Visito Israel (ou outro lugar qualquer) munido de um mapa, um guia, um jornal, e uma câmara fotográfica. Ou visito-a com um caderno de desenho. Aquilo que verei, experienciarei, degustarei, e depois devolverei serão duas realidades bem distintas.
Neste livro que nasce de um conjunto de cadernos de viagem de Ricardo Cabral, a chave encontra-se talvez na página 124, onde o autor apontou o seguinte: “... a Cúpula da Rocha – que não está realmente ali mas que eu forço para aparecer no desenho...”. A palavra-chave está em forçar, isto é, o exercício de um esforço transformador sobre a paisagem, a alteração desta, a qual está à partida totalmente fora do alcance da manipulação de um só homem (excepto os casos da landart, claro está), através de um instrumento que, bem pelo contrário, poderá estar sob o total domínio do seu criador, a saber, o desenho.
Em Cadernos de Viagem, editado por Eduardo Salavisa, recordar-se-ão da história de Mário Bismarck, em que este, quando desenhava num templo do Egipto, foi interpelado por um guarda que o proibiu de desenhar. Num diálogo “por gestos”, o pintor foi informado que poderia fotografar e até filmar, mas não desenhar. Ora esse guarda revela uma inteligência arguta (aliás, Bismarck afirma mesmo que “daria um excelente professor de Desenho!”, pois sabe que o desenho permite que se pense mais além da mera angariação dos dados.
A fotografia, sabemo-lo com Vilém Flusser, pode ser vista como um princípio de “automação estúpida”, reduzindo-se os aparelhos a uma “caixa negra” e o fotógrafo a um “funcionário”, isto é, quando quem fotografa apenas se pauta em relação ao parelho, trabalha (ou “brinca”, nas palavras de Flusser) no interior das suas limitações técnicas e políticas. Outro pensador da fotografia, Henri Van Lier, faz-nos encontrar o equilíbrio próprio dessa linguagem entre a imparcialidade (a captação automática de fotões em papel químico-óptico) e a indexação do gesto (todas as opções possíveis, a contextualização, a focalização). A fotografia não pretende devolver a realidade (“acontecimentos e objectos”) mas um real (“processos e continuidades”). O desenho é igualmente um processo, mas algo que parte de uma continuidade mais recuada, mais próxima do objecto (é preciso contorná-lo, como a jovem de Corinto ao seu amante) e, ao mesmo tempo, mais afastada (não há fotões reais sobre os objectos, mas a promessa de um afastamento posterior).
A opção, hoje, pelo retorno ao caderno de desenho em detrimento do aparelho fotográfico, revela então um processo de correcção dessa visão automática “pobre”, “repetente”, introduzindo-se um qualquer grau de individualidade e voz própria. O desenho, enquanto instrumento de conhecimento, é algo de muito antigo, algo que encontrou em Leonardo o ápice da sua completude e sofreguidão, e que tem tido ao longo dos séculos da criação humana os seus cultores. Ricardo Cabral não é turista em Israel (não o é apenas, pelo menos), e poderíamos mesmo argumentar que não vemos nestes cadernos a Israel passível de uma mediação supostamente objectiva – se é que isso é possível com algum lugar, mas temo que Israel o seja menos ainda – mas a Israel de Ricardo Cabral (tal como há um Fuji de Hokusai, uma Berlim de Grosz, uma Londres de Geoffrey Fletcher ou de Francis Marshall, uma Nova Iorque de Vasco Colombo). Através dos seus momentos calmos, Cabral desenhou esta Israel, as suas várias cidades, os seus cantos menos teatrais, os lugares mais confortáveis e reais do artista, para que a pudesse conhecer de um modo outro, e que depois nos pudesse devolver (um desenho, tal como uma fotografia, uma frase, é sempre feito para alguém, para o futuro, é sempre uma esperança de partilha, apesar da frase de Manuel San Payo destacada no post anterior).
Quanto aos desenhos em si, participam de um território misto. Ao acompanhar alguns dos desenhos que iam sendo expostos no blog do autor, e o processo de trabalho a que se entregava (vejam aqui), notar-se-á que a procura de Cabral não se cinge à disciplina do desenho, mas ao seu cruzamento com a fotografia onde esta permite uma aproximação mais naturalista das cores. O abdicar de uma maior expressividade através de outras técnicas de cor (como as aguarelas ou as ecolines), o facto de tomar decisões de alteração ora do desenho original ora da paisagem efectiva, a opção em representar algumas vistas em “olho de peixe”, a inclusão de pequenos pormenores de produção (o seu próprio reflexo em superfícies, as páginas sob aquela visível, um estranho equilíbrio entre pormenores quase hiperrealistas e outros moldados por aproximação, uma franca opção por abandonar a figuração humana “mangaizada” de Evereste por uma outra maneira que experimenta em desenhos, inclusive os enormes painéis que expôs na galeria Corrente d’Arte), fazem deste livro um caso de estudo das fronteiras da ilustração, do desenho, do gesto gráfico, e até mesmo da fotografia, muito profícuo.
Em termos de exemplo, vejam-se as páginas 148-149 e 150-151. É impossível crer que, mesmo não tomando em consideração a cor, estes desenhos tenham sido feitos nos momentos que retratam, tão curto intervalo; terá sido um apontamento estenográfico posteriormente esculpido?, duas fotografias desenhadas?, um só desenho desdobrado? Questões que apenas poderíamos perguntar directamente ao autor, mas que se torna mais interessante colocar ao próprio livro, e esperar que a sua leitura nos desvende as várias respostas. Um outro exemplo, páginas 156-157. Fala-se de “uma menina brinca junta ao abrigo”. Vemos três. Não, vemos uma, em três momentos e acções diferentes. De novo as questões surgem, e com o desenho, as respostas fluem também. Há apenas um momento em que a especificidade do espaço físico do caderno de desenho faz explodir a concentração representacional: nas páginas 208-209 o autor desenhava a paisagem urbana em frente a uma esplanada, “mas não acabo... já não é a rua que me interessa. São as pessoas que passam (...) a vida que aqui há”. É sempre essa vida “que aqui há” que está presente nos desenhos de Ricardo Cabral (e não uma reportagem, uma construção coesa de um qualquer discurso regrado), mas este é o único momento em que se instala a total liberdade da qualidade de palimpsesto do caderno (para empregar um termo previsto no catálogo referido atrás). Todavia, como vemos, as opções de Cabral pautam-se por um qualquer grau de naturalismo.
Há que nos remetermos aqui para as questões dos textos, dos pequenos e breves comentários do autor em relação ao que se vê representado, quase sempre num tempo presente, criando-se um equilíbrio entre distância e presença. Poder-se-ia ainda acrescentar que se trata de um discurso a-politizado, uma vez que não há quaisquer comentários em relação à situação política de Israel (apesar de se anotar um susto de uma bomba, a protecção nos abrigos, a presença dos militares, uma fronteira...), que mais suscitaria interesse à partida, de uma certa perspectiva. No entanto, poderemos ver aí mesmo um posicionamento, de resto inevitável, nesses mesmos palcos. As relações de Ricardo Cabral com os seus interlocutores locais parece ser o da amizade somente, não há diálogos transcritos, não adivinhamos tensões de qualquer espécie, tertemunhamos até uma aparente bonomia, uma serenidade, até mesmo uma banalidade das vistas.
