A sensibilidade americana é muito curiosa. É óbvio que qualquer generalidade dita sobre todo um país ou povo se deve a uma igualmente facciosa atitude da nossa (minha) parte, de europeu, mas é estranho tentar compor uma forma coerente a partir, de um lado, de uma ultra-sensibilidade pelo respeito das minorias, o que atravessa várias escalas de ressentimento, de tentativas de lavagem da linguagem, de modos de controlar ou contornar determinadas representações, que podem ter aspectos tão inócuos como garantir uma imagem “à Benetton” (em que um grupo de pessoas conte com um representante de cada macro-etnia, por exemplo) como tão gravosos como a da reescrita da história (no que nos diz respeito, ao território da banda desenhada, e apenas como exemplos, querer proibir Tintin no Congo ou o Little Nemo) e, por outro, de uma continuidade de políticas internas e internacionais que, as mais das vezes, pouco se importa em relação a direitos efectivos ou a um controlado diálogo de diversidade. Será acertado dizerem que, por ser português, homem, branco e da classe média, é natural que não compreenda a necessidade desses discursos de correcção de um modelo vigente da sociedade. Porém, não compreendo mesmo a necessidade de ver as coisas de um modo tão maniqueísta, antes preferindo ver uma contínua negociação de princípios, em que vamos aprendendo onde e quando tomar do Outro, onde e quando lhe ofertar algo. O primeiro passo para a correcção de preconceitos ou ideias feitas não é dizer que não os exercemos ou não as partilhamos, mas auscultar e entender quais os preconceitos e quais as ideias feitas que de facto existem em nós. E, a partir daí, ir negociando.
Não tenho quaisquer inclinações para gostar do politicamente correcto. Digo “cegos” e não “invisuais”, e acabo por me rir de quaisquer piadas mesmo que às custas de alguém (um alentejano, por exemplo), desde que essa piada seja de facto humorística (e é a minha família alentejana quem conta as melhores piadas). Na banda desenhada, temos que escavar no lado em língua inglesa à procura daquela que mais abalroa o “pc” para atingir afinal um outro grau de verdade que, como todas (se for atingível, naturalmente), dói mais. Precisamente por não haver uma complacência tão grande para com essa atitude de “saneamento” na banda desenhada portuguesa ou franco-belga – se bem que um certo grau de crítica feminista, pós-colonialista e/ou provindo dos estudos culturais fizesse um grande bem a uma mão-cheia de autores que abusam de visões muito estreitas do mundo -, não há a necessidade de uma correcção, através da mais desbragada das contra-atitudes. Penso que o melhor representante dessa atitude de chuto em relação ao politicamente correcto é dado por Garth Ennis (com Fury, The Boys, 303, e, claro, The Preacher). Mas estamos aí num território de extremos, que se pode, ainda assim, revestir de humor.
Porém, há outros modos de desmontar esses discursos do ressentimento, os quais são modos mais ou menos subtis de entender a mais profunda contradição que é parte inerente, é sua essência, ou é mesmo o princípio da sua formação, da espécie humana. A meu ver, toda a saga de Y, the last man, é uma ilustração complexa dessa atitude, ainda que a possamos inscrever nas questões inerentes e particulares aos Estados Unidos, o que justifica o termos afunilado a questão ao princípio. Trata-se de uma série que atingiu os 10 volumes (trade paperbacks, que coleccionam os comic books) escrita por Brian K. Vaughan (autor de Pride of Baghdad e de Ex Machina, por exemplo), com os artistas Pia Guerra e José Marzán Jr., entre outros. A trama geral é relativamente simples: um evento catastrófico ocorre à escala global, matando todas as criaturas com um cromossoma Y, isto é, os machos. Os únicos homens que sobrevivem são dois astronautas fora do planeta quando o evento ocorre, um cientista (claro que “louco”) e, as personagens principais, Yorick (o nome permitirá um contínuo jogo de referências textuais, visuais e existenciais mesmo), o “último homem”, e o seu macaquinho de estimação, Ampersand. Várias teorias e possibilidades são dadas ao longo da história para explicar o evento, e até mesmo justificar os problemas que ocorrem a curto e a longo prazo. Mas nenhum deles acaba por se tornar nem definitivo nem determinante, ficando antes tudo numa espécie de limbo. Se procurássemos uma absoluta e rígida explicação, ela falharia, uma vez que o equilíbrio da bioesfera, sem o cromossoma Y, estaria condenada a longo prazo na sua totalidade, mas a aceitação quer dessa ignorância quer dessa insatisfação faz parte da “suspensão da incredulidade” que é exigida por Y, the last man. A segunda parte deste título coloca-nos numa imensa tradição literária (no seu sentido amplo e em todas as suas variações) que especula sobre a batalha pela sobrevivência da espécie humana nas piores das diversidades, ou também o esforço pela manutenção de um nível mínimo de dignidade e civilização no seio da derrocada total de todos e quaisquer princípios sociais: é algo que vai do livro do Génesis (o episódio de Lot e as suas filhas) a Kamandi de Jack Kirby, de Robison Crusoe a A Estrada, de Cormac McCarthy. O mais importante é o modo como se sublinha e evidencia precisamente o contrário de um pensamento rousseauniano. Em vez de encontrar na construção societal a hipotética raiz de uma ainda mais hipotética candura da natureza humana, é o mínimo estalar do verniz das regras que impomos a nós mesmos para que convivamos que revela de imediato a ininterrupta brutalidade de que somos capazes.
Vaughan e Guerra estão menos interessados em ver como Yorick se relaciona com os acontecimentos em seu torno do que o modo como o mundo o vê a ele, enquanto último homem. Passados os primeiros momentos de absoluto terror e destruição e morte, observamos o retorno de todas aquelas características da sociedade humana que pensaríamos erradicadas se fosse uma sociedade matriarcal aquela construída: ódios, ganância, racismo, preconceitos religiosos, falta de inteligência e de opinião própria, manipulação dos mais fracos, fantasias sexuais em vez de uma franca expressão da sexualidade, etc. Todos aqueles problemas que existem no mundo dos homens – o que é nem sequer é uma “boa observação”, mas uma constatação dos pobres factos – afinal sobrevivem num mundo apenas de mulheres.
A obra, à medida que foi sendo publicada – e agora que terminou é possível que desencadeie toda uma série de artigos mais abrangentes -, foi vista tanto como uma “obra-prima feminista” como “misógina”. Essa é a que parece ser a capacidade de Y, the last man: a de poder ser entendida como algo e o seu contrário, revelando desde logo, mesmo antes da sua leitura cabal, de que poderá transportar questões complexas, multímodas, contraditórias, e, mais importantemente, por responder. Aliás, repare-se como o título, em inglês, poderia ser ainda visto e grafado como “why the last man”, consubstanciando uma pergunta que se mantém ao longo dos dez volumes e cujo fecho, o da narrativa em si, não é afinal fecho nenhum.
Vaughan, é sabido, gosta de propor nos seus trabalhos, que revisitam géneros relativamente congelados com as suas regras – fantasia, super-heróis, ficção científica -, outra camada mais profunda de questionamentos do que impera sobre as personagens, transformando as suas obras em “algo mais”. Isso não é senão, como se sabe, a característica própria das grandes obras de ficção científica (Lem, Bradbury, Clarke), para ficarmos nessa área criativa. Mas se a banda desenhada permite ficções estonteantes e de grande amplitude em termos de personagens e espaços (Kirby à frente), é menos comum tornar-se veículo de questões contemporâneas ou tão vastas como a famigerada “guerra dos sexos”.
