29 de abril de 2013
Daytripper. Fábio Moon e Gabriel Bá (Vertigo)
Publicada por Pedro Moura à(s) 8:48 da manhã 2 comentários
26 de abril de 2013
Nappun Shinggu. Ancco (Changbi)
Publicada por Pedro Moura à(s) 6:00 da manhã 17 comentários
Etiquetas: Autobiografia, Coreia do Sul
24 de abril de 2013
España la vida. Maximilien le Roy e Eddy Vaccaro (Casterman)
España la vida não é um tomo de análise e de exposição histórica. Não se auscultam aqui os problemas da origem da República em Espanha em 1931, a sua fraqueza interna, as pressões da esquerda e da direita, as relações com outros países (inclusive Portugal, que foi um importante aliado de Franco). O livro explode, literalmente, com os bombardeios alemães nazis (e italianos) sobre a cidade basca de Guernica, e passa de imediato para uma camada histórico-mítica, com o protagonista visitando a Exposição Universal de Paris de 1937 e deparando-se com o famosíssimo quadro de Picasso (é uma pena que le Roy não introduzisse o importante ciclo Sueño y mentira de Franco). Há portanto uma escolha por um afunilamento da história pela perspectiva de um só jovem, e os passos que essa experiência acarretará. Essa exposição a um testemunho da história pelo filtro da acção transformadora da arte é o catalisador para que Léo entre - na economia da narrativa - nas acesas e apaixonantes discussões políticas do seu tempo, anti-fascistas, anti-capitalistas, anti-colonialistas, e as várias frentes de activismo que lhe eram possíveis. Jean-Léonard participa em encontros, na criação de um jornal político, deseja cortar as suas relações com a família burguesa em que nasce, mas é o encontro com os escritos, e depois com a figura mesmo de Viktor Lvovitch Kibaltchiche, mais conhecido como Victor Serge, que acabam por fazer inflectir a sua atitude e o levam à decisão de partir para Espanha e se envolver na guerra.
É essa viagem e envolvimento que perfazem o grosso do livro.
Em Espanha, as facções internas do conflito não deixam de ser abordadas, mas sem grande complexidade (de certo modo, a dimensão romântica, mítica e pessoalizada é muito mais vincada neste livro do que em As falanges da ordem negra, de P. Christin e E. Bilal, ainda hoje um título significativo do modo como a banda desenhada pode inteligentemente lidar com a complexidade da história e as suas consequências). O livro foca a vida de uma personagem singular e as suas relações pessoais com outras personagens, e não se trata de uma obra que deseje expor as complexidades dos combates internos entre sovietes e trostkistas, por exemplo, que minaram a organização da defesa da República contra os fascistas. No entanto, aquela estranha mistura entre “candor e ferocidade”, de que George Orwell fala logo no início de Homage to Catalonia, está aqui presente, nalgumas personagens secundárias, em pequenos episódios, na violência seguida de um qualquer gesto simpático (como o assassinato de um padre, as igrejas e efígies queimadas, e o salvamento de uma imagem de Nossa Senhora para uma velhota acamada).
Vários escritores escreveram sobre um “certo comunismo romântico” que ainda definia os combatentes, e não deixa de ser notável como há de facto factores românticos e idealistas a nutrir a vontade de muitos dos voluntários, sobretudo estrangeiros, para este conflito. A biografia de George Orwell, por exemplo, poderia servir de modelo, mas le Roy ter-se-á baseado seguramente noutras referências que desconhecemos. A dimensão dos intelectuais conhecidos, envolvidos pelo menos no quadro alargado das discussões em torno do conflito encontra-se incorporada neste livro pela presença das várias referências identificáveis, que servem de “efeito do real” sobre a narrativa.
Como escreve Stuart Hall no decisivo artigo “Whose Heritage?”, a nacionalidade ou a pertença a uma nação “sempre se quebrou ao longo de linhas [divisórias] de classe, género e regionais”. Não deixa, portanto, de ser significativo que o projecto revolucionário fosse instituído de modo internacional, procurando elos que se estabeleciam para além da mera ideia fronteiriça (de linhas em mapas, línguas, etc.). e é precisamente esse o aspecto, talvez, que é mais sublinhado em todo o livro.
Essa “transnacionalidade” ganha também contornos “transgeracionais”, quando Léo descobre uma carta do pai que lhe é dirigida. Se esse pai parecia apático, apagado e inerte, a carta revela as experiências dele na 1ª Guerra Mundial, e uma faceta, ainda que então pouco desenvolvida e assertiva, que revela uma profunda simpatia e afinidade pelos ideais de Léo e, no fundo, uma benção às suas escolhas e acção.
Imageticamente, o livro é convencional, mas apropriado. Os desenhos parecem ser feitos a pau de grafite com gestos vigorosos e nervosos, e onde as figuras das personagens surgem muito estilizadas mas com traços identificadores e diferenciados. O nome de Anne-Claire Thibaut-Jouvray encontra-se na capa por ser ela a colorista, e é inegável que o trabalho de Vaccaro ganha uma outra dimensão mais moldada, texturada, volumosa, e significativa graças às cores da artista. Não apenas na criação e distinção dos ambientes interiores e exteriores, como todos os momentos em que a cor assume significados simbólicos (vermelhos a cobrirem o ambiente festivo dos republicanos, sépias para representar o passado, no caso das memórias da 1ª Guerra Mundial pelo pai de Léo).
A guerra, como se sabe, é perdida. Os amigos morrem, as brigadas desfazem-se, poucas são as relações pessoais que se conseguem manter. Fuga e exílio são as soluções para escapar de destinos mais cruéis, não sendo a morte sequer um deles. Mas a sobrevivência de Léo, acompanhado pela carta do pai, faz-nos regressar novamente a Orwell, desta feita a algo que se lê no final do seu livro. “Curiosamente, toda esta experiência faz-me crer não menos mas mais ainda na decência dos seres humanos. (…) Acredito que num assunto desta natureza ninguém é ou pode ser totalmente exacto. É muito difícil ter a certeza de seja o que for senão o que vemos com os nossos próprios olhos e, consciente ou inconscientemente, todos escrevemos como sectários [partisans]”. Orwell desconfia, como sempre, de qualquer versão “objectiva” dos factos complexos, para mais do tecido da história como ele se estende e é experienciado por seres humanos. De certa forma, poder-se-ia dizer que España la vida é um livro sectário, que pretende, não sem mostrar algumas das feridas internas e problemas, o esforço daqueles que romanticamente e dedicaram a um conflito que entendiam não ser meramente local, mas símbolo de uma batalha maior. Mesmo que não tenha sido vencida, são as suas lições que ainda hoje devem fazer sentir os seus efeitos: a de que o combate contra as injustiças é sempiterno, e deve ganhar sempre novos olhos e instrumentos para as identificar no nosso próprio tempo e no nosso próprio lugar.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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Etiquetas: França-Bélgica
22 de abril de 2013
3CBDPT 2013.
