28 de fevereiro de 2013
Naoki Urasawa. L’air du temps. Alexis Orsini (Moutons électriques)
Orsini disponibiliza aqui uma monografia que pretende ser consequente na sua abordagem histórica, biográfica e crítica, mas pauta-se por um princípio de economia de meios. Se por um lado, a dimensão crítica, em termos académicos ou mesmo de instrumentos mais musculados, é limitada, o uso que faz de inúmeras fontes originais japonesas e a forma muito bem estruturada do livro torna-o um excelente volume não só introdutório à obra do mangaka como também, como acabámos de dizer, enquanto um primeiro e cuidado balanço sobre a obra disponível (o autor menciona todos os trabalhos, mas destaca principalmente o que está disponível em língua francesa, e até como está disponível).
Em vinte e cinco anos de carreira, e, atendendo ao modo possível de trabalho no Japão, e às particularidades do autor, que por vezes trabalhava sobre duas séries imensas, Urasawa produziu uma obra monumental. Assim, esta monografia apresenta em primeiro lugar um longo capítulo autobiográfico, menos intimista e completo do que salientando todas aquelas informações que se podem tornar reveladoras de alguns dos traços ou características repetidas na obra do autor japonês. Não se deixando abandonar propriamente a biografismos fáceis - apesar dos paralelos com a vida de Tezuka, no fim do volume, se prestem a alguns abusos de método -, Orsini mostra como algumas das vivências reais do autor se transformariam em matéria ora de partida para as histórias ora de criação dos seus ambientes. É o caso, por exemplo, do modo como Urasawa faz representar as relações familiares de sangue ou os traços de alguma nostalgia presentes em 20th Century Boys, de que faláramos.
Se essa biografia ocupa quase metade do volume, a outra metade é ocupada com uma abordagem mais analítica e crítica. Desdobrando-se em capítulos que estudam as personagens, os temas, e alguns aspectos sobre influências determinantes, com destaque particular para o cinema e Tezuka…. Orsini faz uma leitura transversal entre todos os trabalhos de Urasawa, organizando-se de uma forma cronológica, para encontrar pontos comuns ou tratamentos diferentes de um mesmo tema, ou procura estabelecer correspondências entre interesses do autor e as formas como eles se expressam em cada título, não obstante o contraste aparente entre essas mesmas obras, sejam elas de uma fase de aprendizagem ou da maturidade, sejam elas curtas ou imensas, sejam elas de um género mais leve ou de outro mais grave… E esses temas não se cingem aos mais óbvios, como a importância de moldar as personagens secundárias, a atenção particular para com personagens crianças ou idosas, ou a presença da cultura popular da banda desenhada, da animação, da música próprias da geração do autor, e carregadíssimas de nostalgia, mas também aspectos como a alimentação, a religião, a internacionalização das paragens atravessadas pelas suas personagens, etc.
Os capítulos sobre cinema aproximam-se um grau mais de uma análise verdadeira, apresentando breves trechos que poderiam passar por close readings, comparando cenas de filmes de Hitchcock ou de Kurasawa, entre outros filmes, com as de alguns dos títulos thriller de Urasawa, mas apenas num ou noutro caso vão além do mero contraste ou levantamento dos elementos. Mesmo assim, são momentos que obrigam a ver com atenção, ou rever, esses trechos do autor japonês.
O capítulo em torno de Tezuka acaba por querer dar continuidade à mitologia em torno desse autor, no sentido de o endeusar e quase tornar a única figura histórica que importa discutir no desenvolvimento da mangá moderna. Não é que se possa diminuir o seu valor, nem se o deve fazer, mas deve-se contextualizar e dar espaço a um enquadramento mais diversificado, até mesmo para reforçar a importância de Tezuka. Por outro lado, esse mesmo processo de engrandecimento serve um outro propósito: o de engrandecer, por sua vez, o “herdeiro” (a palavra é escrita por Orsini na conclusão) de Tezuka: o próprio Urasawa.
Seja como for, a influência de Tezuka sobre Urasawa é gritante e óbvia, mesmo pondo de lado o papel que o “deus da mangá” teve na infância do outro autor. Black Jack reflecte-se no Dr. Tenma de Monster, a presença do mestre é assegurada em 20th Century Boys e, enviesadamente, em Billy Bat, o “star system” é retomado por Urasawa (para citar Orsini, “a reutilização pelo autor de algumas das suas personagens preexistentes em séries anteriores”, pg. 230; o que não poderia ocorrer se não existisse uma qualidade na figuração que fizesse emergir personalidades físicas reconhecíveis), um sem-fim de “inside jokes”, já para não falar da mais óbvia ainda e apertada rede de referências retomada em Pluto. Este capítulo torna apenas clara a intertexualidade que a confirma.
cima de tudo, e melhor do que o voo de pássaro de Manben, encontramos aqui uma forma de alargar o horizonte sobre os modos de produção, acima de tudo a questão das relações entre autor e editor. Na verdade, todas as informações sobre a relação profissional de Urasawa e o seu manga henshu-ga, ou tantô, ou para compreendermos melhor, “editor”, que o tem acompanhado ao longo de décadas, em muitos dos seus títulos, Takashi Nagasaki, é de uma grande preciosidade. Aprendemos de um modo claro qual o papel de um editor na indústria da banda desenhada no Japão, até que ponto ele pode mesmo ser considerado como co-autor ou pelo menos cúmplice de algumas ideias, opções ou estratégias narrativas e visuais, e apercebemo-nos de que o funcionamento dessa vida não é tão linear como se poderia imaginar sob a ideia do “génio autor solitário”… Muitos dos aspectos mais importantes dos capítulos autobiográficos, a nosso ver, dizem respeito, aliás, às dificuldades com que Urasawa de deparou para conseguir levar alguns projectos a bom porto, para que algumas das suas formas de trabalho sobre os géneros fossem aceites, ou até mesmo como a recepção do seu trabalho e a sua ascensão foi lenta, complexa e até mesmo dolorosa. É nesse quadro que lemos as passagens de Urasawa por vários projectos, alguns dos quais falhados, as várias revistas, a passagem de Billy Bat para a editora Kodansha, e a intricada novela sobre a autoria verdadeira de Master Keaton.