São esses mesmos momentos, descomplexados, aqueles que mais nos conquistam em termos pessoas. As imagens dos interiores, aquelas “sem acção”, sem até personagens... são essas as que mais revelam não o mero aborrecimento pelo banal e comezinho, mas sim os momentos em que o desenho de Cabral leva mais tempo a contornar os objectos, a apalpá-los e moldá-los com linhas e sombras. A vista de um bule de chá eléctrico em primeiro plano, do que se esconde por entre um beco, os restos de uma refeição, são bem mais eficientes nessa transmissão do que os retratos das pessoas que passam, mais ou menos rapidamente, na “vida retratada” destes cadernos (recordando-nos, de um modo estranho, as “paisagens” de Shinji Kimura.
O livro de Ricardo Cabral não participa, a meu ver, daqueles interesses peculiares que podem ocorrer nos diários gráficos de pintores ou artistas visuais de outras disciplinas. Isto é, em que a aguarela, a trama do lápis, do carvão, da grafite ou da sanguínea exploram as suas próprias capacidades expressivas ou aquele grau de simbiose que se torna possível com o gesto do artista. É inevitável que, tal como outros artistas de banda desenhada que têm cadernos publicados (Baudoin, Loustal, Dupuy e Berbérian, Gallardo, Joaquin López Cruces, Crumb, Kuper), se procurem afinidades entre uma actividade e outra (contar histórias, procurar elos narrativos, dar a ver a expressão das “personagens”, treinar uma maneira de desenhar, etc.). O cruzamento com a fotografia de Cabral aumenta o grau do seu desejo em fixar. E mais do que o virtuosismo do desenho, ou a captação do momento afortunado, encontro aqui uma espécie de processo em descobrir coisas, acima de tudo a sua própria capacidade de concentração e desenho, de relacionamento humano com os outros, e a semi-timidez em encontrar uma forma de a tornar acessível a nós, leitores e espectadores.
Existem muitos cadernos de viagem e de campo e diários gráficos... Ricardo Cabral tem a felicidade de encontrar uma forma de os publicar com qualidade e visibilidade. Não há que fazer hierarquias internas aos trabalhos, mas sim dos esforços editoriais, que ainda pecam, entre nós, pela timidez. Fosse esta uma família que crescesse...
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
23 de novembro de 2009
Israel Sketchbook. Ricardo Cabral (Asa)
Publicada por Pedro Moura à(s) 6:50 da tarde 4 comentários
Etiquetas: Ilustração, Portugal
Diários Gráficos. Desenhos em Cadernos. (Centro Cultural de Lagos/Galeria Municipal de Torres Vedras)
Serve o presente e brevíssimo post para dar conhecimento da disponibilidade do catálogo desta exposição comissariada por Eduardo Salavisa e Carlos Mendes em torno de um objecto gráfico específico, os diários gráficos. A exposição dá continuidade e forma expositiva ao gesto a que Salavisa havia presidido com Diários de Viagem. Reunem-se no espaço 300 cadernos cedidos pelos seus cultores, apresentam-se painéis aumentados de algumas das suas páginas, publicam-se breves frases, verdadeiros programas (recuperadas, a sua maioria, do livro).
O catálogo organiza-se de um modo mais sistemático do que o livro (bem mais livre, e não faço aqui qualquer hierarquização dessas opções), se bem que falando-se de menos autores, abrindo-se terrenos mais circunscritos: os “desenhadores quotidianos”, em que impera a imprevisibilidade aliada à visibilidade aumentada, a experimentação ao exercício, o ritual à descontração; os “viajantes/investigadores e desenhadores científicos”, em cujo trabalho se encontra uma aliança mais imediata entre uma disciplina programada e regrada e um objectivo claro e directo, mas não se impedindo a intervenção de escolhas intempestivas; os “cadernos de trabalho e livros de artista”, os quais, quer enquanto plataformas de preparação do que está por vir quer enquanto repositório final do objecto a mostrar, são em si mesmo processos de abertura e visibilidade do modo de funcionamento intelectual e intuitivo (muitas vezes em novelo) dos artistas implicados.
Apresentada em Lagos, seguirá depois para Torres Vedras e adivinha-se a sua continuidade. É sempre mais uma lição num território que se adivinha profícuo, articulável com muitas outras esferas de criação e de pensamento, flutuante enquanto imagem, e insuperável enquanto amplificador.
Nota: para mais informações, aconselho seguirem o blog de Eduardo Salavisa [cliquem em "Exposição em Lagos"], a quem agradeço a oferta do catálogo.
Publicada por Pedro Moura à(s) 6:34 da tarde 1 comentários
Etiquetas: Ilustração, Portugal
20 de novembro de 2009
Alack Sinner, L’Intégrale (2 vols.). & Conversations. Carlos Sampayo e José Muñoz (Casterman)
A edição integral de todos os trabalhos relativos à personagem Alack Sinner, do escritor Carlos Sampayo e do desenhador José Muñoz, é ditada por várias linhas convergentes. O prémio de carreira/obra para Muñoz em Angoulême, a potencialização da recuperação da memória na banda desenhada, as novas imposições de mercado que pedem por novas formas de divulgação e fruição. Encontrar-se-á nesse conjunto de factores uma explicação parcial pela qual se optou pela reformatação dos álbuns ditos “clássicos” em algo mais aparentado ao livro literário. Se por um lado acreditamos que se deverá isso a uma imposição nova do domínio económico (o formato livro, “a graphic novel”, o “romance gráfico” possui um qualidade diferente de distruibuição e exposição nas livrarias), por outro pautará seguramente uma experiência de leitura diferente: do herdeiro do álbum de estampas coloridas (da Quentin, da Épinal) ou do livro engalanado do século XIX (os livros Hertzel em primeiríssimo lugar), prémio infantil, momento de divertimento, escape e espojamento no chão para ler e navegar, passa-se à experiência mais contida, íntima, da leitura silenciosa, do livro símbolo da idade adulta. O que se ganhará e o que se perderá nessas reformatações? Talvez seja cedo ainda para o responder. Esta leitura ganha uma dimensão acrescida pela publicação e leitura paralela do volume Conversations avec Muñoz et Sampayo, de Goffredo Fofi, que aprsenta alguns aspectos biográficos e do percurso académico e profissional dos autores, as suas cumplicidades, as suas vidas, as origens de Alack Sinner, os métodos de trabalho mas, acima de tudo, já que as conversas de Fofi jamais se desejam ver espartilhadas pela “bd”, procura-se dar a entender o que os três autores (Fofi não se reduz a um entrevistador, mas alguém que pensa) entendem do mundo em termos literários, políticos, sociais, filosóficos, tornando mais rica a apreensão de todo este conjunto.
Não obstante, se se ganha um determinado nível de conforto, simplicidade e imagem de conjunto com esta edição integral, por outro não se procura aqui a reescrita de uma linha coesa destes livros. Cada um dos episódios, das partes, dos álbuns originais mantém a sua autonomia (foi sendo a série publicada em episódios curtos no suplemento alterlinus da revista italiana Linus e em traduções francesas na Charlie Mensuel e depois na (A Suivre), entre 1975 e 2006), e não estamos perante um crescendo unificado ao longo destas 700 páginas, mas antes de núcleos de intensidades, um pulsar e um ritmo próprios. A opção dos autores em não apresentar uma simples disposição cronológica poderia levar a pensar num gesto mínimo de reescrita dos episódios sobre o detective, mas terá antes a ver com a possibilidade de compor (como na música) uma progressão de canções interligadas, do que de uma sinfonia coesa. O facto de não serem aqui incluídas as histórias derivadas da série principal (em americano, spin-offs), como Le Bar à Joe (na qual se encontra a magistral curta “Ce sympathique Mister Wilcox”) e Sophie Comics/Sophie Going South, não invalida todo o projecto, torna-o antes concentrado nessa reescrita unificada, ainda que livre.