Como de costume, remetemos ao blog específico, onde encontrarão todas as informações necessárias.
A imagem é de Marta Monteiro, a quem agradecemos o gesto.
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:53 da manhã 0 comentários
20 de abril de 2013
America’s Got Powers. Jonathan Ross e Bryan Hitch (Image)
Por agora, ficaremos por um único título, que ainda não terminou.
Aproveitando ensinamentos dos recentes livros de Marc Singer e Charles Hatfield, e das entrevistas que tivemos oportunidade de fazer aos autores, ganhamos alguns instrumentos descritivos, analíticos e teóricos que nos ajudam a compreender o estado contemporâneo da banda desenhada de super-heróis, que pode ou não confundir-se com a ideia de mainstream. Desde os anos 1980, com aquilo que mais tarde se chamaria de tendência revisionista, que não temos encontrado exemplos significativos o suficiente para terem, por eles mesmos, transformado ora as práticas criativas, ora as políticas editoriais, ora a repercussão social do género, como Watchmen e The Dark Knight Returns o fizeram então. Pelo contrário, temos visto uma cada vez maior multiplicidade de estratégias, que tanto pode revelar da mistura de géneros, como de tendências de recuperação de estados anteriores ao “revisionismo”, como ainda de estratégias estruturais (visuais, composicionais, narrativas) que tiram partido de outros meios contemporâneos, do cinema pós-CGI aos complexos MMORPGs.
Hatfield é muito claro quando explica que parte da diminuição perceptível na inventabilidade do género no seio das grandes companhias (sobretudo DC e Marvel) se deve ao facto das práticas profissionais não recompensarem a criação desabrida, e por isso testemunhamos aquilo que D. Falconer chamou de “estilo prismático”, que são os desdobramentos internos nesses mesmos universos (Lanternas - cf. Lanterna Verde - de várias cores, o acesso a universos paralelos onde existem miríades de versões das personagens principais, tempos alternativos, etc.). No entanto, esses desdobramentos parecem ser igualmente aquilo que preside a criações independentes no mesmo género, como nos casos de Astro City, The Authority, Planetary, The Boys, Incorruptible e Irredeemable, etc.
Nesse alargado campo de escolhas que muitas vezes sofre de uma sobre-apresentação do mesmo, é raríssimo encontrar títulos que sejam reveladores de uma qualquer faceta interessante ora da própria ideologia inerente aos super-heróis ou a(s) cultura(s) que lhe está associada ora das formas como podem reflectir algo da nossa sociedade real (talvez Mark Millar o tenha tentado em alguns dos seus títulos, mas ele acaba por subsumir tudo ao seu humor irónico e a uma economia de género expectável). America’s Got Powers está próximo de uma dessas reflexões, mesmo que o seja limitada a alguns negligenciáveis aspectos.
Numa das suas muitas curtas histórias cartoonescas e desesperadas, Ivan Brunetti fala do “futuro do entretenimento”, sendo uma dessas descrições a seguinte: “À medida que o escapismo e o sadismo convergem, a tragédia torna-se numa mera farsa, e a evolução apaga qualquer traço de empatia humana, serão os desportos violentos, a tortura e outras atrocidades que substituirão em popularidade a comédia na televisão”. A verdade é que isso não se refere ao futuro, mas à realidade já em curso nos nossos dias, em que a empatia é reduzida simplesmente à histeria do apoio aos concorrentes de programas de televisão em que tudo é concursável: cantar, dançar, cozinhar, e até casar. Jonathan Ross é um apresentador carismático, divertido e ecléctico nos seus programas, e as suas opiniões em relação ao mundo do entretenimento televisivo - para o qual ele próprio contribui - transforma-o num estranho mas eficaz instrumento de crítica “interna”. O seu interesse pela banda desenhada é conhecido, não só pelo coleccionismo, mas igualmente pela colaboração ou autoria de algumas séries televisivas dedicadas à banda desenhada (como Comics Britannia, ou o seu próprio In Search of Steve Ditko), uma outra série de banda desenhada (Turf, com Tommy Lee Edwards, uma mistura de géneros algo confusa) e até aspectos da sua vida pessoal.
America’s Got Powers, como se entende imediatamente, decalca o seu título do famoso concurso America’s (ou outro qualquer país) Got Talent, tornando clara desde logo a premissa: a existência de um concurso onde várias personagens com capacidades super-humanas (todas elas originadas num evento fantástico, muito parecido com o “White Event” do New Universe de Jim Shooter, de 1987, bastas vezes imitado, inclusive na série televisiva Heroes) têm de lutar pelo lugar cimeiro. E, claro, o ingrediente clássico, a única personagem que não tinha poderes nenhuns - Tommy Watts, chamado e “Zero” por oposição a “Hero” - mostrando, no último momento dramático, que é possivelmente o mais poderoso de todos.
No entanto, apesar dessa trama principal, são as linhas secundárias, os apartes, os pormenores de ambiente que tornam toda a série interessante. Parte disso prende-se desde logo com uma estratégia visual de referências, em que Hitch incorre ao atribuir os traços físicos do actor David Tennant, que é o [décimo] Dr. Who da famosa série televisiva, para a personagem Professor Syell, o médico mentor de todo o projecto de America’s Got Powers, ou de Sarah Palin para os da Senadora Handler, a agente do governo controladora do projecto e que pretende explorar os jovens para fins militares e específicos. São eles, no fundo, os dois factores antagónicos em relação a como se devem aproveitar da situação a partir de uma mesma posição “superior” em relação aos jovens (mas isto terá implicações futuras mais complicadas, pela forma como eles acedem a esses mesmos poderes). Hitch já havia seguido estas estratégias visuais noutras séries anteriores (The Ultimates), e com ela faz ligações a um universo mais alargado da realidade política e fictiva do “nosso” mundo, querendo dessa forma fazer ressoar algumas das implicações (a política como entretenimento, o entretenimento como acedendo a uma realidade alargada). Por um lado, portanto, a dimensão social das celebridades, do frenesim em torno de um programa de televisão, as suas consequências para o marketing, o merchandising e as modas são explorados, ainda que superficialmente, ao longo da série, e por outro também não é surpreendente o surgimento do conceito da “conspiração da indústria militar” pelo aproveitamento que fazem destes jovens e do fenómeno que os une.
Ainda que a acção foque sobretudo os acontecimentos com as personagens principais, logo estamos sempre num nível “acima” da mais mundana das existências naquele mundo ficcional, não deixa de haver chamadas para a obsessão que as pessoas no mundo ocidental(izado) têm com a cultura das celebridades, e agregam-se neste título aspectos que tanto se relacionam com séries infantis, como com concursos musicais, como com desportos ou “sportainment”. O primeiro número, por exemplo, abre com uma página imitando uma notícia online e os comentários costumeiros.
