“O factor determinante da produção corporativa global é a pobreza”, escreve Chris Hedges na página 194, e, mais sucinto na 88, “A pobreza é um negócio”. Este livro é, de certa forma, um estudo - subjectivo, é certo - de como é que esse negócio se tem processado nos Estados Unidos, quais os seus agentes, quais os seus instrumentos, quais os seus preços, quais os seus meandros e, acima de tudo, quais as suas vítimas, que no fim de contas são o objecto de atenção deste livro.
Um dos primeiros aspectos a ter em conta, desde já, é o pequeno engano deste projecto. Confessemos que muito provavelmente a existência deste livro jornalístico nos passaria ao lado caso não tivesse a presença de Sacco no seu interior, a tratar de matérias “domésticas”, o que não é comum na sua obra jornalística (sendo longínquo o trabalho de repórter cultural). Mas falar-se de
co-autoria, como a distribuição dos nomes na capa parece querer indicar, é algo abusivo. Este é um livro de umas duzentas e setenta páginas de prosa jornalística investigada, escrita e estruturada por Hedges, repórter, nas quais se abrem pequenos espaços para a intervenção de Sacco (que perfarão umas cinquenta). E apesar de Hedges escrever, nalguns momentos, “Joe e eu visitámos”, “Joe e eu falámos”, etc., não estamos propriamente no interior de uma atitude
gonzo, de envolvimento da(s) pessoa(s) do(s) jornalista(s) com as pessoas, espaços, ambientes e eventos que visitam (com uma excepção, que abordaremos), e que é uma das características - “essenciais”?, necessariamente visíveis pela visualidade da banda desenhada? - permanentes do trabalho de Sacco.
O livro está estruturado em cinco capítulos, cada um deles sobre um local e uma realidade distintos nos Estados Unidos da América, todos eles descritíveis como representantes de “zonas de sacrifício”, um dos termos cunhados por Hedges. Esses capítulos são “Days of Theft”, sobre Pine Ridge, South Dakota, que aborda a miserável vida dos nativos americanos, reduzidos ao alcoolismo, consumo de droga, violência indizível, e uma quase total desagregação social (e que, ficcionalmente,
Scalped tão bem explorou); “Days of Siege”, que se passa em Camden, New Jersey, sobre a cidade mais violenta dos E.U.A., habitada sobretudo por uma população, maioritariamente negra, e paupérrima, onde avassala o consumo de
crack ou coisas piores, e a corrupção camarária e policial é endémica; “Days of Devastation”, sobre as minas de carvão de Welch, West Virginia, que têm destruído uma das paisagens mais antigas do planeta e a transformaram numa desolada paisagem lunar; “Days of Slavery”, sobre o trabalho precário e ilegal em Immokalee, na Florida, sobretudo nos campos de tomate com mão-de-obra vinda do México, Guatemala e outros países da América hispânica; e “Days of Revolt”, sobre o movimento Occupy, em Liberty Square, na cidade de Nova Iorque.
Estas “zonas” todas têm o seu próprio historial, o seu enquadramento de problemas, que poderá envolver questões étnicas, classistas, racistas, políticas, económicas, culturais, ecológicas, mas sempre terão resultados de situações financeiras perniciosas para uma grande fatia da população, quase totalmente abandonados (e que, ao reagirem das formas como são obrigados a fazer, à margem da representação política “legítima”, “legalista”, etc., são tratados como “marginais”, “radicais”, “sonhadores”, etc.). “A segregação económica é a nova e aceitável forma de segregação” (76).
Aceitável no sentido em que, de acordo com a moralidade norte-americana, que em Portugal se começa a sentir igualmente num certo (anti-)pensamento liberal, só é pobre e miserável quem quer, e não é nossa responsabilidade - política, cultural, social, de todo o cidadão - batalhar contra as injustiças que ocorrem aos outros. Hedges emprega toda uma série de expressões estranhas, hiperbólicas mas que pretendem sublinhar a necessidade de uma resposta concertada: “zonas de sacrifício nacional”, “colónias internas”. Mesmo falando apenas de Camden, a expressão de “
poster child da América pós-industrial” (77) poderia ser empregue em relação a quase todas estas situações, às quais se juntariam outras mais, quer no interior daquele país quer na transposição deste trabalho e foco para outras realidades.