Este conjunto faz-nos aperceber também de uma espécie de evolução interna à obra da dupla argentina, as torções a que foi sendo submetida. Tal como sucede quando lemos um só volume reunindo um trabalho que se espraia por vários anos (penso, a título de exemplos, em Hicksville de Dylan Horrocks e Box Office Poison de Alex Robinson), temos num só objecto um estilo que se vai alterando, figurações que se vão contornando de modos diferentes, apuramentos narrativos e políticos. Não será de surpreender que numa obra que se estende por quase trinta anos se verifiquem transformações radicais, no pleno sentido desta palavra. Digo-o porque se trata de facto das raízes em que se inscreve Alack Sinner. Aquilo que começara como uma série classicizante – isto é, desejando integrar uma “classe” pré-existente – do policial transformar-se-ia numa obra magna de expressão individual dos autores, abandonado os clichés moralistas e do status quo do “policial” para se revestir até mesmo de uma voz contra a mundividência norte-americana (sobretudo nas ruas relações internacionais, expressas em guerras movidas por interesses financeiros). O desenho de Muñoz e a escrita de Sampayo estabelecem, nos primeiros episódios, uma estratégia em todo análoga à dos modelos que seguiam, de Milton Caniff (visto por Pratt, mas recuando até Steve Canyon) e dos hard boiled. Histórias policiais detalhadas, em que a composição das páginas e das vinhetas são cheias e “simbólicas”, em que todos os objectos e pequenas acções devem concorrer para a construção psicológica das personagens (até parecem terem lido Eco sobre Canyon para depois aplicar a lição), a trama se centra no caso central, que é desvendado e resolvido no fim e, como qualquer romance policial que se preze, é menos o papel activo do detective que para isso concorre do que a força quase fatalista dos acontecimentos em torno do crime, a inexorabilidade do nexo e da moral. O próprio nome da personagem – que os autores explicam ser uma espécie de corruptela sobre a expressão “Hélas!, pecador” – quer fazer-se passar por um significado totalmente previsto, e o detectiva possa vir a ser o bode expiatório, aquele que carrega os pecados no mundo para que este se purgue deles. Um inocente que vai apagando os crimes, portanto, mas que fica manchado por eles, sem se tornar num criminoso ele mesmo.
Todavia, há uma tensão que está logo presente nas primeiras histórias e que promete ser um sendeiro percorrido até ao fim (ou sê-lo-á e afirmamo-lo em retrospectiva). Existem algumas vinhetas em que o herói é relegado para segundo plano, e surgem-nos todos aqueles elementos secundários que servem para compor o ambiente, a paisagem social, com um direito à cidadania do protagonismo (curiosamente, o melhor autor brasileiro do Zé Carioca, Renato Canini, fazia precisamente o mesmo): os becos, os “vadios” e “deliquentes”, e pequenas pistas que servem para o tal retrato político e urbano, desde os Black Panthers a referências ao Watergate, aos verões quentes e tensos da Nova Iorque dos anos 1970, a crise do petróleo de 73 e suas consequências, e muitos outros detalhes daquilo que se vai desprendendo de “mero policial” para se tornar um retábulo, no qual se ergue um gesto mais expressivo e que ausculta mais profundamente o homem Sinner. É mesmo essa atenção para com o social, com o marginal que vai ganhando maior presença e subtileza (veja-se o modo demasiado óbvio do tricot no primeiro caso, “L’Affaire Webster”, contrastanto com a subtileza da mosca-sintoma em “Constancio et Manolo”, e noutras histórias também, uma espécie de assinatura desdobrada). que pauta a idêntica transformação do traço de Muñoz e a escrita de Sampayo, ou melhor, a refabricação de Alack Sinner.
Nesse sentido, penso que estão muito patentes algumas influências do movimento Neue Sachlichkeit, sobretudo pelas figuras de Otto Dix, Karl Hubbuch e, claro está, Georg Grosz. Este último não é apenas citado por Muñoz nas conversas com Fofi, como tem o nome aplicado a uma das personagens em Alack Sinner e, acima de tudo o mais, tem uma presença constante na transformação do estilo gráfico de Muñoz. De Caniff a Grosz, o traço de Muñoz vai-se inflectindo por valores mais densos, contrastados, plásticos, maleáveis, tal como ocorrera em Breccia, professor do primeiro. Ambos passam a explorar nas suas Buenos Aires (veja-se Buscavidas), Paris e Nova Iorque as grotesqueries que Grosz havia retratado da sua Berlim. Os traços vão-se engroszando, se assim se pode dizer. Os pretos são “sombra absoluta”, os brancos “luz absoluta”, nas palavras do artista. O chiaroscuro ganha, com Muñoz, não apenas um novo cultor (inserindo-se numa linha que na banda desenhada tem Caniff num dos princípios), mas uma nova presença (com a qual irmanaria, de uma forma acabada e individualista, André Lemos, por exemplo). Até mesmo as onomatopeias ou os fumos vão sofrendo alterações radicais, e de meros complementos informativos e de ambientes passam a ganhar uma cidadania de representação gráfica quase autónoma, quase se tornam corpos activos num mesmo plano que as personagens... O espaço plástico – nessa ideia de relação entre primeiro plano e fundo, ambiente social e herói, formas narrativas clássicas e experimentações expressivas – vai sendo paulatinamente invadido por figuras alheias à economia narrativa, tornando-o mais significativo para o exterior, criando-se uma rede de referências e desdobramentos culturais. Não é apenas a presença de nomes sonantes ou sugestivos em certas personagens (Grosz, Cagney, a negra Enfer, Aguirre, Parker, recordando ou, melhor, antecipando o jogo a que José Carlos Fernandes se entregaria igualmente de uma forma hiperbólica; nomes que também se repercutem nos reclames, nos posters, em dezenas de pormenores) mas também, numa primeira instância, a passagem de personagens de outras bandas desenhadas, estabelecendo-se assim uma espécie de eco colectivo (Corto Maltese, Dick Tracy, Batman, e Popeye?), mas seguindo-se a presença de figurações provindas das artes visuais (os episódios sobre Guernica abrem-se naturalmente às figuras do famoso quadro de Picasso). Outros ecos atravessam outros territórios, como cinema, claro... Numa cena passada num drive-in, apercebemo-nos da famosa cena do filme Chinatown de Polanski, em que realizador, no papel de fuinha, corta o nariz a Jack Nicholson. É curioso que se cite precisamente um filme que revisita o noir de um modo pós-moderno. Goffredo Fofi, no seu livro, aponta como Muñoz e Sampayo são contemporâneos de Polanski, mas também de Godard, de Tarkovsi, de Glauber Rocha, apontando para uma nova forma de entender a expressão artística, a maneira como a tradição se integra nas novas linguagens. Cinge-se ao cinema, por razões óbvias e circunstanciais, mas abre aí um território possível de interrogação (mais do que de investigação). Porém, acima de todas estas instâncias de sobreposições de referências, aquela que é a mais acabada, radical e pós-moderna é a presença dos próprios autores na sua história.