Portanto, como é de esperar e é já parte dos mecanismos ficcionais habituais deste tipo de séries - desde Gruenwald e Moore, pelo menos -, estuda-se em que medida é que acções políticas, económicas e sociais seriam tomadas sob a vigência dos super-heróis. Os abusos do complexo militar-industrial sobre estes jovens transformados que são analisados para entender como podem ser empregues - e se o concurso televisivo é a sua “imagem pública”, descobre-se quase imediatamente o lado oculto dessas mesmas operações. É evidente que se poderia fazer uma acusação, algo fácil, de que sendo um título escapista como tantos outros, estes assuntos são apenas um pálido reflexo das questões que de facto assolam a nossa existência global; pior ainda, uma vez que os contornos destas ficções obrigam a uma qualquer resolução. No entanto, a competência quer do escritor quer do artista constroem uma excelente rábula desses mesmos pontos.
Tendo em consideração a quantidade de projectos de mini-séries ou de “arcos” em que se inicia a história com um artista apelativo (no interior das escolhas típicas deste género de trabalho) e à última hora se muda para um outro nome, usualmente de qualidade inferior, se não mesmo péssima, o facto de se ter mantido Hitch é uma mais-valia em relação à coesão do projecto (claro que em detrimento de um ritmo mais célere de publicação, habitual nos comic books; para contraste, veja-se o que aconteceu recentemente com Age of Ultron, em que Hitch foi substituído no no. 6 por Brandon Peterson e Carlos Pacheco, ainda que se possa depois explicar-se isso por razões diegéticas). A arte de Hitch está nos seus trâmites habituais: um ancoramento particularmente feliz na nossa própria realidade, em termos da gravidade dos corpos, da exactidão e quotidianidade dos objectos, etc. Mais do que a sua capacidade de desenhar um homem feito de pedra ou uma mulher em chamas a combaterem, é fazê-lo num cenário plausível e naturalista, com automóveis, copos, computadores, relógios e t-shirts que são idênticas àquelas que encontramos no nosso mundo, tornando esse ancoramento (na ilusão do real) e esse desvio (a fantasia ficcional) em factores perfeitamente encaixados. Enfim, pensamos que Hitch é, com Frank Quitely, John Cassaday, Gary Frank ou Leinil Yu, um dos ápices do melhor que o mainstream produz nos nossos dias, ancorando no mais sólido dos naturalismos as efabulações do maravilhoso próprio ao género.
Do ponto de vista dos super-heróis propriamente ditos, esta hipótese de lavrar um novo “mundo” permite a Hitch e Ross fazerem o mais esperado (e divertido), que é criar toda uma série de variações de modelos já existentes, atirando à parede o barro de muitos super-poderes (dos “bonitos” aos “mutantes”, dos físicos aos psíquicos, dos nomes coloridos aos uniformes… uniformizados, etc.). As vinhetas pejadas de personagens em momentos “heróicos” (esta interpretação moral é sempre colocada em causa, claro) é o ambiente natural deste artista. De resto, tudo se encaixa nos modelos mais clássicos do género, quer em termos de relações quer em termos de acções (uma namorada ou a mãe ameaçadas, um irmão mais velho mais poderoso e que depois conta com o seu apoio, rebeldes enganados, antigos inimigos tornados aliados, e por aí fora). A composição também é, como se espera, da mais clássica das retóricas, no sentido em que é precisa no tipo de efeitos pretendidos, ora pausados e mundanos ora espectaculares e energéticos. O uso quase excessivo, em relação à média usual, de páginas duplas, nem sempre como splash pages, apenas sublinha mais essa mesma espectacularidade, mas não deixa de ser tudo empregue com pertinência. Talvez essa seja uma boa forma de sumariar America’s Got Powers, um “mainstream pertinente”?
Publicada por Pedro Moura à(s) 9:24 da manhã 0 comentários
Etiquetas: EUA, Mainstream, Reino Unido
18 de abril de 2013
Kassumai. David Campos (Chili Com Carne)
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Etiquetas: Autobiografia, Portugal
15 de abril de 2013
Três volumes da Écritures (Casterman)
E esse balanço tem de ser, em termos gerais, algo contundente. A liberdade criativa não se proporciona, conquista-se. E onde a Casterman proporciona um formato específico e provavelmente menos espartilhos editoriais em termos de grafismos e narrativas aos seus autores, na relação da L’Association essa liberdade nascia de dentro e, assim sendo, não é de todo uma surpresa que mais rapidamente encontremos na Ciboulette trabalhos que - independentemente de conquistarem ou não novas linguagens ou plataformas de experimentalismo ou novas dimensões sociais e de voz no campo alargado da banda desenhada - conquistam uma exigência interna autoral maior do que no caso da Écritures, que apenas confirmam aquilo que usualmente se chama de “talentos”, “domínios”, “competências”. Quer dizer, um domínio mais técnico do que uma voz poética, a qual terá sempre, sempre um timbre disruptivo. E é isso o que achamos estar ausente nestes títulos. Confirma-se, consolida-se, mas não se desvia.
Tendo recebido três novos volumes, entre os quais um celebratório ou precisamente de balanço (e que teve igualmente uma dimensão expositiva), deixaremos aqui não mais do que breves notas sobre os mesmos.
Marcinelle 1956. Sergio Salma.
Sergio Salma é mais conhecido como autor de toda uma série de álbuns infantis, como Nathalie. Com este livro, “crónica social romanceada”, como reza a sua apresentação, parece haver uma auscultação das próprias raízes pessoais do autor, nascido em Charleroi e muito provavelmente descendente dos mineiros italianos que povoam este livro.
Pietro Bellofiore é um emigrante italiano que faz parte do contingente de emigrantes convidados a trabalhar nas minas de carvão belgas (um programa que em alemão se chamava de Gastarbeiter), muitas vezes vindos de zonas deprimidas economicamente e para quem a vida dura naqueles trabalhos não era mais do que uma rota rápida para o cumprimento dos sonhos: uma vida melhor em termos materiais, a construção de uma casa na terra, o regresso glorioso às origens, quem sabe com um automóvel… A estada representava uma vida numa relação algo hostil entre esta população obreira, que mantinha a sua cultura paisana, e a que os recebia, mais modernizada, virada para um outro tipo de desenvolvimento. Nada de muito diferente da realidade portuguesa dos anos 1960 e que ainda hoje tem repercussões nas culturas de todas estas realidades. Além do mais, Pietro é um veterano de guerra, tendo estado na Líbia, e apesar de não haver qualquer pormenor, tudo nos indica ter feito parte do exército italiano. Os seus colegas, pelo menos a maioria, como o seu irmão, são homens rudes, cujos horizontes apenas se cingem ao amealhar do dinheiro para o regresso à terra, e qualquer desvio desse projecto - como aquele que Pietro vai começando a nutrir - pode ser visto como uma “traição”. Mas Pietro não é analfabeto, sente-se algo vexado por a mãe lhe enviar ainda chouriços e queijos da terra como se ele passasse fome em Marcinelle, acaba por comprar uma Vespa (marca que surgira então apenas há dez anos), e observamos nele sempre a criação de um desejo por uma vida diferente daquela que lhe havia sido traçada enquanto “emigrante italiano”. Essa abertura de horizonte vai surgir sob a forma de um acidente rodoviário que o coloca, literalmente, no caminho de uma mulher belga com a qual começa a construir uma relação, mais imaginativa do que extraconjugal, “desligando-o” dos seus restantes colegas, com consequências dramáticas.