São exploradas, portanto, as novas formas de abuso de poder pela parte das grandes companhias corporativas, que tanto passam pela procura de mão-de-obra o mais barata possível (trabalho ilegal, estrangeiro, de prisioneiros, ou em mercados exteriores não regulados por políticas sociais minimamente éticas e consolidadas, como o caso da China ou da Índia). E os novos mecanismos de poder perpétuo, como por exemplo, a forma como a acusação de “felony” impede deste logo as pessoas a poderem chegar a um conjunto de acessos a saírem da miséria, e que são um sinal da descriminação racial que ainda é hoje sentida, e é efectiva, nos Estados Unidos (é mais fácil taxar toda a gente que vive em condições miseráveis de “criminosos” do que compreender as condições em que vivem e os expedientes a que se vêm obrigados; Hedges não a cita, mas Michelle Alexander tem um livro incontornável sobre esta situação em particular, em
The New Jim Crow). Ou a “escravidão por dívida” (
debt peonage) que se verifica em toda uma série de actividades, da apanha de legumes à prostituição.
Não deixa de haver uma atenção para com a dimensão histórica de cada caso, claro está, pois só assim é que se entende a lenta mas inexorável marcha de destruição (ou canibalização mesmo) que os processos do capitalismo necessariamente implicam. E todos os exemplos explorados por Hedges servem para criar a ideia de um modelo que ainda hoje faz sentido: “O antigo conflito entre índios e euro-americanos, entre colonizadores e colonizados, entre mestres e servos, é o modelo para o último acto do estado corporativo” (54). A consciência dos próprios nativos enquanto seres colonizados só teria surgido quando do seu envolvimento na guerra do Vietname, onde se tentou um outro processo de colonização; o movimentos dos direitos civis (dos negros) é visto como uma vitória legal, mas não económica. Mas a origem de todos os problemas está no avanço do sistema capitalista (Custer, por exemplo, deixa de ser visto como um “herói nacional” do que um esbirro de interesses das exploradoras mineiras).
Neste enquadramento temático e político, a presença de Sacco é explorada de duas formas. Ora temos “spot illustrations” de pessoas entrevistadas ou das paisagens visitadas, mas muito pouco - e quase arriscarmo-nos-íamos a dizer que, estando presentes todas as características de Sacco, da trama ao tratamento do pormenor significativo, do enquadramento horizontal dos interlocutores à fisicalidade dos seus corpos, etc., não há momentos de vigor surpreendente - , ou temos páginas-sequências, em banda desenhada, em que alguém expõe a sua experiência de vida de uma maneira retrospectiva. Isto é, meia-dúzia de entrevistas. Não deixa de haver uma ou outra estratégia interessante na parte da integração do trabalho de Sacco no livro, sobretudo por nos serem introduzidas as personagens numa página, com o texto em prosa à sua volta, e depois dando lugar estruturalmente à mancha da banda desenhada. No entanto, o que parece é reduzir-se Sacco a um “tradutor” da vida contada dessas personagens em curtas bandas desenhadas, o que lhe dá a possibilidade de reavivar narrativamente esses mesmos passados - algo bem diverso do que aconteceria se se juntassem somente uma mão-cheia de fotografias dos locais e das pessoas nesses tempos -, mas não propriamente um espaço de diálogo e tensão entre uma forma e outra de jornalismo (prosa versus banda desenhada). No entanto, fazer um contraste entre um livro que utilize a fotografia e que partilhe os mesmos fitos políticos, como, por exemplo, mais ou menos de modo aleatório,
A Seventh Man, de John Berger e Jean Mohr, poderia surpreender contrastes e contenções diferentes entre o uso da fotografia e do desenho (ou mesmo da banda desenhada, o que não é o mesmo), mas duvidamos que fortalecesse este título.
Ler este livro é um exercício sombrio e desgastante, sobretudo para o leitor desprevenido. A realidade da miséria é tal que é difícil não sentir a beira de um abismo e a quase esmagadora impossibilidade de reacção. Porém, Hedges não quer deixar de mostrar ao mesmo tempo as possibilidades de esperança: a sobrevivência das pessoas e a forma como quebram os ciclos de violência e dependência, a organização sindical dos trabalhadores com medidas concretas, a resistência de grupos contra as pressões de grandes companhias, por mais esmagadoras que elas sejam, a constituição de veículos para expressar novas vozes de novas maneiras, a escolha pela não-violência como prova de moralidade face à violência dos novos regimes pós-democráticos, e a solidariedade, “a decisão feita por uma pessoa que está ferida para dar a mão a outra ferida” (101). E as histórias de Sacco, mesmo tendo poucas páginas (de 5 a 13), de uma maneira ou outra quase sempre criam um arco claríssimo: início numa situação terrível, por vezes ainda uma descida mais acentuada, e redenção final, mostrando a esperança para o futuro, e servindo de modelo a outros casos.