Existem momentos mais fortes em Y, mas isso não significa que os outros, os das transições, das travessias, das descobertas e das crises mais internas sejam menos intensa para as personagens. As relações de Yorick com as mulheres que o rodeiam fazem-se e desfazem-se num estranho ritmo que dá a ver não só as alterações do próprio Yorick em relação à vida que lhe foi reservada pelo destino, como todo o espectro dos comportamentos humanos. O facto de que a esmagadora maioria desses comportamentos são de mulheres não torna Y numa obra misógina, simplesmente numa obra que mostra como as mulheres, enquanto seres humanos, também participam em todo esse espectro. Em vez de se tornar numa aventura de fantasia sexual para Yorick (e para os leitores), o facto dele ser o último homem na terra torna-o um objecto de atenção especial, que tanto se reveste de ódio como de mera utilidade. Jamais é, portanto, um vencedor. Vaughan provoca curtos-circuitos durante a narrativa bastante clássicos, como a “peça de teatro dentro da peça de teatro”, ou melhor, “no interior da ficção de banda desenhada” (no vol. 3, One small step), ou mais subtis, quando algures Yorick tenta fazer uma piada de mau-gosto, mas a agente 355, que o protege, não se ri, o que o leva a dizer que “o riso morreu com os gajos”... Y é, de facto, mais sério que qualquer outra coisa.
A acusação de misoginia é não apenas fácil como simplista. Há, repito, uma série de camadas possíveis de ler nestes livros, se bem que não estejamos perante uma obra filosófica tremenda. Por vezes, a simples ficção revela não ser absolutamente simples, e é essa negociação que a torna interessante. No último volume ocorrem duas mortes: a da agente 355 e a de Ampersand. Se a da primeira é feita precisamente no momento em que o amor mútuo entre as personagens é confessado, e essa interrupção dramática e irreversível, mas instantânea, é tratada de um modo anti-dramático, com uma raiva silenciosa da parte de Yorick e uma vingança bem mais cruel do que sanguinária, a cena da morte do seu companheiro símio é bem mais emotiva, quer da parte de Yorick, quer através dos elementos que nos são dados – diálogo contínuo, planos próximos, jogos de olhares, um humor que quer disfarçar a dor, etc. – tornando-se assim também uma emoção à qual temos acesso directo. A última imagem dessa sequência, todavia, une as mortes e o amor de um modo simples, mas belo.
Não sei a quem pertencerá exactamente a frase, mas em Good Omens (de que existe uma tradução portuguesa, Bons Augúrios, na Via Láctea), de Neil Gaiman e Terry Pratchett, há algo que ilumina o princípio que subjaz, afinal, a todo o Y: (cito de cor) “o problema com os seres humanos não é serem intrinsecamente bons ou intrinsecamente maus, mas serem intrinsecamente humanos”. C’est tout.
29 de setembro de 2008
Y, the last man. Brian K. Vaughan, Pia Guerra e José Marzán, Jr. (Vertigo)
Publicada por Pedro Moura à(s) 2:47 da tarde 8 comentários
Filipe Abranches em Ourense.
Por ocasião da participação de Filipe Abranches nas XVIII Xornadas de Banda Deseñada em Ourense, fui convidado a escrever um breve texto sobre seu trabalho para O Fanzine das Xornadas.
Basta entrar no site do festival, e fazer o download do pdf d'O Fanzine... O meu pequeno artigo está na página 24, mas é apenas um aproveitamento de alguns apontamentos e textos anteriormente publicados, mormente o do catálogo do FIBDA, para o qual escrevi um maior texto sobe o autor.
N'O Fanzine ainda se poderá aprender sobre os trabalhos de Enrique Flores e Roque, e ler uma divertida, ainda que escatológico-porno, banda desenhada de David Rubín, entre outros trabalhos, artigos e um balanço ´da história das Xornadas.
O desenho aqui postado é de Abranches, e foi retirado do seu blog.
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:02 da tarde 3 comentários
Etiquetas: Exposições, Portugal
24 de setembro de 2008
Høytiden. Rui Tenreiro (Jippi Forlag)
Rui Tenreiro é um autor português que vive no norte da Europa (fomos informados que, presentemente, mudou-se para a Suécia) e é lá que tem trabalhado em banda desenhada, surgindo histórias curtas em antologias, publicações várias e, agora, este volume, intitulado, em norueguês, Høytiden. Existe uma tradução francesa e, no site do autor, poderão encontrar toda uma série de explicações e imagens que nos ajudam a perceber alguns pormenores da obra, e suas condições de produção, como, por exemplo, a melhor maneira de traduzir o título: “A celebração”, por exemplo, como algo de ritualístico e de solene que soe passar-se no seio de uma comunidade, digamos, tradicional. (Seja como for, este exemplar é a versão norueguesa e lemo-la, com a ajuda de tradutores automáticos. Serve apenas como aviso à navegação de que a sua fruição – do texto verbal, isto é, possa não ter sido feita sem escolhos.)
A construção de um contexto espacio-temporal parece não ser feita para entrar num diálogo naturalista – uma ficção imersa de facto no antigo Japão medieval e xintoísta – mas antes como ponto de partida, tão pertinente como outro qualquer, para o desencadear das relações entre as personagens. É natural que a circularidade da narrativa (termina onde começara, mas sem repetição de imagens, como, por exemplo, em Varlot Soldado, de Tardi e Didier Daeninckx) tenha, como explica o autor, ecos na filosofia religiosa do Xinto, mas há um grau suficiente de autonomia em relação a essas informações factuais para fruirmos da obra enquanto tal, objecto de ficção, de arte, objecto próprio. E essa circularidade ganha um corpo perfeitamente identificável no interior da obra, associando-se a uma maneira relativamente simples de entender os temas que mais se prestam a essa mesma circularidade: as reincarnações, o balanço da causalidade (ou o karma), o reequilíbrio dos humores e das justiças, Nemésis e Fortuna.
Os desenhos operam entre uma clareza conseguida pelas mínimas linhas na construção das personagens, quase tão iconográficas como as da escola da dita “linha clara”, mas mais simples ainda, e, em relação aos espaços, um equilibrado e oscilante jogo de tramas e manchas, mais adensadas quando se pretende mostrar os bosques apertados, ou a noite (perto mesmo dos efeitos da xilogravura), um interior escurecido...
Høytiden desenrola-se de uma maneira muito directa: dois viajantes (o “viajante com lenço” e o “viajante com lenço”) atravessam uma região e deparar-se-ão com uma criatura imensa e fantástica. Não a podendo mover nem salvar, nem sequer se apercebendo o que fazer, tentam alcançar a vila mais próxima. Depois de pernoitarem, uma (nova) estranha personagem indica-lhes o caminho à aldeia, apontando um caminho a tomar numa bifurcação. Em todas as culturas, independentemente dos meridianos, da época e do grau civilizacional, os caminhos existem, ainda que assumam diferentes significados – basta pensar no caminho da vida de um xamã inuíte, nos caminhos do sonho dos aborígenes australianos, na estrada para Tebas, ou os nos passeios de Walser e de Leopold Bloom -, mas a bifurcação dá sempre azo à ideia de opção e de destino e de paralelismo. Em Høytiden, há indícios de que não é excepção, se bem que a opção que não foi tomada só tenha uma presença fantasmática na circularidade a que nos referimos antes.