Esse é, de facto, um dos aspectos importantes. A forma como Orsini demonstra a negociação de Urasawa em relação aos géneros mais populares nos quais se via, de certo modo, obrigado a trabalhar (Yawara!, Happy!) para depois poder conquistar espaço crítico suficiente em apostar em experiências mais arriscadas, contribui para um retrato mais complexo e matizado do mundo da banda desenhada japonesa, tão pouco monolítico como outro qualquer. Os géneros a que Pluto ou Monster ou 20th Century Boys se inscrevem vão sendo descritos por Orsini, baseando-se nas entrevistas do autor japonês, como “menores”, e isso é demonstrado na forma como circulam naquele circuito, mesmo que as menções a projectos paralelos como a Garo ou coisas ainda mais obscuras tenha aqui um papel e presença muito apagados. A revista COM é importante, e ela tem um papel preponderante na carreira de Urasawa, mas é apenas uma alternativa ao mais central dos mainstreams. Mais uma vez, o contexto é tudo. Nenhuma dessas “dificuldades” impediram, claro, que Urasawa tivesse atingido grande sucesso com essas outras séries mais convencionais, ao ponto mesmo de ter influenciado um retorno generalizado da população japonesa ao judo com Yawara! e isso ter mesmo influenciado o apoio dado à judoca que ganhou a medalha de prata em Barcelona…
Aprendemos a ver como Urasawa consegue trabalhar sempre no interior de géneros ora de contornos comerciais mais restritos (Yawara!, por exemplo) ou de outros géneros que até ao seu sucesso eram vistos como “menores” (Monster, 20th Century Boys) para deles libertar um “lado mais humano”. E é nesse sentido, de representações, de exploração das histórias individuais das suas personagens, na eleição da importância de todas e cada uma delas em obras que se espraiam ao longo de centenas de páginas, e por vezes atravessam décadas e locais, que se encontra a força de Urasawa, mesmo até em detrimento de outros autores anteriores, como Otomo ou o próprio Tezuka. Isso é particularmente sentido em 20th Century Boys. Apesar de Orsini citar aqui e ali a influência da gekiga, essa faceta não é explorada suficientemente, a nosso ver. E se não se pode negar esse “lado humano”, perguntamo-nos todavia se poderia ombrear os contornos da verdade angustiante e de um quotidiano matizado pelo absurdo de autores como Yoshiharu Tsuge, Yoshihiro Tatsumi ou Shin’ichi Abe…
Como continuação do programa de fortalecimento da importância de Urasawa na banda desenhada internacional contemporânea, todavia, o gesto de Orsini é por demais conseguido.
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27 de fevereiro de 2013
Histoires courtes. Naoki Urasawa (Kana)
Semana Urasawa 3. Este volume com mais de 550 páginas reúne 30 histórias curtas do autor japonês, todas remetendo a uma primeira fase dos seus trabalhos, compreendidas entre 1983 e 1986. Na verdade, é a tradução francesa de um projecto de 2000 intitulado, em japonês, literalmente, “Urasawa do primeiro período”. Desse número, uma é composta por dois capítulos, outra apenas apresenta dois capítulos de uma história interrompida, outra apresenta 7 histórias em torno da mesma personagem (um jovem polícia que é também frontman de uma banda rock). Algumas têm apenas 8 páginas, e outras delas espraiam-se por cerca de 40 páginas. São todas fruto de circunstâncias, experiências que tentavam conquistar um espaço mais regular e profissional nas revistas de mangá, como a Big Comic Original, ou até mesmo “fillers”, e alguns projectos que seriam abortados por razões editoriais e/ou comerciais. Como ponto de honra, encontra-se aqui Beta!!, a primeiríssima história publicada, de 1983.
Como não poderiam deixar de se esperar nestes “primeiros passos”, Urasawa não apenas navega por entre géneros mas igualmente por estilos gráficos diversos, ainda que as diferenças possam aparentar ser mínimas, levíssimas inflexões. Possivelmente por serem trabalhos anteriores aos seus títulos de maior sucesso, poderão ser feitos ainda fora do sistema dos estúdios japoneses, em que uma trupe mais ou menos considerável de assistentes toma conta de artes-finais, dos cenários, de pormenores, etc. E Urasawa conquistaria esse método de produção mais tarde. O autor não esconde, quer em alguns desenhos soltos, homenagens ou entrevistas, o seu profundo arrebatamento contínuo pelas obras de Tezuka, Hergé e Moebius, e torna isso facto patente na própria matéria do seu trabalho (sendo Pluto apenas o mais óbvio dos factos). Uma pequena história intitulada “Return”, que ganhou um prémio revelação (uma das categorias do Shôgakukan), parece servir de nódulo entre Moebius, Tezuka e o que depois mais tarde se exploraria em Pluto.
É bem possível que, lida esta antologia fora deste contexto autoral, que a colação de géneros e até de qualidades de trabalho o lançasse numa zona de indeterminação, de fraqueza geral, ou até de indiferença, mas é precisamente o acto arqueológico que a colecção permite que a torna significativa, e a leitura retrospectiva é uma outra forma de relermos as coisas, mesmo que pela primeira vez: isto é, lemos estas histórias pela primeira vez mas sempre sobre a sombra do que já conhecemos. E assim o que parece presidir à leitura é a procura pelas características que reconhecemos nos seus outros trabalhos mais famosos, assim como a surpresa de encontrar traços bem diversos.
Urasawa também mostra, aqui e ali, colaborações no que diz respeito ao texto ou argumento, adaptando uma novela do escritor Ryûnosuke Akutagawa em “Magie”, trabalhando com o argumentista Caribu Marley em “Rush Life”, discutindo ou aproveitando deixas de editores aqui e ali, criando uma referência oblíqua a Edogawa Ranpo (ou Rampo, que citáramos a propósito de uma adaptação de Maruo) em “Le détective de Taishô”, misturando a vida pessoal do escritor e a sua ficção policial… Neste departamento, a obra de Orsini, que abordaremos mais tarde, é muito importante para compreendermos o modo como se trabalha na indústria da mangá, ou pelo menos os métodos de Urasawa, cuja relação com o seu editor, Takashi Nagasaki, complica as fórmulas simples de dizer quem é o autor do argumento e do desenvolvimento (nada de muito diferente do que noutros circuitos, inclusive no seio do sacrossanto culto ao “autor completo” Hergé).
São muitos os elementos detectáveis que transitariam para os seus títulos mais significativos: a música rock e o sinal de libertação que ela pode representar em certos contextos, um interesse pelo modo como os sonhos aliados à tecnologia ou à ficção científica não debelam necessariamente uma particular atenção para a realidade crua da vida humana, um certo humor cinético e por vezes tolo ou adolescente mas que tempera a gravidade do acontecimento central da história, e a possibilidade de encontrar um nódulo de moralidade, justiça e probidade que se encontra para além do mundo das aparências sociais: são muitas vezes os párias e os marginais que revelam um relampejo de dignidade indómita. A sua escolha em personagens muito jovens ou já idosas, facto bastas vezes apontado, faz desviar os propósitos mais atreitos da demografia dos géneros em que costuma trabalhar, ou no interior das quais desencadeia as suas obras, e demonstram desde logo uma preocupação social vincada.