A revolta ou revoltas abordadas são vistas por Hedges, em vários momentos, como necessariamente vindo de sectores educados (o autor cita Ho Chi Mihn, Gandhi, Lumumba, comparando-os, por um lado, com os índios revoltosos em Wounded Knee em 1973, e por outro, com o Occupy Wall Street), abordando os casos em que quando a revolução foi totalmente “por baixo”, que os frutos dados foram violentos demais.
Não sendo este um tratado de política ou de história política, esta oposição não é estudada com cuidado, mas não deixa de ser sintomático que se procure esse posicionamento num livro, para mais com a presença de Sacco, com todos os instrumentos para chegar a uma classe social lida e culta. Entre um público que, logo à partida, saberá defender-se contra o “totalitarismo invertido” de Sheldon Wolin (citado na pg. 238), em que os instrumentos de repressão não são tanto o bastão mas os prazeres oferecidos por uma sociedade de consumo, de fontes suficientes para a distracção. Esperemos que o próprio livro não seja subsumido a mais um produto desse mesmo consumo, que tudo consegue, como se diz nos dias de hoje, co-optar…
O último capítulo é o mais controverso, até por ser diferente em natureza, e não somente em grau. O autor, explicando como o “sonho americano” é uma mentira, a ideia de que o progresso é para sempre, compara a devastação das zonas de sacrifício que tratara com a forma como toda a sociedade norte-americana está a sofrer neste momento. E se as populações desses casos anteriores poderiam ser vistas como “outros” (índios, negros, hispânicos, rurais, etc.), Hedges sublinha a moral: “Eles foram primeiros. Nós estamos a seguir. A indiferença que demonstrámos face às vozes das classes desprivilegiadas, os nossos próximos no sentido bíblico, assombram-nos. Somos cúmplices do nosso próprio fracasso. Só nos resta a revolta. É a nossa única esperança” (227). E vira-se então para um acontecimento que ele não poderia prever no início do seu projecto (que levou dois anos a ser construído), que foram os acampamentos em Nova Iorque e, depois, outras cidades, conhecido como Occupy. E nos quais Hedges participou de forma activa (contribuindo, por exemplo, para o
The Occupied Wall Street Journal). A controvérsia prende-se com a tessitura social muito diversificada desse evento, por oposição à maior circunscrição de cada um dos anteriores quadros. E, por outro lado, por a esmagadora maioria, ou pelo menos aparente, daqueles que se tornariam os “exemplos” do Occupy serem antes estudantes ou trabalhadores liberais brancos, educados, e mais intelectuais do que trabalhadores. No entanto, se este capítulo não é um tratamento completo desse movimento, ele é ainda assim suficientemente claro para expor alguns dos seus inéditos mecanismos de funcionamento e participação - o “microfone do povo”, o “caucus” ou espaços de protecção, os “stack-keepers” ou distribuidores de participação, etc. - assim como para servir de plataforma concreta de ilustração da oposição prática e activista contra a teoria preconizada por, respectivamente, Bakunin e Marx.