Existem pormenores importantes a decorrer no fundo das imagens, como se não obstante as acções centrais decorrerem em primeiro plano, existir um espaço secundário suficiente para a criação de outros acontecimentos, os quais nos caberá a nós o seu relacionamento com a trama principal. Notam-se linhas ou nuvens-fantasma atravessando por detrás das árvores, um tronco ardendo, um homem mascarado de lobo... Algumas dessas imagens misteriosas deixá-lo-ão de ser, ao serem explicadas pelas novas contextualizações – a chegada dos viajantes à aldeia, um ancião explicitando os rituais -, mas há sempre como que um resto de mistério deixado atrás, como uma fímbria de um pano que se rasgasse, aquilo que se desvendou, um resquício, preso mesmo naquilo que passa por “solução”. Isto é, a quota-parte de enigma que se mantém agarrada à solução. O uso de uma segunda cor (diferente entre as imagens no site e na versão do livro) não é inócuo nem feito ao acaso, assumindo essa cor, em momentos-chave, o protagonismo da acção, sublinhando o carácter fantasmático que se desenha neste livro (como nesta imagem, retirada do site).
Fazer correspondências e ligações entre fontes e imaginários é desnecessário, uma vez que os textos do próprio autor, indicados acima, ajudam a uma cartografia possível. O que se mantém, e ainda faz parte do resto do enigma discutido acima, é a ambiência das transmutações, da presença do maravilhoso no caminho dos viajantes (a criatura, um ovo, a possessão do corvo, o final)... e na insuspeitada violência da reacção dos aldeões face ao novo, tendo até então sido dada a ideia de que esta seria uma população bem entregue e em sintonia com os ritmos da natureza (a sua própria circularidade). Mas é aqui que surge uma questão, irrespondível: tratar-se-á a súbita eclosão do ovo que era guardado na aldeia algo de verdadeiramente inesperado? Será uma interrupção do ciclo de fertilidade a que todos se entregam? Então, aperceber-nos-íamos das razões da raiva. Ou tratar-se-á de algo que ocorre repetidamente, como a própria estrutura narrativa parece querer levar a crer? Ainda assim, há uma terceira possibilidade: todos estes acontecimentos são cíclicos, e a destruição a que a populaça se entrega faz parte integrante desse rito. (claro que há ainda uma quarta possibilidade, que é a de eu não ter entendido bem a história, recorrendo a uma tradução suspeita).
Podemos ainda intentar um outro caminho... Na casa do ancião Baltazar, na aldeia a que os viajantes chegam, o quarto onde todos se reúnem está decorado com montanhas (idêntico ao vulcão Fuji), com o topo coberto de neve, cerejeiras despidas, flocos tombando, os traços do vento. É o que surge na capa. A porta de correr separa um quarto do outro. A permutabilidade entre as portas-passagem e as funções do quarto é algo de sobejamente conhecido, e Roland Barthes descreveu-a de um modo poético em L’Empire des Signes. Tenreiro trata destes espaços como se se tratassem todos de duas dimensões nas quais se pudessem desenrolar acções vivas. Repare-se na capa. A informação que dei levará à simples ideia de que se trata de uma criatura (o corvo-fantasma) abrindo a porta desde o outro lado para passar para este. Nada de mais natural num espaço a três (ou quatro) dimensões. As tábuas no chão do quarto ajudam-nos a ancorar essa ideia, essa perspectiva de naturalismo. No entanto, é ainda possível olhar para essa mesma imagem, informando desse modo a obra, ou sendo ela informada pela obra, de que se trata de uma passagem de um “outro lado” da realidade para “este lado”, um trânsito possível entre o mundo natural e aquele outro de onde vêm as criaturas maravilhosas, fantásticas e fabulosas (nas estritas acepções de cada palavra; poderíamos voltar aqui às teorias de Alan Moore a propósito da existência da Imaginação enquanto território palpável) que vivem neste livro. E isso far-nos-á recordar a promessa daquele koan das dez imagens do vaqueiro (ainda que seja do Zen, terá afinidades com o círculo do Tao, origem do Xinto), o qual termina com um círculo transcendente, das quais as figuras do vaqueiro jovem e do touro desapareceram. A um só tempo, conjuga-se aí a circularidade, o cíclico, o trabalho até ao transcendente, as opções coroadas, e uma imagem que apenas existe a duas dimensões, mas da qual parte e para a qual convergem todas as outras dimensões.
O livro é ainda acompanhado com um fanzine [ver nota final e comentários], com quatro pranchas, desenhadas a lápis (ou carvão), ainda com o aspecto de esquiço. Intitula-se The way to, e mostra-nos os mesmos viajantes ainda no caminho denso dos bosques. O título poder-nos-ia indicar que se trataria de um episódio antes dos eventos de A Celebração. Outros pormenores – um deles viaja com uma bota improvisada, encontram cascas de ovos de pássaro partidas e aranhas em torno – apontam para que seja uma “alternativa”, quem sabe, um outro caminho que tenham tomado... É um modo curioso de complementar, desarrumando, a leitura do livro. A capa, como aqui se vê, parece fazer-nos retornar às ideias apresentadas acima, de um modo que nos impede de fechar quer o caminho dos viajantes quer a interpretação de Høytiden.
Não se prevê para breve uma edição portuguesa.
[O fanzine não faz parte integrante da obra, mas foram emprestadas ambas as publicações ao mesmo tempo, o que levou a esse erro. No entanto, uma vez que as personagens são as mesmas e há outros elementos narrativos que associam ambos os objectos, mantenho o comentário anterior, feita esta ressalva.]
Nota: agradecimentos a Marcos Farrajota, pelo empréstimo do livro e informações gerais.
Publicada por Pedro Moura à(s) 8:06 da tarde 5 comentários
Etiquetas: Portugal
23 de setembro de 2008
500 Essential Graphic Novels. Gene Kannenberg Jr. (ed.) (Ilex)
Gene Kannenberg Jr. é um reconhecido académico norte-americano cuja maioria dos trabalhos se dedicam ao estudo (multímodo) da banda desenhada. O seu papel neste livro é o de editor, tendo coordenado uma equipa de uma dezena de pessoas que escolheram 500 livros de banda desenhada os quais, por uma razão ou outra, são vistos como “essenciais” no conhecimento deste território. O objectivo foi a criação de um só volume, para um público não-especializado, de uma espécie de primeira colecção, a partir da qual se podem procurar novos caminhos, direcções e ideias. Os textos introdutórios, quer o geral quer o de cada secção/categoria (v. adiante), são muito explícitos quanto aos propósitos, escudando-se assim a priori de certas críticas que poderia ser feitas. Uma vez que se trata de um guia cujas balizas se compreendem nos livros em línguas inglesa facilmente acessíveis (isto é, no mercado), a inclusão de livros esgotados ou por traduzir foi posta de parte, e não há que estranhar existir uma maior preponderância de títulos de autores norte-americanos e ingleses, se bem que existam algumas excepções. Ou seja, não estamos perante uma obra pessoal e idiossincrática como o 40 cartoon Books of Interest de Seth, mas de um livro a constar em bibliotecas generalistas. Dito isto, haveria ainda muito para escavar...
