais visível e influente. Nela, misturam-se pressupostos da banda desenhada mais convencional (em termos de género, narrativos, de elementos episódicos, etc.) e da alternativa (uma atenção particular para com a camada formal e estilística da banda desenhada em detrimento de uma fluidez maior, temas dissonantes à homogeneidade, etc.). De facto, verifica-se em Gaylord Phoenix uma mistura estranha entre a experimentação formal, inclinações independentes mas também elementos temáticos e narrativos afectos ao mainstream (a ideia de aventura, as cenas de luta, gradualmente mais complexas e difíceis, a estrutura devedora quer à ficção científica quer à high fantasy). E, o franco processo de queering up destes temas e configurações é provocador.
Este é um livro, a um só tempo, belo, divertido e comovedor. Seguimos a vida de uma personagem que explora a superfície de uma paisagem fantástica mas que é atacada por uma criatura feita de cristal, que o infecta com uma doença, a “bloodlust”. No entanto, esta apenas se manifesta no momento em que o protagonista se abandona ao prazer sexual. Ele encontra uma outra personagem, pela qual se apaixona, mas a tal doença transforma-o numa versão facínora de si mesmo que trucida o amante, e o põe em fuga. O livro mostra não apenas a tentativa do protagonista, Gaylord, depois transformado em Phoenix, de “curar” a sua condição violenta, como a de recuperar o seu amado, mas igualmente o progresso desta personagem secundária, na sua descida aos infernos e envolvimento com outras personagens. As interpretações poderiam seguir por aí… Uma fábula em torno do amor, que tanto desperta o que mais de doce e suave existe em nós como o mais violento, sobretudo o “monstro verde” do ciúme? Ou simplesmente de uma espécie de raiva que pode advir da satisfação sexual? A eterna batalha maniqueísta entre Eros e Thanatos? Ou, possivelmente, algo que se relaciona com a vida sexual, mas igualmente clínica e política, dos homossexuais?
Como se depreende do título, da descrição e das imagens, os dois protagonistas são masculinos (mesmo que haja aqui uma exploração de questões pós-sexuais e pós-humanas, mas que também podem ser vistas como típicas da fantasia). É nesse sentido que o livro assume características abertamente engajadas com a ficção LGBT - isto é, em que o tratamento, a perspectiva, a contextualização das personagens e das histórias seja sensível à vivência das pessoas que partilham essa sexualidade, e não somente uma utilização de temas ou personagens “homossexuais” (ou de outras sexualidades) por razões de choque, exploração mediática ou pura e simplesmente para criar humor ou, pior, ódio, baseado em estereótipos vazios (infelizmente, a nenhuma destas situações a banda desenhada é alheia). Por vezes, o apodo “literatura” ou “banda desenhada gay” (ou lésbica, ou trans, ou do 3º sexo, ou outras modalidades por vir) é vista com alguma resistência, num entendimento, algo pateta, da sexualização do próprio meio de expressão. Mas não é o que está em causa. Trata-se antes em permitir uma categorização temática - com todos os perigos que isso pode acarretar - em torno de preocupações específicas e que não têm a veleidade de se pensarem “universais”, o que outros títulos, porém, precisamente por serem cegos ao campo normativo de que partem e onde vivem, querem sempre almejar (Tintin e Tarzan, Astérix e Batman). O perigo é relativamente claro: se a sua descrição enquanto tal pode permitir uma distribuição em canais específicos - por exemplo, uma prateleira numa livraria generalista - ao mesmo tempo pode surgir como impedimento a que seja lido e tratado por leitores “fora desse campo”.
Será esta uma perspectiva errada? Que tipo de recepção terão Maurice Vellekoop, Alison Bechdel, Roberta Gregory, Howard Cruse, nos seus trabalhos mais sexualizados? Não será diferente das expectativas relativas à banda desenhada erótica e/ou pornográfica “heterocêntrica” ou “heteronormativa”? Mesmo que procurem uma diferença mínima, como a Bd Cul? Não se fazem homenagens a “mestres” como Manara e Serpieri mais rapidamente que a Tom of Finland em contextos alargados, e não “de nicho”? E se pensarmos em títulos como Shirt Lifters ou Girlfiend?