Os autores fazem-se presentes em Alack Sinner das mais variadas maneiras, executando estratégias de auto-representação muito díspares, reforçando, a um só tempo, a sua assinatura autoral, a paternidade e a protecção do protagonista, a amplificação dos retratos sócio-culturais a que estas narrativas se prestam, de um modo não-secundário, como vimos, mas intrinsecamente estrutural (ou ambiental) e a ainda a dimensão meta-referencial que cada novo passo e presença no seio da narrativa sassume. O primeiro grande momento dessa dimensão ocorre em “La vie n’est pas une bande dessinée, baby”, com o encontro dos autores eles-próprios com a personagem ela-mesma, em que dois autores de banda desenhada argentinos se encontram em Nova Iorque e seguem Alack Sinner para terem material para as suas histórias sobre um detective do mesmo nome. O jogo de espelhos diverte Alack, os autores argentinos não revelam em nenhum momento serem aqueles que controlam a história que lemos, mas a complicação pós-moderna está lá, tal como havia sido prevista já no Quixote de Cervantes e numa bateria de autores contemporâneos (não se trata tão-somente da auto-representação dos próprios autores nas suas próprias bandas desenhadas, como acontece até mesmo com Goscinny e Uderzo, mas de uma “destruição” das camadas que separam a ontologia ficcional e a realidade consensual a que pertencemos: Grant Morrison e companhia fá-lo-ia mais tarde, de um modo mais explícito, em Animal Man). Mas a presença dos autores multiplicar-se-á por cameos mais ou menos divertidos e subtis, como, por exemplo, em “Constancio et Manolo”, a passagem fugaz de ambos à entrada do peeping show (vol. 1, pg. 262), ou os sem-abrigo que oferecem a Alack de beber em “Au fond de l’Hudson” (vol. 2, pg. 35). Ou ainda os fantoches que encerram o espectáculo qe transita do primeiro para o segundo volume desta edição, ou ainda aquele momento em que um sucedâneo de Muñoz, um desenhador chamado Martinez, atravessa o caminho de Alack Sinner, e que a acção depois nos obriga a seguir, em detrimento do protagonista, que adormece na viagem de autocarro. Quando desperta, a história de Martinez chega ao fim, e ficamos na dúvida se foi “real” ou não. Essa história paralela, “Pour quelques dessins...”, é uma resposta de Muñoz ao famoso caso de plágio de que foi alvo por Keith Giffen, nos anos 1980. Martinez quer pedir explicações e satisfações ao autor norte-americano K. K. Kitten, de grande fama e sucesso, a razão da cópia das suas pranchas, terminando tudo num caso de polícia. O caso real deve-se a um trabalho de Giffen cujas vinhetas seguiam a par e passo o de Muñoz.
Não obstante esta intervenção directa dos próprios autores, ou seus avatares, no seio do universo ficcional que criaram, o peso dessa presença não é muito diverso daquele que é cumprido por toda uma série de outras personagens, secundárias se não até mesmo de planos inferiores em termos de exposição e centralidade, mas que, num dado momento, assumem o centro das atenções e estruturações da banda desenhada em curso. Esse grau de alteração de graus de atenção vai-se tornando cada vez mais complicado e estratificado, até chegarmos, nalgumas histórias, a momentos em que poderíamos falar de caos narrativo, em que as frases das personagens são interrompidas, em que não duas vinhetas seguidas compondo uma sequência linear, mas antes dispersando-se por vários locais, perspectivas, momentos, incorrendo numa polifonia absoluta cujo propósito não é a harmonia de um cânone ou de um moteto, mas antes de experiências contemporâneas dissonantes. Para dar a ver e relatar o mundo, onde está presente “a antropologia narrativa de investigação contemporânea politizada, com os seus matizes éticos e sentimentais necessários, com a cidade fascinante e impiedosa, as alianças entre políticos moralmente imbecis e criminosos variados, mas o coração não se rende...” (Muñoz, respondendo a Fofi, pg. 33).
Todavia, uma dissonância que serve para transmitir um outro tipo de harmonia, que tem a ver com o retrato da sociedade possível fazer nestas páginas e que acaba por se tornar a principal personagem das últimas passadas de Alack Sinner.
No fundo, é como se, na contínua estrutura de todo o Alack Sinner, observássemos o primeiro passo alquímico da dissolução (solve, putrefactio, nigredo) sem que fosse possível atingir os passos subsequentes que permitissem a nova união, a purificação, a coagulação numa imagem ou sentido único e límpido. O mundo não o permite. Essa dissolução é feita ao nível da estrutura usual da banda desenhada, como vimos, mas também ao nível da atenção unificada do leitor, obrigatoriamente estilhaçada pelos fragmentos em voo livre (a imagem alquímica ganha contornos exactos em “Nord-Américains”, mas refiro-me ao acto estratificado em toda a obra).
Há um momento (vol. 1, pg. 212) em que Alack diz que a sua profissão é escutar os outros. Como um psicólogo ou um padre. E todos eles servem em nome de uma justiça. Enquanto as histórias contadas aos primeiros se dirige ao próprio contador, à resolução das suas crises internas, fantasmas portáteis, e aquelas contadas aos segundos a Deus, as que se contam aos detectives servem para partilhar essa mesma história, pois pelas acções do detective passa a integrar essa narrativa (a qual depois nos é devolvida na ficção). Quando Sinner diz isto não é detective (a licença foi suspensa) e sobrevive como taxista, que é uma dessas outras profissões de escutadores (como se depreende destoutro livro), conjuntamente com os barmen, por exemplo. Histórias que não servem para “cair em saco roto”. São desculpas para criar ficções. E esse é o gesto central e absoluto de Muñoz e Sampayo (cuja união criativa também se espraiou noutros títulos, de Billie Holiday a Carlos Gardel, de Sudor Sudaca a Le Livre). Em “la fin d’un voyage”, vemos numa vinheta uma casa numa paisagem nocturna, a lua cheia por cima; dois balões saem da casa, Alack (penso que é Alack, mas poderia ser Sophie) dizendo “que lua!”, e Sophie (penso que é Sophie, mas poderia ser Alack) respondendo “uma vez por mês”. Que devemos pensar desta frase? Significará um remoque derisório que nos impede de aceitar o momento único (o amor, a beleza) sem que recorramos ao distanciamento irónico? Ou será antes uma uma nota esperançosa que permite descobrir a possibilidade do retorno mesmo dos momentos únicos, aceitando de bom grado a perenidade dessas felicidades?
Esse jogo de reequilíbrio permanente é aquele previsto nos sub-títulos destes volumes antológicos, um jogo entre “inocência” e “desilusão”. Estes sub-títulos, na verdade, não fazem grande sentido, ou devem ser vistos de um modo paradoxal. Apesar de no primeiro volume existirem instâncias de analepses à infância e juventude de Alack, em nenhuma dessas ocasiões nos e dada a ver qualquer “inocência”. Mais, se inocência existe, são apenas os últimos resquícios dela que testemunhamos a serem levados por uma qualquer acção de violência, as mais das vezes social, espiritual, interna à vida do protagonista. Se entendermos essa inocência uma inocência pessoal, ela é rapidamente apagada. Se a quiseremos entender como algo que abranja todas as histórias, as personagens, a cidade de Nova Iorque, então é antes o “desencantamento” que se encontra disseminado por todos os elementos. Não há uma total clareza quanto à substância dos acontecimentos e da hierarquia dos valores envolvidos, e talvez seja isso mesmo o que constrói o interesse humano de todo o Alack Sinner. Contudo, podemos ver o paradoxo de outra forma. As histórias partiram de “casos” isolados, concisos, unívocos, resolúveis, nítidos, externos à personagem mas através deles moldados numa narrativa, para chegar a polifonias ou relatos desregrados em termos das sensações de Sinner. O único momento de retorno à trama detectivesca, depois do início desse movimento, é quando se envolve uma narrativa policial em torno de Cheryl, a sua filha com Enfer, aprofundando a dimensão humana de Sinner, o qual, como as personagens de Frank King, vai envelhecendo à medida que o tempo real dos livros passa. E se num primeiro momento, em “Rencontres”, se fazem concentrar todas as personagens da vida de Sinner, ma espécie de balanço, é no grau máximo do paroxismo final, pontuado pelo 11 de Setembro de 2001, “L’Affaire USA”, que Sinner consegue um momento de paz verdadeira – bem diverso daquela paz que advém dos encontros sexuais ou amorosos, não necessariamente interligados nem por essa ordem –, brincando com a neta num jardim, livre do hábito tabagista, com força para o jogging, quase patética, enquanto por detrás dele ainda se urdem as conspirações, mas para as quais Sinner já não lança pontes, das quais se libertou. Talvez seja nesse momento então que resida a inocência prevista no sub-título, e não seja uma inocência “perdida” mas antes “conquistada”.