Por exemplo, em relação aos europeus, há apenas uma inclusão do que está acessível, passando-se pelos incontornáveis Hergé, Goscinny e Uderzo, Jacobs, Morris, mas atendendo ainda aos novos sucessos, como David B. e Satrapi (eu sei que não é europeia, mas inscreve-se mais neste campo do que em qualquer outro), e passando por outros títulos disponíveis, de Trondeheim a De Crécy, de Juillard a Manara, de Gipi a Max. Os autores japoneses também estão presentes e, inteligente e naturalmente, em vez de se criar uma absurda categoria à parte (a mangá), uma vez que a estrutura segue a categorização por géneros, as suas obras são dispostas de acordo com as dez categorias escolhidas. Vejamos cada uma dessas categorias, assim como o “Top Ten” avançado pelos autores (e aos quais se seguem mais umas dezenas de títulos numa secção a que se dá o nome de “best of the rest” para cada categoria[de que dou algumas imagens, em má resolução]). Quando for pertinente, utilizarei o título mais conhecido em Portugal, mas tenha-se em conta serem sempre edições norte-americanas ou inglesas; e quando o nome do autor for claro no próprio título, não o repito à frente.
“Aventura”: A marca amarela de Jacobs, Disney’s Duck Tales Stories, vol. 1 [ed. Gemstone], de Barks, In the night kitchen, de Maurice Sendak, Leave it to chance, vol. 1, Shaman’s rain, de J. Robinson e P. Smith, Lone wolf and cub, vol. 1, The assassin’s road, de K. Koike e G. Kojima, Rapsódia Húngara, de Vittorio Giardino, Owly: the way home & the bittersweet summer, de Andy Runton, Príncipe Valente, vol 20, The pilgrimage [ed. Fantagraphics], de Foster, As torres de Bois-Maury, vol. 1, Babette, de Hermann, The complete classic adventures of Zorro, de A. Toth et al.
“Não-ficção”: Alice in Sunderland, de Bryan Talbot, American Splendor: the life and times of Harvey Pekar, de Pekar et al., Binky Brown Sampler, de Justin Green, Blankets, de C. Thompson, L’Ascencion du Haut Mal, de David B., Maus: a Survirvor’s tale, vols. 1 e 2, de Art Spiegelman, The minotaur’s tale, de Al Davison, Persepolis, de Satrapi, Pyongyang, de Guy Deslile, Understading Comics: the invisible art, de Scott McCloud.
“Crime/Mistério”: 100 Bullets: First Shot, Last Call, de Azzarello e Risso, A Cidade de Vidro, de Auster, Karasik e Mazzucchelli, The Complete Chester Gould’s Dick Tracy, vol. 1, 1931-1933, A History of Violence, de John Wagner e Vince Locke, Human Target: Final Cut, de Peter Milligan e Javier Pulido, Kane, book 1: Greetings from New Eden, de Paul Grist, Road to Perdition, de M. A. Collins e R. P. Rayner, Sin City: The Hard Goodbye, de Frank Miller, The Best of The Spirit, de Eisner, Whiteout, de Greg Rucka e Steve Lieber.
“Fantasia”: Bone [num só volume], de Jeff Smith, The Chronicles of Conan, vol. 1, Tower of the elephant and other stories, de Roy Thomas e Barry Windsor-Smith, Fábulas: Lendas em Exílio, de Bill Willigham e Lan Medina, Heart of Empire: the legacy of Luther Arkwright, de Bryan Talbot, Little Nemo in Slumberland ou So Many Splendid Sundays [parece haver uma discrepância entre o texto descritivo e a edição indicada, entre a Checker e a Sunday Press], Marie Gabrielle, de Pichard, The Compleat Moonshadow, de DeMatteis de Muth, Promethea, vol. 1, de Moore e Williams III, Sandman, vol. 3, Na Terra dos Sonhos, de Gaiman et al., Sláine: Books of Invasions, vol. 1, de Pat Mills e Clint Langley.
“Ficção em geral”: Bardín, o Superrealista, de Max, Cerebus: Church and State, de Dave Sim e Gerhard, The Contract with God Trilogy: Life on Dropsie Avenue, de Eisner, Ghost World, de Clowes, Jar of Fools, de Jason Lutes, Locas: the Maggie and Hopey Stories, de Jaime Hernandez, Signal to Noise, de Gaiman e McKean, A Small Killing, de Moore e Zarate, Stuck Rubber Baby, de Howard Cruse, The tale of one bad rat, de B. Talbot.
“Terror”: Hellblazer: Dangerous Habits, de Garth Ennis e Will Simpson, Hellboy, vol. 3, The chained coffin and other stories, de Mignola, Hellspawn: The Ashley Wood collection, com Brian Michael Bendis e Steve Niles, Preacher: Gone to Texas, Ennis e Steve Dillon, The Sandman, vol. 1., Prelúdios e Nocturnos, de Gaiman et al., Skin Deep: tales of Doomed Romance, de Charles Burns, Strange Embrace, de David Hine, Swamp Thing, vol. 1, Saga of the ST, de Moore, Bissette e Totleben, The EC Archives: Tales from the Crypt, vol. 1, de Al Feldstein, Ingels e outros, The Walking Dead, vol. 1, Days gone bye, de Robert Kirkman e Tony Moore.
“Humor”: Buddy does Seattle, de Peter Bagge, The Complete Calvin and Hobbes, de B. Watterson, The Complete Crumb Comics, vol. 8, de Crumb, The Cowboy Wally Show, de Kyle Baker, Flaming Carrot, vol. 3, Flaming Carrot’s greatest hits, de Bob Burden, Groo: Library, de Sergio Aragonés, He done her wrong, de Milt Gross, Liberty meadows, livro 1, Eden, de Frank Cho, Quimby the Mouse, de C. Ware, Tank Girl: vol. 1, de Jamie Hewlett e Alan Martin.
“Ficção científica”: Akira, vol. 1, de Otomo, Concrete, vol. 1, Depths, de Paul Chadwick, Ghost in the Shell, vol. 1, de Shirow, Hard Boiled, de Miller e Darrow, The Invisibles, vol. 1, Say you want a revolution, de G. Morrison, S. Yeowell e J. Thompson, Judge Dredd: The complete case files 01, de John Wagner, Carlos Ezquerra e outros, The League of Extraordinary Gentlemen, vol. 1, de Moore e K. O’Neill, Star Wars: Dark Empire, vols. 1 e 2, de Tom Veitch e Cam Kennedy, Transmetropolitan: Back on the street, de Ellis e Robertson, V for Vendetta, de Moore e Lloyd.
“Super-heróis”: Across the Universe: The DC universe stories of Alan Moore, com vários artistas, Batman: The Dark Knight Returns, de Miller, Janson e Varley, Batman: Hush, vols. 1 e 2, Jeph Loeb, Jim Lee e S. Williams, Essential Fantastic Four, vol. 1, de Stan Lee e Jack Kirby, Marvels, de Busiek e Ross, Planetary, vol. 1, All over the world and other stories, de Ellis e Cassaday, Spawn: Collected edition, vol. 1, de Todd Mcfarlane, Essential Spider-man, vol. 2, de Stan Lee, Ditko e Romita [Sr.], The Ultimates, vol. 1, de Mark Millar e Bryan Hitch, Watchmen, de Moore e Gibbons.
“Guerra”: The 9/11 Report: A graphic adaptation, de Sid Jacobson e Ernie Colón, 300, de Miller e Varley, Barefoot Gen, vol. 1, A cartoon story of Hiroshima, de Nakazawa, Charley’s war: 2 June – 1 August 1945, Pat Mills e Joe Colquhoun, The Fixer: a story from Sarajevo, de Sacco, Last day in Vietnam, de Eisner, Palestina, de Sacco, Fábula de Bagdad, de Vaughan e Henrichon, When the wind blows, de Raymond Briggs, e Yossel, de Joe Kubert.