Uma vez que o título indica a cidade belga que por sua vez remete à famosa “escola” (família estilística) de banda desenhada na qual estiveram envolvidos Jijé, Franquin ou Peyo, é algo expectável que estejamos sensibilizados, como uma chapa fotográfica, para procurar pistas que nos permitissem associações entre o que se passa neste livro – quer em termos diegéticos quer em termos representacionais – e essa tradição. Num dos episódios do livro, Pietro vai até Charleroi, e nas cenas urbanas poderíamos mesmo procurar nos rostos dos transeuntes sinais de identidade dos famosos autores. Mas acima de tudo, aquilo que permite uma associação oblíqua é a vida da belga com que Pietro se começa a relacionar, Françoise, a qual nos apercebemos ser uma mulher moderna, sexualmente emancipada (se bem que o desejo que se vai formando em Pietro não seja correspondido e leve a uma mal-entendido, de raízes culturais), e que tem um passado no Congo belga, onde o pai foi ou é caçador: a casa está decorada de máscaras katanga, pequenas esculturas congolesas, lanças e escudos tribais, e fotografias da cultura colonialista, com cenas de caça e de uma hierarquizada relação com a população local. Além do mais, a casa em si parece decorada com todos aqueles apetrechos da cultura dita “atome”, tão própria de Spirou (recordemo-nos de que a Exposição Universal de Bruxelas teria lugar em 1958, mas são inegáveis as ligações estilísticas aqui implicadas pela via da historia da banda desenhada local).
Se o livro elege um facto real – o desastre mortífero das minas de Marcinelle, que vitimaram centenas de trabalhadores mineiros – para seu centro narrativo, e toda a tessitura social que assume um papel decisivo. E a relação com a produção da banda desenhada belga assume-me, a nosso ver frontalmente, enquanto critica das suas representações. Isto e, em contraste com as fantasias modernistas (de Tif & Tondu, Blondin & Cirage, Spirou, Modeste & Pompon, mas também O Enigma da Atlântida, etc.) e colonialistas (muitos dos mesmos títulos poderiam ser citados, alem de Tintin e toda uma produção nacional) da Bélgica dos anos 1950, existia uma realidade dura, miserável e que se inscrevia “fora” da grande narrativa nacional. Salma, ao escrever esta historia (narrativa), reescreve-a na História (a Grande Narrativa) e reinscreve-a num discurso que não lhe dava atenção.
La dernière femme. Charles Masson.
Tendo falado de uma forma muito sucinta sobre o primeiro livro deste autor, anos atrás, há visivelmente uma maior rotundidade no que diz respeito à escrita e grafismos neste último livro, mas não estamos propriamente perante uma grande conquista em nenhum desses domínios. Tratar-se-á e um livro competente, que cumpre o que promete fazer, mas mais uma vez sentimos um alongamento desnecessário para uma premissa que ganharia se fosse mais sucinta.
Acompanhamos um homem de meia-idade, Albert, que parte num carro clássico, aparentemente oferecido a uma amante que o rechaçou e a quem por isso lhe “rouba” o presente, da Alemanha até Lyon. Ele oferece boleia a um jovem, e para fazerem conversa durante a viagem, Albert conta-lhe a sua vida, a partir da perspectiva das “suas” mulheres: namoradas, amantes, conquistas breves e outras por conquistar mas que deixaram marca. Dois jogos poéticos vão-se instalar. Por um lado, Albert vai seguir um exercício “oulipiano” nas suas relações amorosas, construindo uma ordem alfabética nas mulheres: Annie, Barbara, Chantal, Delpine, talvez Erika ou Elsa, depois, Florence, e por aí fora… Se bem que o narrador externo nos faça entender que essa descrição intelectual tenha sido retrospectiva, pondo em causa muita da narração de Albert. Além do mais, esta “ordem” terá os seus revezes, desvios e problemáticas específicas, mas que revelam mais do jogo autoral do que de uma necessidade diegética propriamente dita. A qual ainda é mais complicada pelo segundo jogo (e estragaremos a surpresa aos leitores na seguinte frase): apercebermo-nos-emos de que o jovem a quem Albert dá boleia não é mais do que ele mesmo muito mais jovem, depois da primeiríssima relação. Ou seja, esta viagem à memória de Albert passa igualmente por uma espécie de desejo em regressar ao início da jornada, a um estado de alguma inocência, à hipótese, sempre sonhada, de aconselharmos os nossos eus mais jovens a seguirem um canal ora ligeira ora radicalmente diferente daquele tomado nas nossas vidas.
A ideia de associar o movimento da viagem à da memória não é propriamente original, e não ganha aqui uma dimensão particularmente significativa. O consumo de uma droga não-descrita (apenas vemos um frasco com um smiley) faz sublinhar um cliché, e não abona à sofisticação de representação, além de que constrói dessa maneira uma justificação natural para o surgimento e relação com o “fantasma”, em vez de, por exemplo, escavar a não-naturalidade, a potencialidade poética, desse mesmo encontro consigo mesmo. Aliado à ejaculação precoce de Albert, à assunção da sua profissão de contabilista para “comportamentos de contabilista no amor”, o revés de Ophélie/Zora/Zorro, etc., acaba por tornar a sua construção psicológica mais numa pequena anedota do que um trabalho desenvolvido e realista de moldar a personagem.
La villa sur la falaise. AAVV.
Na esteira dos álbuns antológicos desta colecção, e mais propriamente para comemorarem os seus dez anos, convidaram-se dez artistas para trabalharem um mesmo ponto de partida. Benoît Sokal escreveu um pequeno texto, apresentando no início do livro, que cria uma situação narrativa: numa pequena e isolada vila numa ilha ou península, uma casa sobre uma falésia é, pela derrocada desta, cortada ao meio, dando a ver o seu interior a todos os que visitarem a praia. Sendo herança de uma mulher, esta regressa a esse local passados quinze anos de ausência. Sokal deixa entender mais uns quantos pormenores (o filho dormindo no carro, o ser observada pelo vizinho escritor, etc.), mas não fecha nem coarcta as possíveis redes de relações entre as personagens. É a partir dessa situação, portanto, que todos os autores criarão as suas histórias. São eles, por ordem, Cati Baur, Nate Powell, Hannah Berry, Saulne, Isabel Kreitz, Davide Reviati, Jiro Taniguchi, Fred Bernard, Gabrielle Piquet e Kan Takahama.