Então, talvez, talvez, a fase de coagula seja atingida no fim, pelo menos nesta magnum opus nigrum - indubitável neste caso - agora apresentada como uma unidade.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos três livros.
Publicada por Pedro Moura à(s) 6:38 da tarde 5 comentários
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17 de novembro de 2009
Animalário Universal do Professor Revillod. Javier Saéz Castán e Miguel Murugarren (Orfeu Mini)
Este é mais um daqueles livros que remete à esfera dos dispositivos a que chamei, não sem alguma infelicidade, “livros mãocânicos”, a propósito d'O Livro Inclinado de Newell, editado pela mesma casa. E mais uma vez recorro a essa noção, e ao que está implicado, para ler este livro.
Todos os livros necessitam das mãos para serem lidos, naturalmente. E pouco importa se estamos a falar de livros em rolos, em codex, se de livros com aplicações mecânicas que expandem o grau e eficácia de informação, como as volvelles dos livros de Rámon Lull ou de Petrus Apianus, ou se de um moderno ebook lido num qualquer dispositivo electrónico. Mas há livros em que o papel das mãos é mais do que permitir o aparecimento da superfície a ler, e os próprios gestos manuais se tornam extensão e condição de possibilidade óptica, e de leitura. É o que sucede num livro como Animalário Universal. A mão é uma extensão do olho, o olho da mão, um qualificando o outro: constrói-se um dispositivo unido e não meramente complementar, simbiótico ou mútuo. Uno. Virar as páginas, ou partes, ou placas, ou lâminas é o mesmo que lê-las. E até mesmo, como veremos, escrevê-as ou desenhá-las.
Este tipo de livros com as ilustrações cortadas em lâminas amovíveis é algo que foi experimentado bastas vezes noutras cirscunstâncias, quer na esfera infantil (os livros da norte-americana McLoughlin Bros., no século XIX), quer para fins de promoção comercial (como este livro o Kellog's Funny Jungleland Moving Pictures), quer ainda como continuidade da obra expressiva dos artistas envolvidos (penso em Facetasm, da colaboração de Gary Panter e Richard Sala). Mas Animalário Universal traz outros factores à colação. No que diz respeito à matéria, lembrar-nos-á seguramente todos e quaisquer bestiários existentes na história humana, dos medievais aos modernos (as páginas dos Génesis e dos Apocalipses, o manuscrito Ashmole, o Reiner Musterbuch, o Abcedario-Bestiario de Santo Martino, as obras de Edward Topsell a Gaspar Schott, algumas cenas do Museum of Wonders, de Frederick Opper, os bicharocos de Maurice Sendak, e um longo e cheio etc.). Aquilo que este Animalário guarda desses compêndios é o facto de dar, pelo menos em termos do plano da representação, um idêntico grau de cidadania quer aos animais observáveis, domésticos, de cada dia, quer aos míticos, herdados dos mitos da Antiguidade ou dos contos de marinheiros.
Mas há que fazer uma especificação. É que, se nos bestiários os animais fantásticos – a mantícora, a sereia, o cinocéfalo, o unicórnio, o basilisco – se apresentam lado a lado no plano da representação ao cão e ao morcego, o pato e o elefante, a ovelha e o crocodilo, já em Animalário Universal os planos de apresentação e representação estão diferenciados. As imagens partem de planos coesos e normativos, ilustrações representando à vez o elefante, a porca, o tatu, a gralha, até ao coelacanto (celacanto). Todos animais, portanto, que partilham a existência actual connosco (mesmo o último peixe, que é uma espécie de retorno ao passado no imaginário evolutivo, uma sobrevivência do tempo mítico, transformando-o num curiosíssimo ponto final neste bestiário). Apenas quando o leitor folheia as lâminas desencontradamente, e passa a misturar os elementos que compõem essas imagens e animais, é que passam a surgir as criaturas fantásticas, do pulto cangato, ao tiliguru, da grapa doutro ao cacacanto...
Ou seja, é o gesto de leitura do leitor-espectador, a sua progressão desirmanada e caótica, que provoca, a partir do plano da “normalidade” dos animais existentes e sua nomenclatura, a emergência destas criaturas compósitas, destes monstros, e do seu desarranjo nominal que leva à própria recriação da linguagem e suas categorias, como se se estivesse a rever o acto original adâmico: renomear é recriar (poder-se-ia explorar esta linha ainda mais tendo em conta que os nomes são divididos em sílabas, tal como os corpos em outras tantas “unidades mínimas”).
Mais do que um bestiário à moda antiga, um repositório de formas, de mitos passados, de histórias fechadas, o que se provoca aqui é a potencialização do contributo do leitor para o surgimento de “4066 feras diferentes” (um pouco como o livro de Quenau Cent mille milliard de poèmes, com os seus dez sonetos potenciados pelos cruzamentos permitidos pelas tiras). Se pensarmos em Borges, será menos aparentado com o seu Manual de Zoología Fantástica (escrito com Margarita Guerrero e editado em 1957 precisamente pelo Fondo de Cultura Económica, que também editou a versão original deste mesmo livro) do que com aquela taxonomia prevista no Emporio celestial de conocimientos benévolos , em que “los animales se dividen en (a) pertenecientes al Emperador, (b) embalsamados, (c) amaestrados, (d) lechones, (e) sirenas, (f) fabulosos, (g) perros sueltos, (h) incluidos en esta clasificación, (i) que se agitan como locos, (j) innumerables, (k) dibujados con un pincel finísimo de pelo de camello, (1) etcétera, (m) que acaban de romper el jarrón, (n) que de lejos parecen moscas.” (em “El idioma analítico de John Wilkins”). Da ordem restrita e zoo-lógica entramos num campo de permutação livre e ludo-lógica.
Outras experiências análogas, e até mesmo encontrando-se afinidades a nível do estilo e técnica dos desenhos de Castán, encontrar-se-ão, por exemplo, nas repetidas “metamorfoses” de animais de Grandville ou no Bestiario Moderno ou Cos’è un mostro, de Domenico Gnoli (de 1968). Mas o gesto de Gnoli é o de amalgamar criaturas existentes num só corpo, de um modo indistrinçável e concluído. O valor deste livro é passar a responsabilidade, digamos assim, da construção dos monstros, para o seu leitor, o qual, pelas razões apontadas acima, tem obrigatoriamente de assumir um papel activo. Não há como ter um papel meramente passivo na sua leitura (o qual, de qualquer forma, é impossível em termos absolutos, a passividade na leitura é a não-leitura e qualquer grau de leitura é logo à partida activo, interactivo, dialogante, imanente ao momento e transcendental às circunstâncias a um só tempo, etc.).