Se algumas das peças são de um humor leve, associado a géneros específicos (como o desporto, no qual o autor teria os seus primeiros sinais de sucesso como em Happy!), há outras que parecem apontar a uma maior amplitude de ambição e envolvimento emocional. São os casos de “Return”, “Old Western Mama” e “Au revoir, Mr. Bunny”, ainda que as emoções sejam algo superficiais, delicodoces e lineares. Já “Shinjuku Luluby” [sic, não percebendo nós se é gralha ou trocadilho] parece ser uma história que deseja apelar a camadas mais complexas da existência humana, para além de meras banalidades dos sentimentos, e até abordando temas sensíveis da sociedade contemporânea japonesa, que coloca em xeque muitos dos clichés de honra e rectitude em nome de uma mera sobrevivência económica, da dignidade humana e até mesmo de uma certa liberdade à margem das narrativas de “espírito nacional” que tantas vezes são vendidas por aquele país. Na verdade, parece-nos ser esta a mais madura história da antologia, por isso destoando do conjunto, mas essa é a própria natureza deste tipo de objectos.
É nessa óptica, portanto, que insistimos ser mais apropriada, possivelmente, a sua leitura.
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26 de fevereiro de 2013
20th Century Boys. Naoki Urasawa (Viz Media)
Convenhamos: a força da obra de Naoki Urasawa não terá o mesmo impacto que outras referências em termos de visualização, de plasticidade, de composição. Pauta-se por outros princípios, atreitos ao classicismo da mangá. Os elementos que compõem esse classicismo é a forma esquemática, quase diagramática, da construção da figura das personagens, o esvaziamento dos fundos, com excepção das vinhetas-espaço, que muitas vezes recorrem a imagens realistas, pormenorizadas e com muitas tramas e sombras, que ancoram num “efeito de realidade” as tais figuras mais diáfanas. A opções de composição das páginas, a estruturação das vinhetas, seguem princípios gerais de linhas de direcção do olhar, enquadramentos e sublinhados, mas nunca com a densidade e elegância de muitos dos maiores exemplos estudados, neste preciso campo, pelas obras de Peeters, Groensteen e Chavanne. Porém, isto não deve ser entendido necessariamente como algo negativo, mas antes como de especificidade de género, de contexto cultural, ou até mesmo de linguagem. Se seguirmos aqui uma das ideias de Deleuze, dos seus livros sobre cinema, de que a subjectividade é subtractiva, no sentido em que retira de uma imagem aquilo que interessa transportar na leitura/percepção, o facto de já estar subtraída parte do que poderia compor a imagem ajuda a essa decisão e velocidade da leitura. No entanto, é sempre um perigo, um abismo, querer projectar na imagem, que é ela mesma completa, algo que não lhe pertence - aqui, por hipótese, escolhas estilísticas diferentes das do seu contexto cultural particular, ou até mesmo o específico ideolecto do autor.
Por exemplo: o facto de que esta banda desenhada em particular é em grande parte ocupada por páginas com talking heads não a torna maçadora, precisamente pela forma como o autor urde os acontecimentos e as relações entre as personagens. Quer dizer, essa estratégia é típica deste género de mangá, mesmo nas inflexões específicas de Urasawa, e a banda desenhada japonesa em si, nestes seus contornos convencionais, pede por uma velocidade que é cumprida e mantida vertiginosamente. A figuração do autor, todavia, é muito cuidada mesmo no interior de um intervalo de convenções. Existe uma cuidada construção de personagens, que respeita sinais particulares, individualismos e a frágil mas conquistada capacidade de Urasawa em mostrar como os traços de um rosto se mantêm da infância para a idade adulta, como é mesmo tema e estrutura de 20th Century Boys.
Uma consulta noutros canais de divulgação providenciarão uma sinopse da série. Um brevíssimo descritivo poderia falar desta saga como a luta pela recuperação ou correcção de um sonho de crianças de um grupo de amigos, sonho que fora “raptado” por outro para seu próprio gáudio e miséria do planeta. A série começa num ponto determinado da história, do tempo, e depois lançará linhas de desenvolvimento que tanto avançam para o futuro (as consequências) como para o passado (não apenas como causas mas também como caminho dessa tal recuperação e salvamento). O passado vai sendo desenterrado por Kenji, o protagonista, e os seus amigos. Esse gesto é mesmo literal, se tivermos em conta as duas caixas que contêm o “Plano”… Mas para além desses motivos geológicos e topográficos, constrói-se também ao longo da série uma cartografia fragmentada, altercada e múltipla do tempo e da memória.
A trama é, a um só tempo, tão dilatada quanto concentrada, como tão obscura como evidente. Se há algumas opções algo previsíveis no drama, toda a série é construída a partir da acumulação de surpresas, reviravoltas e desvendamentos súbitos. As primeiras páginas abrem já depois do fim de toda a história, em 2000, já no “final feliz”, mas não o compreendemos totalmente. Rapidamente estamos a acompanhar um tempo presente – que não deixa de ser “passado” desse primeiro momento, mas que passa a ser visto como o “presente narrativo” da série. Há ainda o passado remoto da infância conjunta dos nove amigos, os momentos originários desta saga, voltando à ideia arqueológica da memória. Entre esses tempos, ainda se multiplicam os episódios que pertencem a um ou outro episódio da vida de Kenji ou de outras personagens, e mesmo o futuro longínquo (2014) da sobrinha de Kenji, Kanna, desvendando-se aspectos e desenvolvimentos que, ao longo das suas vidas, possuem elementos que se encaixam no sentido final da história, na sua causalidade e até utilidade. Em termos de eixo espácio-temporal, esta obra agrega de facto décadas dilatadas e praticamente todo o globo, em que cada paragem (uma vila rural na China, uma cidade do interior dos Estados Unidos, as ruas de Itália, a baixa de Tóquio, etc.) é tratada de uma forma individual, e não como mera desculpa de um evento rápido. Essa é uma das outras características do trabalho de maturidade de Urasawa, ainda que se deva ver 20th Century Boys aliado antes a Billy Bat enquanto um retrato do Japão moderno (e projecção futura), constituindo um corpus relativamente distinto de um outro grupo que se constituiria com Monster e Pluto, mais “internacional”, digamos assim.
Há “saltos” significativos, como o tempo – três anos – que separa a fuga de Kenji depois do ataque ao aeroporto e o encontro deste com o regressado Otcho (vol. 3), mas que nos impede de vermos as acções “terroristas” de Kenji contra a organização do “Amigo”. É através de informações veiculadas por recortes de jornal, posters de procura e conversas que montamos essa imagem. A tal participação de que tantos teóricos falam, necessária para o seguimento de fiadas narrativas, encontra aqui uma força bem marcada, obrigando os leitores a comporem um puzzle que, apesar de complexo na sua distribuição, não é assim tão confuso como isso. Isto é, a estrutura é complicada e intricada, com bravos recuos e avanços no tempo, mas rapidamente o leitor encontra o sítio certo onde as encaixar, para com isso construir a ideia de suspense e interesse.