Queer começa por ser uma palavra associada ao “desvio”, o que pressupõe desde logo uma norma. Mas se essa palavra teve um momento ofensivo, ela foi apropriada pelos próprios homossexuais (ou pessoas noutras configurações sexuais não-hegemónicas ou não-normativas) para destrinçar a sexualidade dos determinismos biológicos, e sublinhar os constructos sociais que imperam sobre a identidade da pessoa e sua sociabilização. Acima de tudo, a palavra visa expressar um combate à categorização e uma abertura do fragmentário, poroso e fluido. O facto de Edie Fake se apropriar de uma aparente novela fantástica mas colocar nos papéis actanciais personagens declaradamente masculinas e homossexuais cria de imediato um curto-circuito na normatividade desses mesmos géneros narrativos, usualmente subsumidos a perspectivas heteronormativas, quando não homofóbicas, sexistas, misóginas (estejamos a falar de Flash Gordon, Barbarella, Wanya, Valérian ou a trilogia Nikopol, e até Astro Boy). Isto não significa que não existam narrativas no interior destes géneros que busquem outras configurações ou pelo menos outras valências e distribuições dos papéis (pensemos em Colleen Doran com A Distant Soil, no breve Adventures of Crystal Night, de Sharon Rudahl, ou até o recente Saga de Brian K. Vaughan e Fiona Staples), mas ainda existe uma clara distinção entre norma, pequena negociação e transgressão. Gaylord inscreve-se na terceira classe.
A desestabilização que a distribuição de papéis da teoria queer propõe ou estuda encontram-se presentes na maneira como o protagonista sofre e se sente ameaçado pela força que lhe é interna, a tal doença, que pode ser vista tanto como infecção como fantasma. Se nos é permitido o reparo, perguntamo-nos se não haverá aqui uma claríssima referência à “saga da Fénix” dos X-Men de Claremont? Mas a disrupção criada por Fake é também interior à própria expressão da sexualidade. Não estamos aqui a ler um livro cujos temas abordem as relações homossexuais na nossa sociedade, quer vistas da perspectiva dos obstáculos sociais e políticos que se enfrentam (como no caso do já clássico Stuck Rubber Baby ou no Journal de F. Neaud) quer na da celebração alegre (outro significado original de “gay”) da sexualidade (por Tom of Finland, por exemplo). A dimensão da ficção e dos elementos típicos de certos géneros torna-a mais “universal”, naquele sentido de texto legível para fora das fronteiras que se lhe quisessem impor.
Na sua tese publicada, La bande dessinée et son double, Jean-Christophe Menu discute a noção da “erosão progressiva das fronteiras” em relação à banda desenhada, território o qual, sobretudo nos tempos presentes, em que já não se trata de uma linguagem de massas, mas antes uma disciplina atomizada em diversos campos sub-culturais, ela se encontra aberta à contiguidade com outros campos artísticos. A banda desenhada, escreve Menu, “quando não se contenta em se imitar e se digerir a si mesma [o que ocorre em larga medida no seio dos territórios mainstream, alegres em repetir fórmulas ad aeternum], sabe-se abrir-se a muitas outras disciplinas, bebe de outras experiências, e, abrindo-se a outras coisas, desdobra-se”(pág. 366). Fake mistura saberes que vêm da tatuagem, da ilustração, do desenho livre, da música, da composição tipográfica, da colagem, do détournement de materiais gráficos de várias origens, e emprega tudo no propósito narrativo desta saga de Gaylord Phoenix.
Parte da transfiguração sexual operada nestas páginas deve-se à estruturação das imagens, à composição das unidades de acção, que dispensam as vinhetas marcadas e antes se apresentam em pranchas livres. Algumas cenas, por exemplo, são sexualmente explícitas, mas sem serem pornográficas, uma vez que a sua forma de apresentação procura menos efeitos de realidade e sugestão sexual do que a expressão da união carnal mas também espiritual entre as personagens. Esta prancha, por exemplo, fora do seu contexto poderia ser vista como uma composição visual geometrizante, e recordará os exercícios formais de Trondheim em La Nouvelle Pornographie, mas onde o autor francês era sugestivo de facto, aqui a cena explícita acaba desprovida e ganha outra dimensão, mais formal talvez.
O objecto-livro, na sua materialidade, é muito belo. O arranjo da capa (assim como as das versões originais), a organização dos cadernos, a utilização gradual de uma segunda cor, a alteração desta mesma cor, o uso de padrões e estratégias decorativas, a paginação, etc., concorre para a tal dimensão estética formal que tanto respeita a contemporaneidade visual, mais do que um mero programa narrativo-figurativo. Porém, a escolha de ter algumas imagens em duas páginas, e mais, o fulcro da acção no centro da mesma, coordenada com a encadernação - tradicional, com oito cadernos dobrados e colados à espinha - é feita de uma maneira que nos impede de ver a imagem completa, o que é senão, e muitas vezes é até um momento importante em termos da acção.
No cômputo final, talvez o prazer da leitura de Gaylord Phoenix não e encontre exclusivamente na apreciação da sua história, nem das suas imagens, nem tampouco no próprio objecto - ainda que cada elemento, assim destacado, tenha os seus fortes. Encontrar-se-á antes na constatação de uma nova diferenciação e negociação entre os géneros da banda desenhada, as categorias artísticas, os supostos “mundos”, e o modo como demonstra que o trânsito é de facto cada vez maior, diversificado e inevitável, em nome do desenvolvimento descontraído desta área de expressão.
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:12 da tarde 0 comentários
Etiquetas: EUA