Como já dissemos noutras ocasiões, é muito interessante quando os autores fazem inflectir um trabalho de encomenda ou este tipo de exercícios para os seus projectos contínuos. É aqui que se encontram algumas das diferenças dos instrumentos entre autores mais convencionais e aqueles que mais se entregam à “política dos autores”. Não é que exista nenhuma hierarquia intrínseca entre uns e outros, atenção, pois cada qual criará os seus próprios textos, de naturezas bem diversas, e que conquistam, cada qual a seu modo, os seus prazeres inerentes. Todavia, quando nos deparamos com projectos deste tipo, que apontam precisamente para uma capacidade maior de expressividade autoral, notamos quando não há uma coerência ou continuidade dessas mesmas linguagens.
As escolhas dos autores, como em qualquer ocasião, são passíveis de revisitações e circunstâncias, logo, não merecem uma crítica por si mesmas. Mesmo assim, apesar de estarem presentes autores que têm volumes na própria colecção (Taniguchi, Takahama, Bernard, Piquet), a escolha não parece ter tirado partido do seu universo de referências circunscrito. É internacional, tendo autores japoneses, norte-americanos (Nate Powell - a quem pertence a imagem de abertura deste post), alemães (Kreitz), e outros, e desde veteranos a autores mais jovens. Nesse aspecto, procuram uma diversidade salutar.
No entanto, as inflexões que os autores fazem são relativamente circunscritas. Quase todos colocam a vila nos seus países respectivos, ou pelo menos no interior de tradições de representação que as circunscrevem às nacionalidades de cada um. Há casos onde essa identificação é clara, e noutras mais ambígua. Há casos em que o espaço da vila é expandido e populado, noutros casos reduzido a um canto só. A dimensão policial ou de mistério surge num par de autores (Powell e Bernard), muitos deles resolvem construir uma rede novelesca e intricada de enganos e traições amorosas entre todas as personagens envolvidas (Reviati, Bernard, Piquet, Takahama), quase todos sublinham questões das emoções da protagonista, ora fazendo dela uma mulher livre, emancipada mas com uma âncora qualquer que a prende ao passado (aquela vila, a vida que ela representa) ora titubeando entre situações amorosas. Taniguchi traz uma dimensão de ficção científica que destoa de todas as outras histórias, não a tornando particularmente forte. A nosso ver, as melhores histórias, que na verdade subvertem as expectativas da premissa, são aquelas da artista britânica Hannah Berry, que constrói uma espécie de comédia do absurdo graças à burocracia em torno do acidente (digamos que é um Beckett meets Douglas Adams), e da alemã Kreitz, que abdica de uma focalização centrada numa personagem, e estrutura uma fiada curiosa entre vários habitantes da ilha, fazendo “passar a bola” entre personagens, mas mesmo assim tecendo uma breve trama com um final de surpresa.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos livros.
Publicada por Pedro Moura à(s) 3:32 da manhã 0 comentários
Etiquetas: Antologias, França-Bélgica
12 de abril de 2013
Days of Destruction, Days of Revolt. Chris Hedges e Joe Sacco (Nation Books)
Um dos primeiros aspectos a ter em conta, desde já, é o pequeno engano deste projecto. Confessemos que muito provavelmente a existência deste livro jornalístico nos passaria ao lado caso não tivesse a presença de Sacco no seu interior, a tratar de matérias “domésticas”, o que não é comum na sua obra jornalística (sendo longínquo o trabalho de repórter cultural). Mas falar-se de co-autoria, como a distribuição dos nomes na capa parece querer indicar, é algo abusivo. Este é um livro de umas duzentas e setenta páginas de prosa jornalística investigada, escrita e estruturada por Hedges, repórter, nas quais se abrem pequenos espaços para a intervenção de Sacco (que perfarão umas cinquenta). E apesar de Hedges escrever, nalguns momentos, “Joe e eu visitámos”, “Joe e eu falámos”, etc., não estamos propriamente no interior de uma atitude gonzo, de envolvimento da(s) pessoa(s) do(s) jornalista(s) com as pessoas, espaços, ambientes e eventos que visitam (com uma excepção, que abordaremos), e que é uma das características - “essenciais”?, necessariamente visíveis pela visualidade da banda desenhada? - permanentes do trabalho de Sacco.
O livro está estruturado em cinco capítulos, cada um deles sobre um local e uma realidade distintos nos Estados Unidos da América, todos eles descritíveis como representantes de “zonas de sacrifício”, um dos termos cunhados por Hedges. Esses capítulos são “Days of Theft”, sobre Pine Ridge, South Dakota, que aborda a miserável vida dos nativos americanos, reduzidos ao alcoolismo, consumo de droga, violência indizível, e uma quase total desagregação social (e que, ficcionalmente, Scalped tão bem explorou); “Days of Siege”, que se passa em Camden, New Jersey, sobre a cidade mais violenta dos E.U.A., habitada sobretudo por uma população, maioritariamente negra, e paupérrima, onde avassala o consumo de crack ou coisas piores, e a corrupção camarária e policial é endémica; “Days of Devastation”, sobre as minas de carvão de Welch, West Virginia, que têm destruído uma das paisagens mais antigas do planeta e a transformaram numa desolada paisagem lunar; “Days of Slavery”, sobre o trabalho precário e ilegal em Immokalee, na Florida, sobretudo nos campos de tomate com mão-de-obra vinda do México, Guatemala e outros países da América hispânica; e “Days of Revolt”, sobre o movimento Occupy, em Liberty Square, na cidade de Nova Iorque.
Estas “zonas” todas têm o seu próprio historial, o seu enquadramento de problemas, que poderá envolver questões étnicas, classistas, racistas, políticas, económicas, culturais, ecológicas, mas sempre terão resultados de situações financeiras perniciosas para uma grande fatia da população, quase totalmente abandonados (e que, ao reagirem das formas como são obrigados a fazer, à margem da representação política “legítima”, “legalista”, etc., são tratados como “marginais”, “radicais”, “sonhadores”, etc.). “A segregação económica é a nova e aceitável forma de segregação” (76). Aceitável no sentido em que, de acordo com a moralidade norte-americana, que em Portugal se começa a sentir igualmente num certo (anti-)pensamento liberal, só é pobre e miserável quem quer, e não é nossa responsabilidade - política, cultural, social, de todo o cidadão - batalhar contra as injustiças que ocorrem aos outros. Hedges emprega toda uma série de expressões estranhas, hiperbólicas mas que pretendem sublinhar a necessidade de uma resposta concertada: “zonas de sacrifício nacional”, “colónias internas”. Mesmo falando apenas de Camden, a expressão de “poster child da América pós-industrial” (77) poderia ser empregue em relação a quase todas estas situações, às quais se juntariam outras mais, quer no interior daquele país quer na transposição deste trabalho e foco para outras realidades.