Na verdade, parte da confusão ou aspectos que foram criticados nasceram da multiplicidade de linhas de acontecimentos que o autor lançou, e que acabariam por não encontrar uma resolução clara no final da série, obrigando-o a ela retornar com a “coda” de 21st Century Boys. De certa forma, é algo que ocorreu com a série televisiva Lost, que provocou um misto de prazer de degustação à medida que era exibida, mas um estranho misto de completude e enigmas irresolutos no final. Urasawa providenciou essas “respostas” nos dois volumes extras, mas repetimos que o grande prazer do título está na sua travessia e menos na sua capacidade de fechamento (como, diga-se de passagem, Lost).
A partir de um momento (capítulo 50, a meio do vol. 5, depois de “O último capítulo”), a acção passa então ao ano de 2014, desarrumando toda uma série de ideias mais ou menos arrumadas de organização temporal. Também Tezuka jogou com vários momentos na história da humanidade com Phoenix, mas nesse caso coordenavam-se histórias autónomas cujo elo era mais abstracto e vago. Watchmen, é sabido, apresenta algumas páginas cuja libertação da linearidade temporal é profundamente disruptiva porque se prende à percepção de uma personagem supra-humana (Dr. Manhattan). “Here”, de McGuire, é ainda o exercício mais radical de desregulação temporal na banda desenhada que conhecemos, mas pela sua igualmente forte ancoragem espacial, o sentido que cria é experimental, e menos preocupado com o investimento emocional dos leitores sobre as personagens e a trama. Sem querer tornar 20th Century Boys na última palavra desse tipo de des-ordem (era preciso regressar a Genette), pois apesar de tudo não se verifica nenhum efeito de metalepse (emergindo enigmas e aporias, não apenas irresolúveis, mas que não faz sentido querer subsumir a “um” só sentido), esta obra constrói a sua organização temporal de uma maneira irrepreensível precisamente para aumentar a entrega na leitura. Por outras palavras, não estamos perante uma organização totalmente disjunctiva e disruptiva do tempo, não há uma libertação do próprio tempo em relação ao movimento da acção (em termos deleuzianos-guattarianos, não escapamos do eixo sensório-motor), mas tão-somente uma exploração de uma forma filigranada dos seus elementos.
Tentando cartografar a série, esta desenvolve-se em torno de quatro eixos temporais, ou nódulos: 1970, durante a infância de todos os personagens; 1997, os primeiros sinais do plano do “Amigo” e o despertar do Kenji adulto para a resposta que será necessária; 2000, a grande transformação, demonizando Kenji e os seus amigos e tornando o “Amigo” o salvador do mundo; 2014/15, o novo e último plano do círculo político do “Amigo”, que conta com Kanna e os últimos sobreviventes dos companheiros de Kenji. No interior de cada nódulo existem flutuações várias, avanços e recuos, e há ainda outros anos de permeio que são visitados em momentos-chave, quer para explicitar aspectos quer para vincar ainda mais os mistérios.
Uma vez que o plano do “Amigo” (em japonês, tomodachi) se baseava nas fantasias infantis de Kenji e os companheiros, é impossível não notar aí um movimento de transposição – de tempos e circunstâncias – idênticos ao que ocorre em Pluto. Só que se nessa outra série é o próprio autor a adaptar a história de Tezuka para um outro contexto ficcional e de género, neste caso são as próprias personagens a apropriarem de algo imaginado na infância (deles) para ser tornado realidade palpável na idade adulta. O caderno de Kenji torna-se um “argumento”, um script, que é depois levado a cabo. Ao mesmo tempo, essa é a desculpa para beber de muitos géneros da shonen manga – robots gigantes, armas biológicas, planos de conquista global, policiais, dimensões sexuais, etc. -para as reinscrever de um modo mais sério no da seinen manga, na diegese da própria série.
Uma outra associação possível é com parte do “esqueleto narrativo” de Watchmen, de Moore e Gibbons. Afinal, em ambas as séries, temos uma imbricação de vários desenvolvimentos tecnológicos (por mais ficcionais ou fantasiosos que sejam) para a construção de um projecto de ameaça tão gigantesca que possa unir todas as facções possíveis. Tal como Ozymandias, o “Amigo” cumpre esse programa. Mas se em Watchmen esse é o corolário do mistério de toda a obra, que se aceita, de certa forma, com resignação, esse acontecimento e suas consequências têm em 20th Century Boys o papel do nódulo central da gestão de todos os acontecimentos e da trama policial.
Mesmo descobrindo a identidade do “Amigo” entre os volumes 12-13, a acção e suspense são sempre relançados com um novo ímpeto, precisamente graças à capacidade de Urasawa em fabricar desdobramentos da intriga, sempre de acordo com o tal script de Kenji garatujado desde a infância. Uma das ideias que isto pode despertar, em termos de trabalho de interpretação, é o seguinte. Se um script complexo, elaborado, contínuo, de várias camadas temporais e espaciais, envolvendo um exército de personagens é passível de ser lançado por um grupo de crianças, então parte dessa maravilha não deixa de estar associada a um fascínio também ele infantil. Isto é, afinal, aquilo que poderia ser alvo do elogio ao autor, estando enraizado numa potencialidade infantil, é afinal de simples aquisição – deixando do lado dos “adultos” outro tipo de complexidade, talvez emocional, talvez política.
Claro que poderíamos nos poderíamos perguntar se esta manipulação da ordem temporal e a intricada rede intertextual adianta em alguma coisa para a história, a diegese. Mas essa questão seria mal colocada. Não é tanto na coordenação dos eventos entre si, a causalidade, a ordem dos acontecimentos que reside a importância da obra – já que, no fim da leitura, há sempre uma operação cognitiva retrospectiva da parte do leitor que inevitavelmente reconstrói tudo o que aprendeu numa inexorável ordem cronológica – mas antes a textura que ela segrega com estas escolhas estruturais. E o estudo atento do impacto sociológico e político quer dos eventos reais quer dos ficcionais não teria o mesmo impacto se se seguissem ordens convencionais.