O enquadramento ficcional das viagens e descobertas do professor Revillod reveste-se daqueles pequenos truques apócrifos a que nos habituámos de Verne a José Carlos Fernandes, mas que em pouco fortalecem os laços intrínsecos do que o livro já encerra. É relativamente secundário, ou um apêndice. A intervenção textual, presumimos que toda de Murugarren, não se cinge somente às sílabas que compõem os nomes dos animais de base (ELE-FAN-TE ou CA-SU-AR) e os transformados (ELE-SU-VI), como ainda às descrições biológicas associadas a cada parte do animal, que poderá levar também a associações paradoxais: “pernilongo singular/de corpo adiposo/do mundo civilizado” ou “animalito gracioso/de porte majestoso/companheiro do homem”. Em si mesmas pequenos exercícios de escrita maquínica, de acasos poéticos e sugestivos, são ambas ordens de recombinação sinais do gesto adâmico sempre repetido.
O livro em si é como o Rubicão, correndo de uma forma mesmo que não o atravessemos. Mas ao abri-lo, alea jacta est.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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Etiquetas: Ilustração
6 de novembro de 2009
Amatlan. Baudoin (l’Association)
Ainda que este livro tenha sido publicado em 2009, ou seja, logo depois de L’Arleri, reporta-se a uma experiência cronologicamente anterior, a saber, uma viagem ao México, sobretudo à vila que dá o nome ao livro, entre Dezembro de 2007 e Fevereiro de 2008. Isto é importante na medida em que as experiências pessoais de Baudoin, e a sua leitura pessoal dessas experiências, a sua transformação em matéria de expressão, as tornam significativas e passíveis de (re)integrar a nossa própria interpretação. Mais, no caso particular de Baudoin, em que a ideia do “Poema Contínuo” é por demais programática e significativa, no momento em que nos tornamos leitores de Baudoin, mais do que somente leitores dos seus livros, cada um deles torna-se parte inextricável de um corpo a ler em conjunto, cada um deles ilumina o próximo e o anterior.
As ideias que se herdam de modo imediato da leitura de L’Arleri para Amatlan é a presença da morte. Se no anterior livro Baudoin se fazia representar, auto-fictivamente, pelo velho pintor centenário, aqui emprega uma ou duas estratégias já suas conhecidas: o homem de costas, o homem ausente, ou o sósia jovem (neste caso chamado Mathieu, “porque o autor amou esta personagem um dia”, referindo-se a livros anteriores, como Le Premier Voyage, Mat?,), o menino-de-dedo-na-boca... Mas há uma inflexão em direcção à morte.
O próprio Baudoin torna explícitos os problemas da(s) matéria(s) recorrente(s): “Outra vez, outro livro. Outra vez?... Um caderno de viagem?”; e, mais à frente: “Outra vez, outro livro... Para dizer o quê? O Caminho? O meu Caminho? Quantas vezes direi outra vez o meu caminho?”. O caminho remeterá os leitores assíduos de Baudoin para Le Chemin de Saint-Jean, que fora o caminho do seu pai e agora é o seu. Ou para todos os livros que remetem para um caminho que ele foi criando por entre as autobiografias em banda desenhada: em Nice, no Canadá... nas viagens mais curtas... O caderno de viagem remeterá não apenas para alguns dos seus livros mais propriamente “de viagem” (Alexandrie, Alexandra e Araucaria), como também para a dimensão material de alguns dos seus livros, quer aqueles dedicados ao desenho enquanto prática, quer aqueles que remetem a uma materialidade especial (a primeira edição de Le Chemin, de novo), quer ainda a este mesmo título, cujo objecto, oblongo, com um desenho a toda a volta da capa, recordará precisamente um caderno de esboços.
Os desenhos de Baudoin encontram-se num parco equilíbrio entre aquele desenho exacto e minucioso que pretende transmitir o mundo com a máxima correcção possível, mas informado pela emoção em tumulto do artista (os desenhos de Constable de Suffolk poderiam ser trazidos à colação), e um outro de uma expressão quase livre – a total liberdade expressiva é impossível, ou então seria ora intransmissível ora aterradora –, espontânea, que pretende ir além das regras do que se pode confessar. Mas Baudoin trabalha num território muito específico, a que se dá o nome de banda desenhada, e mesmo que estas sejam folhas soltas e desirmanadas de um original caderno de campo, elas foram reagrupadas, repaginadas e reapresentadas numa forma que se pretende legível, significativa. Uma banda desenhada. E há outros largos trechos acompanhados por textos verbais, escritos, histórias, diálogos. E há outros registos ainda segundo as regras mais clássicas da banda desenhada. Tudo isto compõe um só corpo, interpretável enquanto texto coeso e uno, que responde pelo título.
A viagem a este México está associada à visita de uma amiga, invariavelmente amante, mais jovem, de Baudoin. Baudoin explora em Amatlan profundamente aquilo que ele chama de “abismo”: não apenas o abismo que o separa enquanto francês do México real que visita, mas também aquele que o separa a ele, velho de 65 anos, da nova amante, Neige, de apenas 30. A diferença de idades entre ambos faz tornar esse abismo mais vincado, cuja imagem é devolvida sobre a forma de uma sombra, a sombra da morte. Estará Baudoin a sentir-se próximo de uma inevitabilidade, que lança a sua sombra na obra, que se verifica em L’Arleri através daquela auto-ficção do velho? O modo como pensa a morte é parte inextricável de Amatlan, e ela estará presente quer figurativamente, quer nas dobras dos diálogos estabelecidos com os leitores/narratários e com as outras personagens/interlocutores, quer ainda na presença de elementos que podem ser vistos como seus representantes (psicopompos, portais, espaços de passagem, jamais cruzada): o par de cães, o(s) homem(ns) de saco às costas, as tremendas e imensas raízes de árvores gigantescas, os caminhos por entre as montanhas exploradas somente até aos primeiros sinais da noite, os jardins de cruzes sem corpos sob a terra, o tiro imaginário que dá à amante como sinal de ciumeira idiota inconcretizável, as borboletas, o diálogo com o seu duplo mais jovem (ecoando um conto de Borges, cuja morte estava sempre também presente na escrita?).
Nada disto pode surpreender se tivermos em conta o papel que a figura e a ideia da morte assume na cultura mexicana, que tem raízes pré-colombianas e que exerceria o seu interesse em artistas populares como Posada ou eruditos como Rivera, em escritores com Lowry. Aliás, a deusa da morte azteca, Mictecacihuatl, aparece na forma em que aparece na pintura de Diego Rivera, Sueño de una tarde dominical en la Alameda central, como uma dama adomingada. Esta pintura é copiada parcialmente pelo autor desta banda desenhada, com Neige substituindo Frida e Baudoin, como uma criança com rosto de velho (e não o da de Piero), no lugar da criança anafada do original... Tendo em conta que, mais tarde, o protagonista sente vontade de chorar porque uma criança indígena o olhou como um estrangeiro, esta inscrição estranha num mural que tentava criar uma interpretação ou visão da história do México acaba por surgir com o processo falhado em Baudoin em ser tornar o “mesmo” no espaço do “outro”, isto é, em que Baudoin continua a ser um outro, apesar do seu desejo de não o ser. Uma confirmação desse falhanço.