São exploradas, portanto, as novas formas de abuso de poder pela parte das grandes companhias corporativas, que tanto passam pela procura de mão-de-obra o mais barata possível (trabalho ilegal, estrangeiro, de prisioneiros, ou em mercados exteriores não regulados por políticas sociais minimamente éticas e consolidadas, como o caso da China ou da Índia). E os novos mecanismos de poder perpétuo, como por exemplo, a forma como a acusação de “felony” impede deste logo as pessoas a poderem chegar a um conjunto de acessos a saírem da miséria, e que são um sinal da descriminação racial que ainda é hoje sentida, e é efectiva, nos Estados Unidos (é mais fácil taxar toda a gente que vive em condições miseráveis de “criminosos” do que compreender as condições em que vivem e os expedientes a que se vêm obrigados; Hedges não a cita, mas Michelle Alexander tem um livro incontornável sobre esta situação em particular, em The New Jim Crow). Ou a “escravidão por dívida” (debt peonage) que se verifica em toda uma série de actividades, da apanha de legumes à prostituição.
Não deixa de haver uma atenção para com a dimensão histórica de cada caso, claro está, pois só assim é que se entende a lenta mas inexorável marcha de destruição (ou canibalização mesmo) que os processos do capitalismo necessariamente implicam. E todos os exemplos explorados por Hedges servem para criar a ideia de um modelo que ainda hoje faz sentido: “O antigo conflito entre índios e euro-americanos, entre colonizadores e colonizados, entre mestres e servos, é o modelo para o último acto do estado corporativo” (54). A consciência dos próprios nativos enquanto seres colonizados só teria surgido quando do seu envolvimento na guerra do Vietname, onde se tentou um outro processo de colonização; o movimentos dos direitos civis (dos negros) é visto como uma vitória legal, mas não económica. Mas a origem de todos os problemas está no avanço do sistema capitalista (Custer, por exemplo, deixa de ser visto como um “herói nacional” do que um esbirro de interesses das exploradoras mineiras).
Neste enquadramento temático e político, a presença de Sacco é explorada de duas formas. Ora temos “spot illustrations” de pessoas entrevistadas ou das paisagens visitadas, mas muito pouco - e quase arriscarmo-nos-íamos a dizer que, estando presentes todas as características de Sacco, da trama ao tratamento do pormenor significativo, do enquadramento horizontal dos interlocutores à fisicalidade dos seus corpos, etc., não há momentos de vigor surpreendente - , ou temos páginas-sequências, em banda desenhada, em que alguém expõe a sua experiência de vida de uma maneira retrospectiva. Isto é, meia-dúzia de entrevistas. Não deixa de haver uma ou outra estratégia interessante na parte da integração do trabalho de Sacco no livro, sobretudo por nos serem introduzidas as personagens numa página, com o texto em prosa à sua volta, e depois dando lugar estruturalmente à mancha da banda desenhada. No entanto, o que parece é reduzir-se Sacco a um “tradutor” da vida contada dessas personagens em curtas bandas desenhadas, o que lhe dá a possibilidade de reavivar narrativamente esses mesmos passados - algo bem diverso do que aconteceria se se juntassem somente uma mão-cheia de fotografias dos locais e das pessoas nesses tempos -, mas não propriamente um espaço de diálogo e tensão entre uma forma e outra de jornalismo (prosa versus banda desenhada). No entanto, fazer um contraste entre um livro que utilize a fotografia e que partilhe os mesmos fitos políticos, como, por exemplo, mais ou menos de modo aleatório, A Seventh Man, de John Berger e Jean Mohr, poderia surpreender contrastes e contenções diferentes entre o uso da fotografia e do desenho (ou mesmo da banda desenhada, o que não é o mesmo), mas duvidamos que fortalecesse este título.
Ler este livro é um exercício sombrio e desgastante, sobretudo para o leitor desprevenido. A realidade da miséria é tal que é difícil não sentir a beira de um abismo e a quase esmagadora impossibilidade de reacção. Porém, Hedges não quer deixar de mostrar ao mesmo tempo as possibilidades de esperança: a sobrevivência das pessoas e a forma como quebram os ciclos de violência e dependência, a organização sindical dos trabalhadores com medidas concretas, a resistência de grupos contra as pressões de grandes companhias, por mais esmagadoras que elas sejam, a constituição de veículos para expressar novas vozes de novas maneiras, a escolha pela não-violência como prova de moralidade face à violência dos novos regimes pós-democráticos, e a solidariedade, “a decisão feita por uma pessoa que está ferida para dar a mão a outra ferida” (101). E as histórias de Sacco, mesmo tendo poucas páginas (de 5 a 13), de uma maneira ou outra quase sempre criam um arco claríssimo: início numa situação terrível, por vezes ainda uma descida mais acentuada, e redenção final, mostrando a esperança para o futuro, e servindo de modelo a outros casos.
A revolta ou revoltas abordadas são vistas por Hedges, em vários momentos, como necessariamente vindo de sectores educados (o autor cita Ho Chi Mihn, Gandhi, Lumumba, comparando-os, por um lado, com os índios revoltosos em Wounded Knee em 1973, e por outro, com o Occupy Wall Street), abordando os casos em que quando a revolução foi totalmente “por baixo”, que os frutos dados foram violentos demais. Não sendo este um tratado de política ou de história política, esta oposição não é estudada com cuidado, mas não deixa de ser sintomático que se procure esse posicionamento num livro, para mais com a presença de Sacco, com todos os instrumentos para chegar a uma classe social lida e culta. Entre um público que, logo à partida, saberá defender-se contra o “totalitarismo invertido” de Sheldon Wolin (citado na pg. 238), em que os instrumentos de repressão não são tanto o bastão mas os prazeres oferecidos por uma sociedade de consumo, de fontes suficientes para a distracção. Esperemos que o próprio livro não seja subsumido a mais um produto desse mesmo consumo, que tudo consegue, como se diz nos dias de hoje, co-optar…
O último capítulo é o mais controverso, até por ser diferente em natureza, e não somente em grau. O autor, explicando como o “sonho americano” é uma mentira, a ideia de que o progresso é para sempre, compara a devastação das zonas de sacrifício que tratara com a forma como toda a sociedade norte-americana está a sofrer neste momento. E se as populações desses casos anteriores poderiam ser vistas como “outros” (índios, negros, hispânicos, rurais, etc.), Hedges sublinha a moral: “Eles foram primeiros. Nós estamos a seguir. A indiferença que demonstrámos face às vozes das classes desprivilegiadas, os nossos próximos no sentido bíblico, assombram-nos. Somos cúmplices do nosso próprio fracasso. Só nos resta a revolta. É a nossa única esperança” (227). E vira-se então para um acontecimento que ele não poderia prever no início do seu projecto (que levou dois anos a ser construído), que foram os acampamentos em Nova Iorque e, depois, outras cidades, conhecido como Occupy. E nos quais Hedges participou de forma activa (contribuindo, por exemplo, para o The Occupied Wall Street Journal). A controvérsia prende-se com a tessitura social muito diversificada desse evento, por oposição à maior circunscrição de cada um dos anteriores quadros. E, por outro lado, por a esmagadora maioria, ou pelo menos aparente, daqueles que se tornariam os “exemplos” do Occupy serem antes estudantes ou trabalhadores liberais brancos, educados, e mais intelectuais do que trabalhadores. No entanto, se este capítulo não é um tratamento completo desse movimento, ele é ainda assim suficientemente claro para expor alguns dos seus inéditos mecanismos de funcionamento e participação - o “microfone do povo”, o “caucus” ou espaços de protecção, os “stack-keepers” ou distribuidores de participação, etc. - assim como para servir de plataforma concreta de ilustração da oposição prática e activista contra a teoria preconizada por, respectivamente, Bakunin e Marx.