É claro que, para os detractores (da mangá, da banda desenhada, da cultura popular, deste autor, etc.), qualquer nível de intertextualidade será sempre insatisfatória para uma consideração positiva do título. Mas ela, a intertextualidade, existe, e é intensa. Urasawa emprega continuamente o seu conhecimento e paixão particulares pela mangá e pelo rock’n’roll em toda uma série de referências, que por vezes servem só para criar um ambiente contextualizador do tempo, mas por outras servem para criar uma inflexão mais moderada dos aspectos sociais que lhe importam ou até mesmo como mise en abîme de certos acontecimentos que irão desenvolver-se noutro nível (como as referências à mangá que um artista acaba por não conseguir publicar e é mesmo preso por ela, ou a narrativa do filme The Great Escape de 1963, etc.). Formam-se, num ou outro caso, referências ao seu próprio trabalho, e é quase impossível não desconfiar que a obra está imbuída de toda uma nostalgia muito pessoal (a Expo de Osaka em 1970, o tipo de brincadeiras possíveis, etc.). Mise en abîme não é, de forma alguma, estratégia alheia a outras obras de Urasawa. Toda essa dimensão ganha contornos muito especiais e significativos, quando penetramos (vol. 10) no santo dos santos do professor de língua inglesa, conhecido por Sadakiyo, durante algum tempo um dos candidatos a preencherem a identidade do “Amigo”: um quarto repleto das revistas antológicas (“listas telefónicas”) de mangá, brinquedos, miniaturas de robots, etc., uma espécie de arquivo e centro nevrálgico das referências que se batalham no interior da obra. Ou a cena caricata em que ele escapa de uma chusma de esbirros ao ameaçar destruir dois crachás, como se se tratassem (mas ali, são-no) de reféns. De certa forma, são aqueles elementos que, na óptica desta obra em particular (e confirmando o cariz pessoal da mesma), compõem o “coração” do século XX. E o impacto emocional de algumas cenas, especialmente “embrulhadas” nas especificidades culturais japonesas, que conheceremos em menor ou melhor grau e, assim, poderão ajudar a alguma da interpretação, é robusto.
Parte da estrutura de cristal desta obra parte do facto de que as perspectivas e memórias que compõem a tessitura total do texto pertencem a uma miríade de personagens. Nem sempre essas memórias ou ideias coincidem entre elas, mas o facto de termos acesso a elas, enquanto leitores, coloca-nos numa posição privilegiada – não de omnisciência, claro, o que roubaria ou mitigaria toda a ansiedade provocada pela sua leitura, mas pelo menos de uma distância suficiente para aglomerar essas informações. Nesses casos de não-coincidência entre personagens, aparece um terreno acidentado, mas noutros momentos, essas memórias complementam-se e fazem surgir um tecido ininterrupto. Por exemplo, chegamos a um retrato quase completo de um evento através de vários relatos inconjuntos, ou a uma ideia sobre uma situação por acumulação da experiência das personagens que se distendem sobre ela em contextos díspares. O que importa é que tudo se entrelaça num texto lido por nós. A topografia da memória, voltemos a ela, pode-se dizer, é variada em 20th Century Boys, e é mesmo um dos subtemas da série. Esta linha de desenvolvimento torna-se ainda mais confundida quando se empregam novas tecnologias, como o parque de diversões virtuais que permitem aos seus utilizadores reviverem as memórias do “Amigo” e dos amigos de Kenji, como se lá estivessem, apesar de existirem (descobrimos depois) discrepâncias significativas entre o que essas “memórias virtuais” contam e a suposta “realidade histórica”. Aliás, esse episódio tornar-se-ia extremamente produtivo para discussões em torno da ideia do arquivo e da memória, segundo Derrida (Mal d’archive/Archive fever), aquilo que é arquivável e aquilo que o arquivo, por sê-lo, cria como tal. Afinal, parte do que se passa nesta saga é uma guerra de memórias, perspectivas e, acima de tudo, de como o controlo do poder implica precisamente o controlo do passado (recordando aquela frase famosa de Orwell em 1984: “aquele que controla o passado, controla o futuro”). A relação com a história, ou com os modos como a percepção popular dela – e eventualmente dela mesma – se forma é também explorada de forma delicada em vários momentos, sobretudo pelo filtro das jovens personagens que misturam figuras do wrestling com as de banda desenhada e, daí, com pessoas reais e históricas. A circulação da falsa “Bíblia das Profecias” neste universo diegético, ou a alteração do calendário, não é assim tão diferente da que ocorreu com tantos outros livros, hoje considerados documentos históricos ou pelo menos passíveis de algum peso histórico, e os sucessivos calendários adoptados pelo “mundo”.
Questões de moral, como a separação do bem e do mal, ou se o bem pode ser servido por opções más, ou a capacidade de redenção do ser humano no momento em que se consciencializa da maldade que havia provocado. Para os leitores ocidentais, isto estará muito próximo da temática da redenção cristã, do arrependimento, ou da culpabilidade judaica, mas na cultura japonesa, em que a noção de “pecado” é muito diferente, se existir mesmo, tudo isto tem um propósito bem diverso. Urasawa não escapa de um entendimento do seu contexto cultural de que uma grande parte do que somos é herdado, é transmitido pelo sangue. É como se a “nurture” fosse ultrapassada necessária e finalmente pela “nature” (isto é algo explorado igualmente em Monster, se bem que aí a relação entre esses dois factores é ainda mais complicada). Uma das linhas de especificidade cultural encontra-se na procura por uma harmonia social, pela lealdade ao grupo, algo de bem diverso nas nossas atitudes, que prezam sobretudo a autonomia total do espírito individual, “custe o que custar”. Outra, e que influenciará a valorização do tratamento psicológico das personagens, mas é também fruto das opções estruturais do livro, é que há pouca diferença entre as personalidades das personagens enquanto crianças e enquanto adultas, como se houvesse um fechamento “genético” das mesmas, alheio às vicissitudes do tempo, do crescimento e das relações que necessariamente se fundam e ganham ao longo da vida. Isto é, elas são todas reduzidas a traços convencionais para mais fácil identificação.
Nessa linha de pensamento, seria preciso dizer, “mas ninguém reage desta maneira”, “as pessoas não se lembram das coisas destas formas dramáticas e incompletas”, passíveis de serem interrompidas na diegese, etc. Claro que não. Nada disto é “natural”. É uma obra criada e gerida por um autor, e o mais importante, enquanto obra de arte, é que os seus efeitos sejam perfeitos. E são.
Socialmente, esta série é também muito rica e faz-nos recordar Sanctuary, de Fumimura e Ikegami, também ela explorando a intricada e promíscua rede entre as várias máfias criminosas, o poder político e as consequentes manipulações económicas e, claro, sociais. As religiões também se encontram presentes neste título e em algumas facetas o culto em torno do “Amigo” recordam a seita Aum Shinrikyo – inclusive nos seus aspectos fantasiosos e de controlo do mundo. O catolicismo tem um papel preponderante na série – com o aparecimento e as acções implicadas de padres e até do próprio Papa – mas numa subsunção em relação ao que rodeia o Amigo, tendo em conta que o seu plano também se poderá comparar com as várias versões modernas de como é que o Anti-Cristo, amado pelas multidões, iria ocupar a sua posição social no nosso mundo (de resto, cenário explorado por tantas outras ficções, inclusive a original).
Independentemente da complexidade que 20th Century/21st Century Boys tem, e até daquela que parece ser aumentada pelo uso destes instrumentos críticos, a verdade é que o entusiasmo pela sua leitura não é, a nossa ver, jamais diminuído ao longo das suas páginas.