De certeza que a leitura destes tops será o suficiente para desencadear nos leitores reacções de “falta este” e “esse era escusado”... Mas pouco importa apontar, em relação a uma escolha, outra escolha. É preciso antes ver as condições dessa mesma escolha. A própria organização por géneros poderá levantar problemas de fundo. Será que o V for Vendetta pode ser reduzido a “ficção científica”? Que Astérix se fique somente pela “fantasia”? Que a adaptação de Karasik e Mazzucchelli de A Cidade de Vidro possa ser compreendida como “novela de crime”? Estas não são mais do que perguntas retóricas, naturalmente, e que desejam ser respondidas na negativa, através de uma leitura não genérica das obras em particular mas, retornando aos avisos indicados ao início, a escolha deste princípio de organização de uma obra deste teor é aceitável e compreensível.
Há também que alertar para a questão do título. Na verdade, se este livro fosse traduzido para português o mais apropriado seria dizer “500 livros de banda desenhada”, como o fizemos acima. O termo “graphic novel” é explicado no interior dos textos, alertando para o facto de que não foi Will Eisner quem o cunhou (tendo uma história convoluta e subterrânea), ainda que tenha sido esse autor mais famoso que, com A Contract with God (na verdade, um conjunto de três contos), deu a conhecer o termo a um grande público e que lhe permitiu mesmo a sua imitação, continuação e mutação. A história deste termo pode ser simples, de uma perspectiva, mas o que ele compreende e abarca é mais complicado, e poderia ser um termo retrospectivo, englobando os livros de Töpffer e de Doyle, do século XIX, como os primeiros álbuns de Saint-Ogan, etc. Nos Estados Unidos, se bem que à partida signifique, ou pareça significar, uma obra em formato de livro, a verdade é que muitos são os casos em que são a colecção completa de uma mini-série ou algo que fora publicado antes em episódios (os casos agora clássicos de Watchmen, The Dark Knight Returns, Maus, V for Vendetta, etc.). Uma segunda acepção é a junção de uns quantos títulos de uma revista (comic book) com uma narrativa contínua num só volume (trade paperback), contenha esse volume uma sub-narrativa coesa mais ou menos fechada (os casos de The Dark Phoenix Saga, Hellblazer: Dangerous Habits, The Authority: Relentless; nos casos de séries que continuam – Hellblazer – ou que tenham terminado – Preacher, Alias, Sandman– é escolhido um ou dois títulos que sejam pertinentes e “introdutórios” no interior da saga) ou simplesmente uma antologia em torno de um tema ou personagem(ns) (os casos de Archie Americana Series: Best of the Fifties, Definitive Silver Surfer, Green Lantern/Green Arrow Collection). Mais, neste guia são ainda incluídos exemplos de antologias de vários trabalhos autonomamente editados (The Best of Bijou Funnies), antologias publicadas enquanto tal (Big Fat Little Lit, Amphigorey), ou colecções de tiras ou séries periódicas não-contínuas (The Complete Peanuts, The Complete Calvin and Hobbes, Krazy & Ignatz).
Cada “entrada” é acompanhada de uma escala por estrelas (de uma a cinco, mas não há nenhuma das entradas com uma só estrela, o que o tornaria automaticamente “não essencial”). Pessoalmente, estas estrelas são absolutamente escusadas, sobretudo se tivermos em conta que não há uma verdadeira explicação do modo como funcionam e entram em choque frontal mais com as nossas impressões pessoais (que me faz levantar o sobrolho em relação a colocarem Persepolis acima de Epileptic – a tradução de L’Ascension du Haut Mal – , por exemplo) do que no interior de uma troca de argumentos mais balizados. Ou seja, bastará abstrairmo-nos dessa estratificação bacoca. Finalmente, os textos descritivos de cada uma das obras é desdobrado numa rápida sinopse, mais complicada nalguns casos do que noutros, e uma pequena resenha, às vezes iluminadora, muitas vezes deixando o desejo de que se tivesse tornando mais explícita. É um excelente exercício de concisão e de um discurso mais directo, mas mostra os problemas de uma verdadeira crítica. É um guia, e não deseja mais do que isso. Não obstante, algumas informações explicam a inclusão de determinado título. Por exemplo, jamais daria atenção aos títulos de Buffy, the Vampire Slayer, mas a inclusão do volume que vem colocar a série de banda desenhada como continuação oficial da série televisiva (a 8ª), torna este um caso particularmente interessante das fronteiras ultrapassadas entre os vários meios de comunicação. Ou seja, mesmo que haja um confronto com gostos pessoais e inclinações específicas, as opções são pertinentes e tornadas claras.
Indispensável numa primeira abordagem, ou em quem queira ter uma ideia de que tipo de biblioteca de banda desenhada gostaria de construir.
Nota: o volume consultado pertence à biblioteca da Escola Superior Artística do Porto, extensão de Guimarães.
Publicada por Pedro Moura à(s) 9:25 da tarde 3 comentários
Etiquetas: Academia
19 de setembro de 2008
Mei 26, Poétiques de la bande dessinée e CIRCAV 19, La bande dessinée à l'épreuve du réel. AAVV (L’Harmattan)
Há uma diferença estrutural profunda entre a investigação norte-americana e a francesa – para falar dos dois principais focos de atenção e pólos de criação do Ocidente – em torno da banda desenhada. Esta diferença só pode ser fundamentada numa complexa e aturada leitura, aqui apenas mostrada enquanto impressão. Essa diferença, identificamos nós, é que nos Estados Unidos a banda desenhada, as mais das vezes, é empregue enquanto objecto de toda uma diversidade de disciplinas de modos relativamente autónomos e separados (estudos culturais, de ciências da comunicação, de género, sociologia, iconologia, etc.), isto é, em que cada novo estudo (sob a forma de artigo ou de livro) é relativamente independente dos anteriores: poderemos ler Ian Gordon, Trina Robbins, Douglas Wolk, Geoff Klock, Bob Levin, e Joseph Witek, como exemplos, sem recorrermos a leituras cruzadas. Por seu lado, no espaço francófono (França, Bélgica e Quebeque, Canadá), encontramos uma linha de continuidade, de respostas a trabalhos e pesquisas anteriores, a contestações directas ou prossecuções académicas, especificações de teorias, etc., tornando este segundo grupo, não melhor ou superior numa mera apreciação hierárquica, mas sem dúvida mais coeso em termos de pensamento e de consubstanciação de uma disciplina própria à banda desenhada, a assunção de estudos específicos. Ao lermos Lavanchy, Fresnault-Deruelle, Groensteen, Baetens, Peeters, deparar-nos-emos com os nomes de uns nos livros dos outros (há casos de charneira: Ann Miller fará parte, apesar da sua nacionalidade e língua, parte desta segunda família, Bart Beatty não). Depois também há o caso português, em que há uma quase total ausência de um discurso verdadeiramente académico, com raras excepções, poucas dessas excepções públicas e, quando o são, abertas à discussão.
Seja como for, ao encontrarmos publicações colectivas reunindo ou tendo instigado artigos em torno da banda desenhada, se for do espaço francês, é quase inevitável encontrarmos alguns nomes já conhecidos (apesar de existirem alguns novos também, que esperemos encontrar mais vezes).