Se falei de borboletas acima, é por estas constituirem um símbolo para as culturas autóctones das almas dos mortos, e a traça era o animal e nome da terrível deusa Itzpapalotl. As borboletas surgem num episódio no qual o protagonista masculino (encontramo-nos num momento em que a identificação com o próprio Baudoin, logo, em conjunto com a ideia de autobiografia que Neige ataca, são postas em causa) escorrega numa pergunta ridícula – “pergunto-me para que serão elas [as borboletas] úteis?”, ao que Neige responde “são úteis para mim”. E a imagem que se segue faz concatenar essas linhas soltas numa imagem sintética poderosa.
É hábito de Baudoin operar a reintegração de elementos separados da observação e experiência, e essa estratégia volta a surgir aqui. Numa só figura [a que se vê aqui ao lado] estão reunidas uma escultura de um autor mexicano contemporâneo, Sergio Hernandéz, La muerte sobre ruedas, que havia mostrado umas páginas atrás [imagem mostrada acima]. Mas a cabeça está “aberta” (como as personagens das Voyage), e dela brota uma imensa borboleta. Ao lado, merendando, as três amigas (as três Graças? As Parcas? Outras?; tendo em conta a insistência de Baudoin no “eterno feminino”, o trio das mulheres poderá assumir qualquer papel..). Que representará então essa figura à direita? O próprio Baudoin, transfigurado numa espécie de auto-ridiculização? A sombra que os assombra? Um símbolo qualquer que espera por uma interpretação esclarecedora? Toda a cena nos surge como uma espécie de Le déjeuner sur l’herbe invertido, em que as figuras femininas estão em maior número, vestidas, e o homem solitário está na sua mais descarnada natureza.
Um outro ponto desta estratégia de repetição e diferença é o retorno do menino-de-dedo-na-boca, como uma consciente revisitação da memória pessoal de Baudoin, quer enquanto pessoa quer enquanto autor de bandas desenhadas (a origem plenamente exposta dessa personagem-símbolo encontra-se em Passe le Temps). Uma espécie de leitmotiv ou de assinatura geral do autor para que se compreenda a continuidade do seu projecto, da sua obra em sentido próprio.
A presença da voz feminina, do “outro”, que esteve ausente em L’Arleri, está aqui presente, pela introdução dos escritos da amiga jovem, Neige Sinno, ao longo de oito páginas, que respondem a relação com Baudoin, e ao modo como ele entende que deve fazer representar as suas experiências – as quais, mesmo que partilhadas, não são idênticas àquelas sentidas por aqueles com quem as partilha. E é nessa fronteira, nesse abismo, que emerge a identidade de cada um, inalianável.
A morte, o sexo, as figurações, as questões de desenho, estão todas, novamente, em Amatlan. O próprio fecho, ou desfecho, deste livro, recapitula e reemprega frases anteriores, fazendo incluir nelas novos sentidos. Baudoin é muito próximo daqueles poetas que, como António Ramos Rosa, ainda que se limitem a um número circunscrito de palavras (e riscos e sombras e manchas), conseguem desenhar um bem contornado círculo no interior do qual se adensa tudo e todos.
Publicada por Pedro Moura à(s) 9:40 da tarde 0 comentários
Etiquetas: Autobiografia, França-Bélgica
2 de novembro de 2009
Pachyderme. Frederik Peeters (Gallimard)
A propósito da leitura de Lupus, em que não encontrávamos instrumentos de desenvolvimento particular em Peeters, posição a qual, se bem que tenha sofrido inflexões mínimas, se mantém no seu curso, citámos um episódio de outro livro do autor, em que havia surgido um rinoceronte numa cena aparentemente banal, lógica e real, servindo de factor não-diegético da projecção das expectativas ou medos das personagens.
A palavra a que recorremos então, entre aspas, era a de “surrealismo”. Usualmente esta palavra, quando usada ao desbarato, é aplicada sobre algo que não compreendemos, quando elementos que surgem numa plataforma qualquer – uma obra literária, cinematográfica, de banda desenhada – não parece contribuir para um significado consensual, partilhável, verbalizável de um modo descomplicado. Mas o programa anti-racional, fortemente construído sobre as teorias de Freud e bebendo (demasiado) do Simbolismo oitocentista, tanto provocou a criação de acasos felizes, como de bizarrias endomingadas e de genuínas raízes do absurdo e do incómodo.
Apesar do seu aspecto ou superfície de concatenação de elementos díspares, Like a Velvet Glove Cast in Iron, de Daniel Clowes, acaba por obedecer a um programa de clareza, causalidade e programa narrativos. E se Pachyderme parece, numa ou outra curva da trama apresentada, querer construir-se através da acumulação de imagens ao acaso, de elementos díspares, de elos inassociáveis, ao longo da proximidade da sua resolução percebemos que tudo se subsume a uma história linear. Aliás, o movimento da protagonista, Carice Sorrel – caminhando de uma estrada onde houve um acidente automóvel, através do bosque que a separa do hospital e, depois, no interior deste último, a travessia dos seus corredores e quartos – aponta precisamente à causalidade mecanicista dos eventos representados. As imagens deslocadas para territórios inesperados que vão surgindo – as crianças “negras”, os animais empalhados regressando à vida, o estranho e líquido agente secreto, o modo complicado como se tecem as memórias de todas as personagens, as analepses, e as projecções fantasmáticas de Carice – não criam simples metáforas visuais, nem meros acidentes de expressão, mas sim uma constelação de significados simbólicos cuja chave nos é ofertada no seu fecho, tornando-os portanto nisso mesmo, símbolos. Mas mal o sabemos, eles desvanecem-se enquanto verdadeiramente significativos, isto é, fortes. Não se tornam traumas para o leitor, mas traumas explícitos e resolvidos da personagem.
Em termos literários, esta pequena obra também nos remete para uma outra, cinematográfica. Aliás, poderíamos mesmo dizer que esta é uma banda desenhada “cinematográfica”. Todavia, é preciso que expliquemos o que isso significa. As maias das vezes, quando um filme qualquer apresenta características de fraqueza em termos do desenvolvimento das personagens, ou em que a trama acaba por seguir meia-dúzia de princípos que de tão clássicos se tornam de papelão, alguns críticos dizem ser “de banda desenhada” ou “aos quadradinhos”, como se esse apodo fosse suficiente para compreender um decréscimo (substancial) da qualidade cinematográfico da obra em questão. Obviamente que esse uso denuncia mais uma maior ignorância, por vezes atroz, do crítico de cinema em relação à banda dedesenhada do que uma capacidade de ajuizar sobre a obra em si. Mas poderíamos inverter os factores e utilizar essa palavra para dar conta de autores que, em vez de utilizarem todos aqueles instrumentos específicos e inerentes apenas à banda desenhada que têm à disposição, tentam uma imitação “em papel” daquelas outras disposições do cinema que, claro está, jamais poderão imitar em todo o seu dispositivo e qualificações tecnológicas, cingindo-se somente a uma organização dos elementos narrativos (numa fundação de princípio-meio-fim), a uma distribuição equilibrada de papéis, a uma exploração de conteúdos que atravessarão uma fácil transposição, caso possa vir a ser “optado” para adaptação. Poderemos, então, dizer que Pachyderme é uma obra cinematográfica.