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25 de fevereiro de 2013
Manben. L’artbook de Naoki Urasawa (Panini)
Semana Urasawa 1. Naoki Urasawa corre o risco de se vir a tornar, se não o é de facto já, uma referência incontornável e perene na história e impacto da banda desenhada contemporânea japonesa no mundo. Sendo perigoso fazer futurologia ou encómios rasgados sem qualquer tipo de fundamento, basta olhar para o passado recente: as obras de Urasawa têm conquistado um público muito (cada vez mais?) alargado, inclusive leitores que usualmente não se aproximam da mangá, por terem criado um filtro qualquer, uma percepção enviesada, desse território, como sempre subsumido a uma meia-dúzia de traços estilísticos, genéricos e de humor que pouco a fazem ultrapassar a condição de mero veículo de entretenimento momentâneo.
Não existem “grandes obras” nem “monumentos” de formas totalmente isoladas da história, do contexto social, da economia de géneros, ou até mesmo dos sistemas económicos e comerciais em si mesmos. Todo e qualquer sucesso angariado, toda e qualquer circulação conquistada, é feita sempre num sistema maior de invisibilidades, ignorâncias e distracções. No campo da banda desenhada não há diferença de maior. Podemos dizer que Watchmen é uma obra-prima para todo e qualquer leitor? Será Baudoin um artista verdadeiramente universal? O que sobreviverá a uma integração maior num mundo cultural vastíssimo, com uma forte componente política, de emancipação humana, de democratização das vozes, de proliferação de instrumentos, de sentimentos diversos: a obra de Hergé ou a de Fred, de Tardi ou de Will Eisner, de Alison Bechdel ou de Marco Mendes? Pensamos antes que haverá espaço para grandes conquistas diversas que preencherão papéis diversos: aqueles que preenchem o papel da composição, os mestres do desenho, os dominadores do enredo e os do desenvolvimento das personagens, os conquistadores de novas experiências, formas e materialidades da banda desenhada e os passadores de fronteiras, os visionários das colaborações e os paladinos da expressão singular e solitária… E tudo também depende de quem lê. Haverá, porventura, fãs coincidentes de William Shakespeare, Hermann Broch, Stephen King e Toni Morrison, sem dúvida, mas serão num número significativamente mais circunscrito, e seguramente que menos vocal e visível, do que aqueles que se cingem a cada um dos “territórios culturais” (em si mesmos ficções, claro está).
De novo, o sucesso depende sempre do interior de certos circuitos. Por vezes, todavia, essas conquistas podem escapar da gravidade interior desses mesmos circuitos, e estamos em crer que alguns títulos de Naoki Urasawa têm as qualidades para esse escape. Isto é, Monster, mas acima de tudo, Pluto, 20th Century Boys (e 21st Century Boys) e Billy Bat constroem um corpus significativo, uma obra conjunta de mangá contemporânea narrativa de grande fôlego, polifónica, transcultural, intertextual, que em parte vibra e medra no seio da tradição da banda desenhada japonesa popular (e outros media e culturas associadas). Aliás, diremos desde já que o elemento mais forte em Urasawa, a nosso ver, é a da sua capacidade em criar enredos intricados e empolgantes. Num jargão técnico, ele é “plot-centered”. E o género (ou supra-género, ou estrutura) mais repetido na sua recensão geral é a dos thrillers. Quer dizer, Urasawa, tal como outros escritores, o já citado Stephen King, por exemplo, apresenta uma plasticidade na manipulação dos eventos que compõem a intriga, a qual, aliada às estruturas materiais específicas deste tipo de banda desenhada - publicada em capítulos curtos semanais, depois reunidos em volumes de centenas de páginas, mas de edição regular, sendo essa serialização e regularidade um importante factor na sua recepção primeira e primária (isto é, enquanto texto na sua acepção social mais completa, não podendo ser lida na ausência dessas mesmas condições de produção sem uma perda substancial de significado) - se torna o centro nevrálgico da sua importância e conquistas. Claro que os prémios “da especialidade” (como se todos não o fossem, mas este apodo surge como uma espécie de vergonha no caso da banda desenhada) não são alheios a essa condição. Não quer dizer que não haja outras dimensões que sejam menos analisáveis, como a sua capacidade de visualização e construção de personagens, diferenciação física e expressões faciais, as suas opções de composição, a gestão que faz entre momentos de um dinamismo alucinante e outros de longas sequências de densos diálogos (mas que, por se espraiarem por várias páginas e balões “curtos”, admite uma certa velocidade de leitura de cada página enquanto unidade de leitura), que não procure um equilíbrio sagaz entre um tom grave e que ancora as suas ficções (ou mesmo ficção científica ou fantasia) num enquadramento realista, e episódios de descompressão através do humor, por vezes mesmo tolo, adolescente, genérico, mas quase tudo isso, todas essas outras estratégias, todos esses aspectos, obedecem de uma forma mais contínua às expectativas generalizadas que foram sendo consolidadas na tradição das mangás shonen e seinen modernas. Talvez até mesmo seja pela sua obediência competente a essas condições, por operar no interior de um certo grau de conformidade, e depois a sua diferenciação por intrigas intricadas, é que Urasawa se destaca: ele foca um aspecto como a sua ponta de excelência, e aí é inultrapassável.
Tendo dado os seus passos em pequenos relatos dos mais variados géneros, como se depreende de uma sua antologia recentemente publicada em francês, de que falamos noutro post, as suas primeiras obras de sucesso comercial vogavam pelas águas genéricas da comédia romântica, aliada à esfera do desporto, como foram os casos de Yawara! e Happy! Mas foram, discutivelmente, as suas obras maduras, os tais thrillers, que o fizeram conquistar territórios de leitores mais alargados, e que consideramos serem capazes de conquistarem mais público ainda, dadas as condições certas.
Nos próximos posts, dedicaremos alguma atenção ao seu trabalho, com destaque para as séries 20th/21st Century Boys, recentemente terminada na sua versão norte-americana, e Billy Bat, cuja versão espanhola já chegou ao sétimo volume (acompanhando de perto a edição original, ainda em curso). Aliás, este acesso disperso em várias línguas (escusado será esperar por versões portuguesas, apesar dos esforços no Brasil) revela desde logo muito a condição esparsa, pouco sistemática da circulação da banda desenhada no mundo, e que deve ser necessariamente sensível às edições internacionais, em várias línguas, ou até às scanlations. É essa diversidade de canais que nos abre acesso a esse imenso mercado, pólo de produção e tradição de banda desenhada, que apenas poderemos conhecer tangencial e incompletamente, que é o Japão. Além dessas séries, falaremos ainda da tal antologia de histórias curtas, este artbook e uma monografia em francês.