Não tendo nós formação jornalística, não nos podemos pautar, pela sua ignorância, pelas regras dessa disciplina. No entanto, há dois aspectos que julgamos se prenderem com essa realidade que importa salientar ou indicar, pelo menos. Em primeiro lugar, sabemos que citar números, estudos e estatísticas podem parecer argumentos poderosos, sobretudo quando serve para criar absolutos (“o mais x”, “o menos x”, “o n país que”, etc.). No entanto, a sua computação obedece muitas vezes a critérios diferentes em países (e momentos, e plataformas, e perspectivas) diferentes e as comparações directas podem menos revelar do que tornar confusas essas comparações; é preciso um filtro sociológico para o seu tratamento. Isto para dizer que Hedges utiliza vezes sem conta toda uma série de relatórios e dados, cuja resposta só seria possível no conhecimento cabal não apenas desses mesmos dossiers, como dos pressupostos que os enquadram. Em segundo lugar, não é oculto o desígnio de Hedges em criar uma retórica polémica, controversa, e mesmo politizada no seu sentido de agilizar uma acção, uma vontade. Haveria, portanto, uma ausência de contraditório nas matérias que ele aborda e investiga. Todavia, poderemos dizer que esse contraditório já existe, ou melhor, que é ele mesmo o contraditório dos mitos que circulam com maior presença, intensidade e “ar de seriedade” nos meios de comunicação social mainstream. Apenas a título de exemplo, um dos argumentos esgrimidos pelo The Economist, um dos grandes bastiões da economia neoclássica e as teorias dos mercados (auto-)suficientes, etc., é a de que o capitalismo gera mais riqueza do que qualquer outro sistema económico, e isso, necessariamente, implica maior riqueza para todos. Ora, os retratos específicos de Hedges vêm mostrar precisamente como os grandes grupos económicos (de empresas a especuladores financeiros) gerem de facto maior lucro, mas que a sua distribuição acentua as desigualdades sociais e, a longo prazo, o preço a pagar (por uma grande parte da população) é elevado: consumo total de recursos, desenvolvimento de doenças, crises sociais e culturais endémicas nos locais após a saída das empresas (graças às políticas de “deslocalização”, e de busca por mercados de maior “competitividade laboral”, sinónimo de “mão de obra barata”), e por aí fora.
Há aspectos menos claros, em que o rigor dos conceitos parece ser ele mesmo sacrificado em nome de um “chamamento às armas” - que não negamos concordar ser necessário. Por exemplo, a propósito da história da relação entre o poder colonialista dos euro-americanos de Washington e as populações nativas, durante o século XIX e XX, há uma diferença entre “integração” e “assimilação” (pg. 40) que não é devidamente assinalada, para se criar uma apressada demonização de um dos lados. Por exemplo, Hedges cita Howard Zinn, do seu famoso livro The People’s History of the United States (fãs de Good Will Hunting recordar-se-ão da sua citação) sobre como essa mesma história tem sido “uma longa batalha pelos marginalizados e desapossados pela dignidade e liberdade” (94). Mas é o próprio tratamento controverso de Zinn (e de tantos outros autores citados) que aumenta o grau de retórica emotiva de Hedges mais do que a sua articulação dos factos (não diremos “completos” nem “objectivos”, pois sabemo-lo impossível).
No entanto, como evitar esse tom, quando aquilo que se combate não tem uma concentração numa figura, de uma configuração nítida, mas é antes uma constelação atomizada de agentes que se desresponsabilizam das suas acções? Como diz o padre Doyle, de Camden, “Tu tens um inimigo, e esse inimigo é a ganância e o preconceito e a injustiça e todo esse tipo de coisas, mas não podemos atingi-lo. Não há cabeça, não há clareza” (111). Mas a continuação do que diz Doyle é não só real como assustadora. Esse inimigo existe, que cria a tensão, o medo, a angústia e o desespero, mas como não é “visível” nem “objectivo”, que fazem as pessoas? “[Elas] então atacam os seus próximos”.
Repetidamente, Hedges emprega o pronome “nós” para se implicar a ele mesmo e aos leitores (que sentirão empatia pelas suas palavras e posicionamento), mas ao mesmo tempo para dar conta de uma possível “inclusão radical”, para empregar uma expressão de John Friesen, um dos activistas em Zuccotti Park/Liberty Square. Por vezes, de modo a chegar a identificações bombásticas (na pg. 54 chama a esse “nós” prisioneiros), mais uma vez acentuando o aspecto polemizante e conducente a uma resposta participativa e enfática dos seus leitores. O que se pretende é que haja um recrutamento de todas as vítimas, uma emergência de acções não voltadas contra os próximos imediatos, mas antes esse tal inimigo. E tal como ocorreu nos Occupy, há menos interesse em criar exigências concretas, do que perceber que princípios (novos) políticos se podem formar. Citando Kevin Zeese, um dos activistas envolvidos na estruturação desses movimentos descentralizados, “A nossa tarefa é tornar o politicamente impossível no politicamente inevitável” (237). Há aqui muitas lições a aprender para a nossa própria circunstância.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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Etiquetas: EUA
10 de abril de 2013
Haggarth. Victor de la Fuente (Casterman)
No que diz respeito à carreira de la Fuente propriamente dita, o texto de Finet também estabelece os princípios gerais de maior importância em relação a este título, desde a criação, ainda em Espanha, de uma outra personagem similar, Haxtur, em 1971, o seu maior sucesso comercial com Mathaï-Dor em 1972, se bem que com contornos diferentes (e irmanáveis a Simon du Fleuve, iniciada em 1973, e Jeremiah, em 1979, todas estas cruzamentos entre o pós-apocalíptico e géneros mais tradicionais) e finalmente a entrada na revista francesa.