Não tendo nós formação jornalística, não nos podemos pautar, pela sua ignorância, pelas regras dessa disciplina. No entanto, há dois aspectos que julgamos se prenderem com essa realidade que importa salientar ou indicar, pelo menos. Em primeiro lugar, sabemos que citar números, estudos e estatísticas podem parecer argumentos poderosos, sobretudo quando serve para criar absolutos (“o mais x”, “o menos x”, “o n país que”, etc.). No entanto, a sua computação obedece muitas vezes a critérios diferentes em países (e momentos, e plataformas, e perspectivas) diferentes e as comparações directas podem menos revelar do que tornar confusas essas comparações; é preciso um filtro sociológico para o seu tratamento. Isto para dizer que Hedges utiliza vezes sem conta toda uma série de relatórios e dados, cuja resposta só seria possível no conhecimento cabal não apenas desses mesmos dossiers, como dos pressupostos que os enquadram. Em segundo lugar, não é oculto o desígnio de Hedges em criar uma retórica polémica, controversa, e mesmo politizada no seu sentido de agilizar uma acção, uma vontade. Haveria, portanto, uma ausência de contraditório nas matérias que ele aborda e investiga. Todavia, poderemos dizer que esse contraditório já existe, ou melhor, que é ele mesmo o contraditório dos mitos que circulam com maior presença, intensidade e “ar de seriedade” nos meios de comunicação social
mainstream. Apenas a título de exemplo, um dos argumentos esgrimidos pelo
The Economist, um dos grandes bastiões da economia neoclássica e as teorias dos mercados (auto-)suficientes, etc., é a de que o capitalismo gera mais riqueza do que qualquer outro sistema económico, e isso, necessariamente, implica maior riqueza para todos. Ora, os retratos específicos de Hedges vêm mostrar precisamente como os grandes grupos económicos (de empresas a especuladores financeiros) gerem de facto maior lucro, mas que a sua distribuição acentua as desigualdades sociais e, a longo prazo, o preço a pagar (por uma grande parte da população) é elevado: consumo total de recursos, desenvolvimento de doenças, crises sociais e culturais endémicas nos locais após a saída das empresas (graças às políticas de “deslocalização”, e de busca por mercados de maior “competitividade laboral”, sinónimo de “mão de obra barata”), e por aí fora.
Há aspectos menos claros, em que o rigor dos conceitos parece ser ele mesmo sacrificado em nome de um “chamamento às armas” - que não negamos concordar ser necessário. Por exemplo, a propósito da história da relação entre o poder colonialista dos euro-americanos de Washington e as populações nativas, durante o século XIX e XX, há uma diferença entre “integração” e “assimilação” (pg. 40) que não é devidamente assinalada, para se criar uma apressada demonização de um dos lados. Por exemplo, Hedges cita Howard Zinn, do seu famoso livro
The People’s History of the United States (fãs de
Good Will Hunting recordar-se-ão da sua citação) sobre como essa mesma história tem sido “uma longa batalha pelos marginalizados e desapossados pela dignidade e liberdade” (94). Mas é o próprio tratamento controverso de Zinn (e de tantos outros autores citados) que aumenta o grau de retórica emotiva de Hedges mais do que a sua articulação dos factos (não diremos “completos” nem “objectivos”, pois sabemo-lo impossível).
No entanto, como evitar esse tom, quando aquilo que se combate não tem uma concentração numa figura, de uma configuração nítida, mas é antes uma constelação atomizada de agentes que se desresponsabilizam das suas acções? Como diz o padre Doyle, de Camden, “Tu tens um inimigo, e esse inimigo é a ganância e o preconceito e a injustiça e todo esse tipo de coisas, mas não podemos atingi-lo. Não há cabeça, não há clareza” (111). Mas a continuação do que diz Doyle é não só real como assustadora. Esse inimigo existe, que cria a tensão, o medo, a angústia e o desespero, mas como não é “visível” nem “objectivo”, que fazem as pessoas? “[Elas] então atacam os seus próximos”.
Repetidamente, Hedges emprega o pronome “nós” para se implicar a ele mesmo e aos leitores (que sentirão empatia pelas suas palavras e posicionamento), mas ao mesmo tempo para dar conta de uma possível “inclusão radical”, para empregar uma expressão de John Friesen, um dos activistas em Zuccotti Park/Liberty Square. Por vezes, de modo a chegar a identificações bombásticas (na pg. 54 chama a esse “nós” prisioneiros), mais uma vez acentuando o aspecto polemizante e conducente a uma resposta participativa e enfática dos seus leitores. O que se pretende é que haja um recrutamento de todas as vítimas, uma emergência de acções não voltadas contra os próximos imediatos, mas antes esse tal inimigo. E tal como ocorreu nos Occupy, há menos interesse em criar exigências concretas, do que perceber que princípios (novos) políticos se podem formar. Citando Kevin Zeese, um dos activistas envolvidos na estruturação desses movimentos descentralizados, “A nossa tarefa é tornar o politicamente impossível no politicamente inevitável” (237). Há aqui muitas lições a aprender para a nossa própria circunstância.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.