Como forma de abertura, ficam-nos algumas das páginas de Manben. L’artbook de Naoki Urasawa, um desses objectos que surgem necessariamente nesse cômputo em direcção à canonização de um autor, e ao relançamento do seu nome como aposta francamente segura na dimensão financeira da mangá na Europa. Como dissemos, a força maior da obra de Urasawa encontra-se no plot, nos enredos, e não tanto na sua abordagem gráfica, o que fica perfeitamente patente nas páginas deste enorme volume para coleccionadores e fãs. Ainda assim, esta é uma oportunidade variegada de tomá-lo por esse prisma. Reúnem-se desenhos sobretudo de aguarelas, acrílicos e lápis de cor, de todas aquelas primeiras páginas de capítulo que costumam sair nas revistas originais, projectos de capa, ilustrações individuais de materiais promocionais, um número demasiado contido de pranchas originais ou esboços, um curioso fac-simile de um caderno escolar no qual se desenrola uma proto-banda desenhada muito devedora aos autores da moda, que o autor leria e procurava imitar. Ainda algumas pranchas de projectos que nunca seriam desenvolvidos, mais são sinal desde logo de um processo de pensamento em acção, e que aliam - por traços e estratégias visuais claríssimas ou por citações directas - a influência “gémea” sobre Urasawa de Tezuka e Moebius.
É quase óbvio e expectável que se pontilhem essas páginas com uma entrevista a meio-gás, e os textos de análise, crítica ou balanço são quase inexistentes, subsumindo-se a brevíssimos resumos das séries assinadas por Urasawa. Juntem-se mais uma quantidade risível de fotografias tiradas no estúdio, provavelmente em apenas um dia e sem sinais quer dos seus colaboradores (sublinhando o mito do “autor solitário” e “completo”) quer de trabalho efectivo, e temos o projecto feito. Independentemente do número de anedotas e pormenores a que temos acesso, e servem sempre à construção da fama e à alimentação dos fãs, e a sumptuosidade do volume, ele não serve tanto o propósito de um balanço crítico, ou sequer de um mapeamento didáctico da carreira ou de uma introdução geral, mas a confirmação dos mais correntes processos de normativização dos “génios”.
Repare-se que não estaremos a negar a capacidade e a qualidade do trabalho de Naoki Urasawa ele-mesmo, sobre as quais discorreremos nos próximos textos, discutindo somente, aqui, a estratégia comercial estreita que impera à fabricação deste livro.
Não sendo um título equivalente a Naoki Urasawa. L’air du temps, de Orsini, é ainda assim este volume um acrescento ao conhecimento visual deste autor.
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:51 da manhã 0 comentários
Etiquetas: Japão, Mainstream
21 de fevereiro de 2013
Três títulos. Pedro Franz (vv. edit.)
Poderíamos tentar dizer que Potlatch não é tanto a conclusão dos eventos da série – o tremendo tumulto popular contra a polícia, pelos seus actos de violência, e a resposta desta através de vários outros actos de violência e inclusive a tentativa de controlo da informação – mas antes os sucessivos dénouement desses mesmos eventos. Há menos um clímax singular (ainda que detectável) do que uma sucessão deles que não se anulam mutuamente, mas pelo menos distribuem a tensão. A palavra empregue para esta compilação dos últimos episódios é, como se sabe, o termo da cultura nativa norte-americana (Chinook, especifica a Wikipédia) para um ritual de oferta de presentes, numa cadência crescente que foi explorada por muitos antropólogos e académicos, mas que poderíamos descrever, talvez simplisticamente, como uma espécie de abnegação e anulação do valor material de si-mesmo, implicando mesmo a ruína económica, mas que angariaria, pelo contrário, um prestígio moral, por assim dizer. Daí que tenhamos aqui no primeiro episódio o protagonista, Lucas, a tentar salvar um polícia (mas há indícios igualmente de que tudo não passa da alucinação quimicamente induzida de Lucas), ou a partilha súbita e exponencial de um vídeo nas redes sociais (ainda que de forma esquemática e instrumental, Franz coloca no centro das relações entre as personagens as potencialidades que a cultura da Web 2.0 permite à vida cultural e social). Claro que poderemos entender que o potlatch não é, de todo, um acto desinteressado, e portanto voltaríamos a olhar todos estes eventos como estruturantes de uma possível redenção dos mal-entendidos cometidos. Mais, o fecho absoluto da série faz-nos afastar das ruas e dos eventos colectivos dos tumultos e a resposta, violenta, dramática, do povo em relação à opressão policial, para um nível literalmente superior, no terraço de um prédio, onde nos ficamos pela esfera privada, íntima, de Lucas e uma nova amante. Será que a “promessa de amor” significa então a única fuga possível dos problemas “lá em baixo”? Que apenas um ensimesmamento nas emoções é solução para as crises sociais?
Mas nenhum desses aspectos é chocante, já que o tratamento do autor quase que “naturaliza” estes eventos através de uma composição de páginas relativamente convencional, de uso retórico, com todas as figuras e cenários nitidamente desenhados a negro e colocando todos os eventos no centro da focalização, evitando assim espaços para ambivalências. O facto de o demónio emergir dos fluidos vaginais da menina, e o “antídoto” partir da semente do menino, não nos parece augurar o melhor princípio na igualdade de oportunidades mas também se poderia ler Bukkake como uma versão irónica do cliché “o amor vence tudo”…
Não podemos falar da série em si, uma vez que a não vimos, nem teríamos os instrumentos mais correctos para tecer um discurso crítico sobre ela, mas não deixa de fazer sentido trazer à colação o conceito, nem sempre muito claro, da “Globoalização”, que remete a uma certa monopolização de conteúdos informativos do Brasil, a uma modelação da imagem do país, inclusive para o exterior, a transformação de certas produções de cultura popular como “representativas” de toda a nação e da sua diversidade cultural, entre outros assuntos. Enfim, a pergunta de que até que ponto é que estas produções são de facto retrato real ou plataforma de expressão das suas pessoas, e não uma política de representação necessariamente (“fotogenicamente”) metamorfoseada. Afinal de contas, as telenovelas e séries não mostram as misérias de frente, ou revelam-no através de um qualquer filtro de felicidade dos “simples” (e Suburbia não é excepção), e todo o mundo parece ser filho do sol e da malhação: corpos perfeitos, soluções individuais, pequenas conquistas. Algum cinema pareceria ser excepção, mas estamos em crer que os modelos neoliberais do mercado livre e a eleição de Tarantino enquanto paradigma (apenas a nível superficial, não de confronto com os fantasmas) vieram afastar as produções contemporâneas – não nos esqueçamos que a Globo é também uma distribuidora de cinema – de marcos do cinema brasileiro “politicamente comprometido” como o Cinema Novo ou Pixote. Mas, repitamos: tudo isto carece de uma análise e conhecimentos mais sustentados.