Numa primeiríssima abordagem, poderemos dizer que Haggarth não apresenta muitos elementos diferenciados daquelas outras séries assinaladas. Temos o guerreiro solitário e exímio no combate com a espada, paisagens ambíguas em termos históricos mas que parece empregar elementos díspares da Idade Média, do ciclo arturiano, de vários ambientes mitológicos e ainda da pré-história, mesclando alquimia, lagartos gigantes e templos flutuantes. E mulheres semi-despidas. O Mercenário não está longe... Que haverá então de inflexão? De pormenor individual? Na verdade, para a ela chegar, importa fazer ainda uma outra, última, comparação: com Axle Munshine, de Godard e Ribera. Haggarth era um guerreiro Tuna, mas ele é morto. Ao mesmo tempo, um outro jovem é ferido e cego. Por artes mágicas e sortilégios, o jovem consegue salvar-se, mas tomando o rosto de Haggarth. Ou seja, há como que uma mistura das duas pessoas num só corpo e isso vai lançar Haggarth (o novo) numa senda que não apenas tem a ver com as exigências necessárias das acções imediatamente em curso como também da sua própria identidade, que se prenderá com questões de propósito, da liberdade relativa dos homens face a quem detém o poder político, à ideia de pertença a algum lugar ou nenhures. Perceber-se-á aí o alcance da comparação com o Vagabundo dos Limbos, apesar das diferenças que os géneros acarretam e os contextos diegéticos precisos de cada título. Fuentes não terá tempo para explorar muito esta dimensão, uma vez que não deu continuidade à série, mas adivinha-se nesta personagem uma vontade em explorar pequenos desvios comportamentais em relação às expectativas que o género implica, e que terão sobretudo a ver com as suas violência e ideologias típicas.
O estilo de Victor de la Fuente é conhecido, e integra-se naquela grande escola naturalista e de rigor anatómico fundada por, na banda desenhada, Alex Raymond e Hal Foster, e que encontra em tantos autores, cada um com as suas pequenas diferenças fundamentais (elasticidade, pose, jogos de contraste, domínio do chiaroscuro, composição e dramatismo dos enquadramentos, etc.), como Burne Hogarth, Al Williammson, John Buscema, Joe Kubert, Eduardo Teixeira Coelho, Victor Mora, Enric Sió, Julio Ribera, Attilo Micheluzzi, uma continuação regrada e sólida dessas regras. De resto, e novamente remetemos ao texto de Finet, Fuente exploraria, por obrigação de escola, mercado de trabalho e inflexibilidade ética de trabalho, estes mesmos instrumentos nos variadíssimos trabalhos que fez para a indústria de banda desenhada anglo-americana (Dell, Fleetway, através das Selecciones Ilustradas, etc., de que algum material seria publicado em Portugal) e faria para esse título de culto, Tex.
Mais, o domínio do artista espanhol do preto-e-branco, sem (quase) recurso a meios-tons ou tramas industriais, estuda-se não apenas nos corpos humanos (os músculos dos guerreiros e as formas voluptuosas das mulheres), mas nas formas mais fluidas e orgânicas: os fumos e os líquidos, as lianas, os ramos, os arbustos e as plantas, os variadíssimos animais, dos mais realistas aos mais extraordinários, e os grandes planos que mostram edifícios ou mesmo aldeias semi-medievais e semi-fantásticas.
A maneiracomo Fuentes gere as relações entre os tempos da acção é muito significativa. A banda desenhada, mormente a clássica, gere sempre tempos diferenciados, o dos textos falados ou nas legendas, e o das imagens, mas pode encontrar formas de complicar a sua relação, através da composição ou modos de transição entre as vinhetas. Ora é isso o que sucede em muitos momentos, aumentando o grau de acção da série.
Por exemplo, na página 84, Ethan pergunta a Haggarth o que ele experienciou no interior de um estranho templo flutuante, mas quando Haggarth lhe responde, já estão a uma grande distância do mesmo templo. Uma interpretação seria pensar que Haggarth escutou a pergunta, mas fica em silêncio o tempo da descida, de agarrar as vitualhas e colocá-las a tiracolo, começar a caminhar, com Ethan atrás – insistindo na pergunta? – e apenas responder passado 3 minutos. Mas para quê “imaginar” essas outras acções? (lá está o problema de querer verbalizar o que ocorre entre as vinhetas, como McCloud o deseja). Porque não aceitar que este é um diálogo corrido, sem silêncios entre as falas, e que apenas na banda desenhada permite um movimento maior entre espaços? Não é apenas em cenas de diálogo que vemos estas (supostas) discrepâncias temporais. Na página 148, Haggarth defende-se de uma amazona que o ataca: numa primeira vinheta a amazona prepara-se para o ferir com uma lança e inclina-se para trás, ao passo que Haggarth prepara para a golpear com as costas da mão, mas flecte os joelhos para ganhar estabilidade; na seguinte, ele desfere o golpe, e a amazona deixa cair a lança. Mas não há indícios nas suas posições físicas que permitam entender quem se aproximou de quem (os pedregulhos do cenário não ajudam, se se ler o conjunto maior). O que se passa então?
Estas temporalidades não são propriamente ditas “experimentais”. Bem pelo contrário, a obra de Victor de la Fuente faz parte de uma produção classicizante, que procura o mínimo de ruído possível no que diz respeito à naturalização da leitura dos seus textos: isto é, procura-se que os leitores leiam a “história”, esquecendo-se de estarem a olhar para a estruturação composta e pensada de uma sequência de imagens singulares. Mas essa aparente falta de respeito para com a temporalidade do mundo real é então própria da matéria da banda desenhada, aproximando-a então de uma dimensão performativa tal como ocorre nas peças de teatro no momento em que são levadas a cena. Tratamentos narratológicos contemporâneos não devem olhar para estas ou outras cenas como “desrespeitando” o tempo fenomenal do nosso mundo – como o qual estaremos sempre a fazer comparações – mas antes a aceitarem-nas como fazendo o seu próprio tempo. Ou, citando Viktor Shklovsky, “o ‘tempo literário’ é claramente arbitrário: as suas leis não coincidem com as leis do tempo vulgar”. A existência de dois tempos, o verbal e o visual, na banda desenhada, ainda complicam mais esta situação. Mas uma análise atenta destas discrepâncias, mesmo não lançado esta obra (ou outras análogas) para a categoria do “pós-moderno” ou do “anti-mimético”, demonstrarão ainda assim técnicas não-miméticas no interior de produções naturalizantes.
Haggarth é um daqueles textos que confirmam todas as forças e qualidades do mainstream: em termos de criação da situação, de moldagem do protagonista, de estruturação do mundo ficcional, da arte do desenho clássico, na composição rigorosa e dinâmica, tornando o texto total fluido e elegante. É uma promessa também de uma pequena mudança ou diferença num género que usualmente se pauta pelas mesmas características de sempre, apesar de não ter tido continuidade. Acima de tudo é mais um elemento para ir compondo o edifício de uma história imensa da diversidade deste campo criativo.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Publicada por Pedro Moura à(s) 2:13 da tarde 0 comentários
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