Dado o carácter destas duas publicações, farei apenas uma breve apresentação de cada artigo por publicação, com um comentário final.
a. MEI no. 26 A primeira publicação é o número 26 da Revue Internationale de communication "Médiation & information" (ou MEI), cuja edição ficou a cargo de Pierre Fresnault-Deruelle e Jacques Samson, e cujo título genérico é Poétiques de la bande dessinée. O objectivo central destes artigos é procurar e interrogar a poiética própria da banda desenhada. Isto é, não a sua dimensão poética enquanto um entendimento dessa palavra como busca por um lado emocional, nefelibata, de organização dos signos de um modo belo até, mas sim retornando ao sentido grego da poeisis, a um fazer específico, a um moldar os elementos e matérias próprias de uma determinada arte. Mais, procura-se aqui também o princípio de engendramento da metalinguagem (ou como dirá Philipe Marion, “metagráfica”) da banda desenhada, ou seja, os momentos em que a banda desenhada, nela mesmo, demonstra pensar-se a si própria. Não se apresentam em qualquer caso leituras exaustivas de um autor ou de uma dada obra, nem se procuram compreensões holísticas e finais, mas tão-somente uma análise sustentada e suficiente dos procedimentos em que essa dimensão ocorre. Diríamos estar perante menos “close readings” (com excepções) do que de análises globais de cada obra citada, sob essa perspectiva.
Para além de uma entrevista introdutória a Jiro Taniguchi, eis os artigos incluídos:
1. Cadre et démesure. Little Nemo sans repères (“Vinheta e desmesura. Little Nemo fora de referências”). De Christophe Genin: estudando-os os momentos em que, em Little Sammy Sneeze ou Little Nemo, se dá a ver a própria natureza de ficção (de banda desenhada) às suas personagens, o que se torna tão desconcertante para elas como para os leitores. O autor fala de um “efeito de umbral” quando isso ocorre, fundando-se um dúvida em que espaço nos encontramos.
2. Hergé ou L'intelligence graphique (“Hergé ou A inteligência gráfica”). De P. Fresnault-Deruelle: na continuidade da sua análise das “vinhetas memoráveis” de Hergé, o autor analisa aquelas que dão a ver a função poiética e a capacidade autoreflexiva da própria banda desenhada. Um exemplo é a imagem aqui em exemplo (retirada do álbum de Tintin, não do livro). A legenda que a acompanha diz: “esta imagem tem qualquer coisa de desconcertante na medida em que ela instaura uma cena quase onírica”, como se nos fosse dado a ver o outro lado do trabalho da banda desenhada, com a personagem a passar de uma vinheta para outra...
3. Une esthétique de la contraint (“Uma estética da restrição”). De Yves Lacroix: segundo este autor, todos os exercícios de retórica por que Schulz é famosamente conhecido foram desencadeados por todas as restrições editoriais impostas ao criador de Peanuts. Atendendo-se aos “fora de campo”, à criação de espaços totalmente bidimensionais, à criação de balões preenchidos com marcas gráficas idiossincráticas para representar discursos próprios (Woodstock, principalmente) ou momentos de estranheza, a profunda questão da variação de temas, Lacroix demonstra como Schulz faz com que nos recordemos de como “a narração é aqui o narrado”.
4. Tardi, sa marque, son souffle (“Tardi: a sua marca, o seu hausto”). De Viviane Alary: através de aproximações globais de vários títulos de Tardi, faz-se aqui um retrato dos procedimentos, não meramente estilísticos (ou esgotando-os numa “forma”) mas apontando o seu domínio ético, pessoal, cultural, político, etc.
5. Nomadisme et indentité graphique. Moebius, une poètique de l'errance (“Nomadismo e identidade gráfica. Moebius: poética da errância”). De Phillipe Marion: trata-se aqui de uma análise ancorada numa série de conceitos muito exactos (quer do território específico da banda desenhada, para o qual Marion contribui com o conceito de “graphiation”, por exemplo, quer de outros) sobre a obra de Giraud e a sua passagem para Moebius, buscando-se os espaços de contacto entre as “duas obras”, todos os intervalos de reinvenção pessoal e artística do autor, se bem que a metade-Moebius pareça ganhar vantagem...
6. L'histoire du monde où tout peut exister (“A história do mundo onde tudo pode existir”). De Erwin Dejasse: num estudo que mais se aproxima da literatura comparada, numa primeira fase este ensaio coteja a maravilhosamente livre (ou livremente maravilhosa) obra de Fred com várias instâncias mitográficas de povos ditos “primitivos”; depois, analisando os jogos de linguagem que fazem ressoar algumas imagens, o peso ético das personagens e as estratégias gráficas e figurativas (sobretudo por via das colagens), faz-se uma cartografia da subversão, em todos os sentidos da palavra, típicas do “pai” de Philémon.
7. Rumeurs (“Rumores”) De Vicent Baudoux: um pouco mais impressionista que os demais, este ensaio tenta reequilibrar a questão poética (stricto senso) do desenho de Sempé, procurando na típica graphiation (isto é, em toda a qualidade implicada do gesto artístico sobre a mensagem transmitida) desse autor o valor vital mais profundo (Baudoux bebe dos livros de Sempé, das histórias das personagens, mas também de entrevistas, etc.), estabelecendo ainda várias comparações (o silêncio de Mozart, a “fuga para o vermelho” de Huggins como signo sobre a personagem Marcellin Caillou) que exploram a riqueza falante do “traço” (tradução minha de graphiation) de Sempé.
8. Corto Maltese, l'espace recomposé par la conscience et la mémoire (“Corto Maltese: o espaço reconstruído pela consciência e memória”). De Bernard Darras: trata-se este de um caso de estudo de aplicação das ciências neurológicas para a análise do funcionamento da reconstrução mnémica (“da memória”) da série de banda desenhada mais conhecida de Hugo Pratt. Menos a ver com a dimensão poiética tout court, e especificando uma complicada área para a qual me falta a competência para entender totalmente (e muito menos contradizer ou criticar, apesar dos inquéritos utilizados me parecerem induzir os leitores ou não-leitores inquiridos a respostas previamente esperadas), mas que revela aspectos intrigantes sobre a colaboração posterior dos leitores sobre o traço deixado pela obra.
9. Keep on... Crumbin'. De Boris Eizkyman: na verdade, estamos aqui perante uma close reading, aliás, muito “close”, sobre a famosa banda desenhada de Robert Crumb, de uma só página, Keep on Truckin’..., datada de 1967. Para Eizkyman, trata-se como que de uma súmula da alegria positiva de Crumb, e da profunda inscrição deste autor no acto criativo, com amplas repercussões políticas e sociais, não obstante o irrisório valor que Crumb atribui a esta peça, depois dela ter sido feita refém por todo um mecanismo capitalista detestável. Esta leitura é ancorada numa abordagem figurativa, formal, cultural, social e ainda como crux da obra de Crumb.
10. Alberto Breccia, "l'humoriste sanglant" (“Alberto Breccia, ‘o humorista sangrento’”). De Philippe Marcelé: tomando o desenho num sentido lato, isto é, de um acto criativo específico, enquanto disciplina (no seu sentido artístico e atlético, ou seja, de linguagem de criação e de repetição íntima no autor), faz-se aqui uma análise poética dos procedimentos de Breccia, e os sentidos que esse trabalho singular despertam, num vaivém entre o político, o gesto subversivo (não só em relação à cultura da banda desenhada do seu tempo e lugar, a Argentina dos anos 60 e seguintes, mas também em relação à cultura em geral, à vida sufocada dessa circunstância), o estranho humor do autor, a sua inventabilidade gráfica (à altura dos desafios específicos dos seus colaboradores).