Apesar do livro ter um grande formato e 64 páginas, é inevitável que esta transmediação de uma série televisiva procure uma maior concentração nas suas acções, elegendo de facto Conceição como figura central, não permitindo grandes desvios de focalização. Além do mais, o autor opta mesmo por soluções de condensação espácio-temporais que tornam as “fases” da vida da protagonista momentos rápidos e organizados causalmente: a vida em Minas Gerais, a fuga para o Rio, a imediata confusão de identidades, um primeiro emprego providencial como doméstica, uma nova fuga por razões sórdidas, o acolhimento numa família suburbana, a descoberta de um mundo maior, inclusive de amigos, música, trabalho, e o amor, a construção paulatina da felicidade possível, e uma oportuna vitória que coroa o seu percurso (de certa forma, Suburbia é uma versão moderna e localizada de Cinderella). Esta condensação é particularmente significativa nos momentos em que o namorado de Conceição, Cleiton, a ensina a ler, escrever e a fazer conta: num breve conjunto de vinhetas, vemos como que um processo mágico de condensação temporal, e não tantos os dificultosos obstáculos que esse processo levaria na “realidade”. São esses alguns dos aspectos que nos levam a considerar este Suburbia como “intrigante”, uma vez que parte de um modelo convencional e até talvez com contornos hegemónicos, para depois criar uma diferenciação de expressão marcadamente autoral.
Isto tem as suas naturais repercussões na dimensão visual. Franz encontra um equilíbrio muito curioso neste livro entre pranchas de construção regular e aquelas mais livres, e uma leitura atenta de cada uma dessas prestações demonstraria como o autor as incute com a tensão emocional que aí é retratada: uma alegria desmedida, um medo terrível, o abandono na dança do funk, ou então a economia regrada e linear da introdução. Quanto ao trabalho imagético, encontra-se a meio entre as liberdades expressivas de Potlatch e o autodomínio de Bukkake, como não poderia deixar de ser, e o mesmo pode ser dito de todos os outros aspectos, como o emprego de texto, aqui em formas de balões convencionais, ali recorrendo a uma voz narradora externa caligráfica, ali multiplicando a confusão babélica das vozes nas festas (o “pancadão”). As cores são igualmente exuberantes, se bem que haja um maior controlo (palavras que não implicam qualquer negatividade no “gestualismo” de Potlatch) na sua aplicação, gerindo alguns troços deixados “por pintar”, alguns brancos, e o uso de aguarela “tranquilizar” a sua materialidade.
Publicada por Pedro Moura à(s) 8:15 da tarde 0 comentários
Etiquetas: Brasil
19 de fevereiro de 2013
Curso Online: Gender Through Comic Books.
Esta parece-nos ser uma oportunidade curiosa, dado que se trata de uma experiência inovadora em relação ao ensino à distância, apesar de levantar alguns problemas (já indicados por algumas pessoas) sobre o seu impacto económico, social e educacional em relação às estratégias mais normalizadas. Isto é, o facto de ser um veículo que disponibiliza informação gratuitamente a um número assombroso de pessoas, mesmo estando associado a uma série de processos típicos de um ambiente de ensino (escrita de trabalhos, discussões balizadas, leituras orientadas, etc.), pode não significar automaticamente melhor ensino ou um avanço efectivo dos conteúdos académicos possíveis.
Neste momento, o programa pormenorizado do curso ainda está a ser trabalhado, mas estará disponível em breve. Descritivamente, tratar-se-á de um curso sobre "como é que a banda desenhada [a palavra empregue é "comic books", remetendo a um pólo de produção muito particular, e não a "comics" em geral] pode ser usada para explorar identidades, estereótipos e papéis de género/sexuais". Uma outra frase, que diz pretender "abordar questões sobre representações e construções de género envolvendo homens e mulheres", parece afunilar desde logo a questão aos papéis da heteronormatividade, mas talvez as questões possam vir a abrir-se mais com as leituras a fazer. Seria bom compreender desde já se a hipersexualização dos super-heróis será tratada, abordando o típico desequilíbrio entre os uniformes dos heróis (que lhes cobrem o corpo todo) e heroínas (que revelam estrategicamente partes do corpo), ou mesmo da figuração (protuberâncias mamilares perfeitamente esféricas e em circunferências superiores às cabeças, desafiando a gravidade, traseiros que independentemente da posição de combate ou de descanso são apresentados ao olhar, etc.), ou como é que determinados assuntos, como as emoções, a biologia, as expectativas, são distribuídas, mas nada disso é (ainda indicado). Já para não falar de que há um notório desequilíbrio entre desejo e fantasia nestas distribuições, mesmo no interior de uma economia exclusivamente heterossexual ("corpos de mulheres enquanto objecto de desejo sexual", "corpos de homens enquanto fantasia do si"). Desta forma se justificam as imagens escolhidas para este post, recolhidas aqui e aqui. Um dos "trunfos" que o curso apresenta - passe a forma espectacular e dramática com o que o vídeo anuncia a coisa - é o conjunto de entrevistas anunciadas com alguns dos escritores e artistas mais famosos do momento. O facto dos nomes até agora badalados serem os de Brian K. Vaughn, Brian Michael Bendis, Jonathan Hickman, Jason Aaron, Scott Snyder, Matt Fraction e Mark Waid - que anunciou de forma bombástica este curso no seu site -, aliados às estratégias visuais de publicidade do curso, e sublinhando a forma como é descrito, apenas sublinha mais uma vez essa ideia de normalização: são todos homens e escritores de títulos quase sempre da indústria mainstream de super-heróis, ou variações. A associação a nomes tais como os de Gail Simone (mulher, mas autora da DC, que quase sempre é usada pela indústria para afirmar "há mulheres que escrevem super-heróis") ou de Terry Moore (autor da esfera independente, e da saga Strangers in Paradise, que explora de forma muito moldada as questões da sexualidade no seu confronto com as expectativas sociais, educacionais, etc.) parecem aumentar o escopo das questões, mas não o suficiente, a nosso ver. As questões (hipotéticas, ou já planeadas?) que Waid coloca, "qual é a personagem de banda desenhada mais masculina?" ou "porque é que o Homem-Aranha já não é casado?" podem até fazer prever o pior. A ausência de nomes tais como os de Alison Bechdel, Gabrielle Bell, Phoebe Gloeckner, Melinda Gebbie, Lynda Barry, Aline Kominsky, ou Craig Thompson, Chris Ware, e tantos outros, faz-nos colocar ainda mais questões prévias, desta feita sobre modos de produção, políticas editoriais, recepção, etc. (mas, recordemo-nos, fala-se de "comic books", não de "comics").
No entanto, acreditando que mais vale seguir as coisas e depois entender o que lhe falta do que minar o projecto em si, fica aqui o desafio aos interessados.
Consultem o site aqui, onde se podem inscrever directa e facilmente.
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:54 da manhã 2 comentários
18 de fevereiro de 2013
Biblioteca de Rapazes. Rui Pires Cabral (Pianola), no Cadeirão Voltaire.
Publicada por Pedro Moura à(s) 7:30 da tarde 0 comentários
Etiquetas: Colaborações, Crítica literária