11. Permanences de la ligne claire. Pour une esthétique des trois unités dans L'Ascension du Haut-Mal de David B. (“A persistência da linha clara. Para uma estética das três unidades em L’Ascension du Haut Mal, de David B.”). De Jan Baetens e Hilde Van Gelder: à partida, parece um paradoxo querer qualificar este livro (ou a obra) de David B. com a “linha clara”, mas estudando o uso formal das três unidades da banda desenhada (o famoso “case, planche, récit” – vinheta, prancha, narrativa – de Benoît Peeters), procura-se aqui o modo de reinstauração ou revisitação muito próprio do autor desse estilo supostamente inaugurado por Hergé, sobretudo entendo-se essa “linha” como a subordinação da história ao domínio do visual (procurado por David B. na simplificação ou mesmo homogeneização dos espaços de representação e composição).
12. L'Origine de Marc-Antoine Mathieu, ou Le Surcroît de l'oeuvre (“L'Origine de Marc-Antoine Mathieu's ou A mais-Valia da obra”). De Sylvain Lemay: seria impossível falar-se da dimensão auto-reflexiva e metalinguística sem se citarem os trabalhos de Mathieu, sobretudo a pentalogia Corentin Acquefacques, prisonnier des rêves. É pela análise de um desses livros, L’Origine, e dos seus dispositivos formais – a tressage muito especial (o “entraçamento” de Groensteen), a anti-vinheta (um corte numa das pranchas) – que Lemay sublinha o modo implicado como Mathieu pensa (ontologicamente, apesar de o autor do ensaio o não dizer assim) a banda desenhada através da criação da banda desenhada.
13. L'instabilité stylistique d'Art Spiegelman (“A instabilidade de estilo de Art Spiegelman ”). De Pierre Alban Delannoy: a crise de auto-representação de Spiegelman, sobretudo em In the shadow of no towers, já foi aqui discutida. É de facto um tema importante na leitura do autor norte-americano... Mas quais as razões da variação de estilo na pequena obra de Spiegelman (e até no interior de Maus, que conheceu algumas versões diferentes antes da versão em livro)? Elas, as razões são várias, mas todas se reúnem numa só ordem, a poética precisamente (mas também apeteceria dizer “psico-gráficas”), e é isso que é analisado por Delannoy (que já havia publicado um volume dedicado ao autor, com Maus d'Art Spiegelman : bande dessinee et shoah) sobretudo tendo em conta as intervenções das confessio artis, os momentos em que o autor, no seio da própria obra, revela os modos criativos dela mesmo, e ao mesmo tempo as crises que daí advêm ou que dela fazem parte integrante.
14. Une vision furtive de Jimmy Corrigan (“Uma visão furtive de Jimmy Corrigan”). De Jacques Samson: se se falou de “muito close reading” no caso de Eizkyman, então aqui estamos perante uma “closest reading”. O autor do artigo elege uma só prancha (que aqui se mostra, novamente da edição original) de todo o Jimmy Corrigan. The Smartest Kid on Earth, de Chris Ware, para fazer uma micro-leitura, mas macro-análise, da linguagem de base, do modo implicado de Ware dar conta dos parcos e minúsculos movimentos, não só físicos, como emocionais e intelectuais, desta personagem verdadeiramente patética...
Num cômputo geral, este livro reúne artigos de críticas muito agudas e acertadas, que demonstram a potencialidade de formação de um pensamento próprio e autónomo em relação a este campo artístico, apontando-se mesmo algumas pistas em torno deste autor ou daquela obra como subitamente indispensáveis, quer para segui-las quer para contestá-las. A ausência de cor nas reproduções é ligeiramente negativa em relação a alguns estudos que nela se baseiam (Marion, Lacroix), e a má paginação do livro leva a alguns hiatos na sua organização. Um pouco mais grave é a secundarização do trabalho dos escritores na sua colaboração com os artistas citados, sobretudo grave nos casos de Moebius (Charlier), de Breccia (Oesterheld, Sasturain) e de Tardi (Daeninckx, o material de Vautrin), pois sem essa “metade” (pouco importa a exacta proporção, quiçá impossível de discernir, sobretudo se tivermos em conta o bloco inextrincável que essas obras constituem) o acto poiético não seria o mesmo (ou não seria mesmo). Mas tudo isso é ultrapassado pela seriedade do conjunto.
b. CIRCAV no. 19 A segunda publicação é também académica, e também de 2007, proveniente da Universidade de Lille 3, e intitula-se CIRCAV (“Cahiers Interdisciplinaires de la Recherche en Communication Audio Visuelle”). É o seu 19º volume, é um número coordenado por Pierre Alban Delannoy, e intitula-se La bande dessinée à l'épreuve du réel (“A banda desenhada posta à prova do real”). Tal como o volume da MEI, apresenta uma série de ensaios em torno de um tema de partida, neste caso, as relações da banda desenhada com a realidade, isto é, a existência empírica, tangível, histórica, do mundo e do tempo em que nos inscrevemos enquanto seres. Exploram-se relações com a memória de pessoas reais, a fotografia, a relação dos autores entre si. Vejamos os artigos:
1. Le vif des choses sauvegardé. La guerre d'Alan d' Emmanuel Guibert (“O vivo das coisas, ressalvado”). De P. Fresnault-Deruelle: [artigo repescado em Images à mi-mots] trata-de uma uma análise formal global aos dois primeiros volumes da trilogia, elaborando-se um conceito, o de “escrita do relatório”, em que há como que uma interrupção, ou desligar, da narrativa central, para se dar uma explicação, um esclarecimento, uma qualificação em relação a algo que está “entre” as acções reportadas; para esse fim, surgem os desenhos “enciclopédicos”, os quais são, a um só tempo, monstrativos e demonstrativos (as famosas vinhetas onde o objecto de atenção, por vezes as personagens, são destacados de um fundo descaracterizado). Tudo isto feito no fito de dar a ver a acumulação de distâncias, de Cope em relação à guerra, de Guibert em relação a Cope.
2. Maus et Auschwitz: des récits testimoniaux de tèmoignage(s)? (“Maus e Auschwitz: narrativas testimoniais de testemunha(s)?”). De Jonathan Haudot: a partir da ideia de “testemunho do testemunho”, isto é, a relação profunda que um ouvinte tem da memória testemunhal de uma pessoa que experienciou algo “em primeira mão”, estuda-se aqui Maus e In the shadow of no towers de modo a tentar perceber se e qual o modo em que essas obras preenchem esse conceito. Só Maus o faz, mas ITSNT levanta questões pertinentes que merecem o contraste.
3. “Je te dessine, donc tu es”. Les auteurs de BD (re)vus par leus collègues (“’Eu desenho-te, logo és’. Autores de banda desenhada (re)vistos pelos seus colegas”). De Mario Beaulac: partindo das ligações das biografias e autobiografias, sobretudo aqueles contadas através da banda desenhada, este ensaio fala de três experiências de biografias de autores de banda desenhada contadas pelo meio da banda desenhada (as de Jijé, Hergé e McCay). Estuda-se como dois modos de fazer banda desenhada (“o contado” e “o que conta”) se encontram, os vários processos, de mimese ou distância, em relação ao real: o facto de incluírem a própria obra de que falam, por exemplo, e não somente a vida dos autores, leva a uma alteração dos métodos de representação do real e ao diálogo, por vezes plasmada, entre a “linguagem original” e a que a “relata”.
4. Bande dessinée et journalisme (“Banda desenhada e Jornalismo”), um entrevista de Joe Sacco por Boris Tissot, onde se exploram de uma forma directa e sucinta os métodos de trabalho de Sacco, a evolução da sua relação com esse mesmo trabalho, e as aprendizagens a nível pessoal do autor ao longo da sua experiência.
5. Des cases très sensibles (“Vinhetas muito sensíveis”). De Erwin Dejasse: pequeno artigo (infelizmente, em vários sentidos) sobre a integração e valor da fotografia em obras de banda desenhada (em Yamada Naito, Teulé, Boilet, Guibert). Mas é pouco desenvolvido, acabando por ser mais as anotações de uma série de impressões – não obstante, pertinentes – do que a instauração de um acabado e articulado pensamento.
6. Frédéric Boilet, un français au Japon (“Frédéric Boilet. Um francês no Japão”). De Jan Baetens: a distância que separa as estratégias da representação do Outro (e mesmo das possibilidades de representação) entre O Lótus Azul, tomado como uma espécie de paradigma na história da banda desenhada moderna franco-belga, e a obra diversificada de Boilet é o alvo deste ensaio. Esta última obra, pelos caminhos da ficção ou não, marcam-se por uma impossibilidade de completar o retrato, isto é, uma consciência em saber que conter uma outra pessoa, de fora, é algo ontologicamente inatingível; porém, a integração dessa consciência no próprio acto de representação, ou tentativa, torna esse acto mais próximo de uma completude eventual.
7. Bd de la réalité, réalité de la BD (“Bd da realidade, realidade da bd ”). De Pierre Alban Delannoy: esta é uma excelente análise das diferenciações operadas no seio da banda desenhada contemporânea, que lhe permitiu passar do regime do livro para o do álbum (nos sentidos específicos de Mallarmé, em que o primeiro se refere a uma disposição retórica e espacial, que advém da escrita, e dá a ver uma forma una e universal, e o segundo a uma estratégia de montagem, de disjunção, de fragmentação, criado sob a circunstância e o descontínuo). O modo como as imagens são rasuradas ou compósitas, ou a composição heterogénea dos cadernos de viagem, diários, diários gráficos, etc., dá a ver uma aproximação (ou anulação da distância) entre o momento da criação e a sua leitura/fruição (fala-se de Dupuy e Berberian, Baudoin, de quem mostramos uma imagem significativa, e ainda uma nota especial para Maus)
As obras de arte não têm jamais origens ou circunstâncias originais comuns. O acto criativo é uma confusão. Cada um começa como pode ou consegue ou quer. O que se explora nestes ensaios não é a busca de uma ideia comum, impossível, e essa ideia é mesmo apagada com estes textos. Não há também um ponto de chegada, ou de fuga, comum, já que há uma disparidade tremenda de fios e sentidos de todas e cada obra. O que se explora aqui são menos as condições de produção (embora ela faça parte da equação) do que as condições de possibilidade: a sua relação para com o “mundo”, a “realidade”. E é nessa medida, a de que se inscrevem no mundo, que estas bandas desenhadas, e outras que estão prometidas no horizonte aqui descrito e circunscrito, formam uma comunidade.
Como se pode imaginar, haveria muitos outros pontos a debater no interior de cada ensaio, mas isso tornar-se-ia incomportável nestes textos, já grandes por natureza. Convidam-se os leitores a perguntas ou à leitura dos mesmos, e seu debate futuro.
Publicada por Pedro Moura à(s) 9:12 da tarde 1 comentários
Etiquetas: Academia, França-Bélgica
6 de setembro de 2008
Ufoja Lahdessa. Marko Turunen (Daada)
Esta pequena revista reúne alguns episódios, uns inéditos, outros não, da personagem Alien do autor finlandês, que já sido o protagonista do seu livro de maior sucesso (por ter edição internacional, da FRMK), La mort rôde ici. Mas marca, paradoxalmente, o início do fim. Numa prevista série de quatro números, da qual este é o primeiro, Ufoja Lahdessa (traduzido por “Ovnis em Lahti”, uma cidade no sul da Finlândia), apresentará os últimos trabalhos de Turunen com esta mesma personagem.
O formato é o de uma revista, cujo tamanho nos fará lembrar um comic book americano, mas num papel mais espesso e totalmente a preto-e-branco, que procura imitar, como somos informados pelo autor, “revistas baratas finlandesas sobre ovnis dos anos 70”. Uma vez que se trata de uma revista, acompanhada por inquéritos aos leitores sobre as suas próprias eventuais experiências com objectos voadores não-identificados e encontros de terceiro grau, o espaço de venda delas mais apropriado deveriam ser os quiosques, mas pertencendo ao círculo da edição independente, viverão somente naqueles círculos artísticos pelos quais o autor se habituou com os seus trabalhos (quer de edição, de filmes ou de exposições artísticas).
Para além das histórias com o pequeno Alien (que já havíamos exposto como uma espécie de alter-ego do autor), e com algumas personagens secundárias, das quais se destaca a “mulher”, nas histórias escritas por ou com Annemari Hietanen, mulher de Marko Turunen), há dois episódios, um verboso e ou outro não, com uma personagem chamada, em finlandês, “Tohtori Outotauti”, traduzido em inglês (esta é uma edição, como sempre na Daada, com traduções inglesas em nota de pé de página) como “Dr. Strangedisease”, fazendo recordar inevitavelmente o jogo similar da personagem de Kubrik, o Dr. Strangelove.
No entanto, a estranheza destas histórias, escritas por ou com Hans Nissen, não se prendem com um segredo que é ocultado a quase todas as personagens mas não à perspicácia do espectador, como no caso do filme citado. A estranheza que Marko pretende criar nas suas histórias, e que é aqui continuada pelos trabalhos de colaboração, prende-se com o facto de que o ambiente das histórias é construído nos pequenos bairros residenciais da Finlândia (de Lahti, presumo), seguindo-se acções aparentemente inócuas e banais – a recepção de uma encomenda postal, um livro comprado na internet, a observação do desenvolvimento de uma mazela – mas serem protagonizadas por personagens cuja representação nos faria pensar numa esfera qualquer do fantástico: um alienígena, uma mulher vestida como numa sessão hard de rubberplay, um homem mumificado e com uma pala num olho, um demónio do inferno, Thor, o deus do trovão...
Estamos de facto naquele território a que se dá o nome, por vezes abusado, do Unheimliche de Freud, o “estranho familiar”. Como o pai da psicanálise diz, “esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo da repressão. Essa referência ao fator da repressão permite-nos, ademais, compreender a definição de Schelling do estranho como algo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz” (Das Unheimliche, traduzido como “O estranho”, ed. port., Brasil, de As Obras Completas). No território da ficção imaginativa, contra um fundo de aparente correspondência com o nosso mundo empírico, surgem altamente contrastados os corpos destas personagens, que parecem querer representar algo de mais profundo, algo que nos fala a um só tempo de um modo inédito e íntimo, paradoxo traduzido pelo conceito do “estranho familiar”. Talvez não seja possível explicitar totalmente, à luz, o que era esse oculto, mas o sabê-lo é desde logo um passo decisivo à sua captura.
Estando de momento a preparar um ensaio mais alongado sobre a obra deste autor, fica aqui apenas o início dessa ideia, que se verá desenvolvida, explicada e fundamentada mais tarde.
Nota: agradecimentos ao autor, pelo envio da publicação e as conversas.
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:46 da tarde 0 comentários
Etiquetas: Finlândia