Mas há uma associação cinematográfica que poderá ser vista como um factor de fortalecimento deste livro. Pachyderme, dado o seu tema, que apenas aos poucos se desvenda e torna claros os desvios que entretanto testemunhamos, irmana-se com O Ano passado em Marienbad, de Resnais e Robbe-Grillet. Eleger um edifício grandioso (neste caso um hospital) como metáfora do limbo das almas, labirintizar os seus corredores e andares num espelho da confusão das personagens em busca de um qualquer sentido, e prever na rede de encontros proporcionada alguma hipótese de redenção são os sinais que os aproximam. Claro está, no caso do clássico da Nouvelle Vague/Nouveau Roman procura-se atingir um espaço de indeterminação quase absoluto através das figuras da compossibilidade e da metalepse. Estas figuras estão ausentes neste livro, pela sua mecanicidade. Pachyderme preocupa-se com uma maior clareza, e uma redenção, ou felicidade, recuperada verdadeiramente.
Ainda que possam emergir sub-temas de importância moderna, como a sexualidade livre, a expressão da feminilidade (ambos explorados aravés de mecanismos visuais que tornam visível o tal programa obviamente freudiano do surrealismo, com todos os seus getos banais do choque anti-Católico dos seus autores), todas as questões do pós-guerra, parecem mais condimentos para “arredondar” a história central, que é o de perseguir e alcançar um sonho de expressão pessoal da parte de Carice, do que encontrar neles um caminho que pudesse vir a ser explorado e que constituísse os seus contornos principais. Nesse sentido de cinema, então, este livro seria um “feel-good movie”. Não é um peso negativo, simplesmente arrasta-o para um território de uma normalidade, de um naturalismo que confirma o que afirmámos atrás, em relação ao juízo de valor sobre Peeters que se mantém no seu curso. Importa porém explicitar quais as inflexões a que nos referimos. Peeters mantém, ele mesmo, a esmagadora maioria dos seus instrumentos. As figuras humanas vogam entre o estilizado e o realista, a introdução da cor leva-o mais ainda para o centro do espectro franco-belga classicizante, a composição das páginas confirmam o seu propósito de narrativa absoluta. Um domínio de clareza, não de desvio. Associado a esta história, a clareza ganha ainda mais visíveis contornos. Mas a claridade e a visibilidade invalida outras visões...
Publicada por Pedro Moura à(s) 7:18 da tarde 0 comentários
Etiquetas: França-Bélgica
Quelques jours en France. AAVV (Casterman)
Os problemas inerentes a esta publicação são os mesmos que stiveram presentes na antologia que imediatamente espelha esta, Corée 12, a que haviam estado presentes também em Chine. Regards Croisés. Os primeiros dizem respeito ao trabalho editorial, o qual, cingindo-se àquele grupo de autores coreanos que têm já uma relação com a editora, não apresentam uma imagem variada e forte da cena contemporânea da banda desenhada coreana, em franca expansão em tempos recentes, quer em termos de produção nacional quer em termos da sua exportação internacional. Também no que diz respeito aos autores franceses há uma procura relativamente limitada por autores capazes de uma resposta satisfatória, rápida e que não apagasse em demasia os jovens autores do país convidado. Mas se em Japon 17 tinhamos ombros a ombros nomes comos de Sfar e Igarashi, Matsumoto e Guibert, Neaud e Hanawa (e todos com histórias que não apenas cumpriam a sua função – dar conta de uma “visita” ao outro país – como expandiam o valor dos próprios autores), aqui temos toda uma série de nomes de segunda linha em várias das suas dimensões. Em suma, todo o perfil geral é já de si relativamente apagado, aumentando a sensação de termos em mãos um projecto que se têm de terminar por razões de marketing e política, mais do que pela subjacente vontade de se expressarem.
De facto, se tivermos em conta apenas as histórias dos autores sul-coreanos, ficaremos com uma imagem muito pobre das suas capacidades: duas histórias (as de Suk, Jung-Hyung e de Kim, Soo-Yong) são praticamente idênticas, colocando frente-a-frente dois campos contrários (representando de forma pouco subtil o olhar ocidental e o oriental) para depois se chegar a um empate ou onde ambos ganham (o prémio da amizade). E se num caso se tratam de dois artistas desenhando-se mutuamente em Montmartre (mais oui!), noutro são dois grupos de B-boys na plataforma de metro a “batalhar”. Kim, Dong-Hwa, cuja trilogia Histoire Couleur Terre (nesta mesma colecção Écritures) se reveste de algum valor em termos de construção histórica da Coreia, de emoção e construção de personagens que sobrevivem, apresenta aqui uma pequeníssima fantasia em torno da pintura Angelus de Millet, que acaba por se tornar uma fraca realização de sonho. Oh, Se-Yong e Lee, Hyeon-Sook mostram-se fascinados com a cultura francesa ou com as associações que ela permite, o primeiro ligando o prazer de tontura do tabaco à visão de Van Gogh, e a segunda com uma fantasia adolescente que mistura as séries históricas dedicadas ao reino de Chosun, na Coreia, e as tramas novelescas da corte francesa em Versailles antes da Revolução Francesa (via Sofia Coppola, claro está). E Doha apresenta uma história curta, não desprovida de estratégias interessantes em termos de ritmo e não-ditos, mas o seu estilo infantil e a homenagem a Hergé fazem demolir a possibilidade que haveria de tornar essa história na primeira pessoa numa experiência transmissível, e acaba por ser mais outra fantasia banal. Ou seja, nenhum deles acaba por realmente demonstrar uma forma de mergulharem de um modo pessoal na cultura a que foram convidados... mas acabam por somente criar pequenas fantasias.
Quanto aos franceses, são apenas quatro. Gabrielle Piquet elabora uma história em torno de um caso de pedofilia, o que não se percebe se é para alimentar a continuidade de uma certa ideia feita se é de facto para criar um espaço de diferenciação do tema – viagem, encontro de culturas, “alguns dias em França”, etc.; Max de Radiguès conta-nos um pequeno episódio de umas férias de Verão, para que se crie as condições de uma nada subtil ideia sobre o preconceito, as diferenças nacionais e as circunstâncias que as podem ultrapassar.
As únicas excepções a esta colheita são Bastien Vivès e Anne Simon, que são precisamente aqueles que têm alguma experiência em fazer contribuir pequenos relatos para antologias mantendo, a uma só vez, as suas próprias vozes criativas e uma capacidade de responder ao desafio específico no “cumprimento do programa”. Apesar de também se inscrever no domínio da fantasia, eventualmente um sonho acordado ou uma projecção mínima, Vivès constrói uma brevíssima e lacónica história de amor interrompido (muito próximo do tipo de humor e surpreendentes desvios das histórias na Ferraille Illustré). Quanto a Simon, e sem querer reduzir a autora a uma autora de banda desenhada feminina por eleger temas “femininos” ou “feministas”, a verdade é que cria o seu relato dedicado a uma mulher negra sul-africana cujo corpo foi preservado no Museu de História Natural, e que era conhecida como a “Vénus Hotentote”. Apesar de se basear numa obra académica, o facto de ter escolhido esta mulher, devolver-lhe o nome, tecer a sua história, colocá-la numa rede de relações, quer as exploratórias quer as de amizade, Anne Simon não procura somente criticar os fundamentos racistas, misóginos e até perversos (sigo uma lista da autora) que pautaram os passos da “primeira antropologia”, como pôr em questão o modo como a identidade francesa (e europeia) foi construía sobre mitos de progresso, cientificidade, e superioridade, e, enfim, como fazer também um gesto de devolver a dignidade a essa mulher.
Em “alguns dias em França” vê-se pouco, mas esperar-se-ia ver-se fundo. O programa prometia, o projecto mune-se dos melhores instrumentos e condições, mas os seus frutos são um tanto ou quanto desequilibrados face às expectativas desse diálogo.
Publicada por Pedro Moura à(s) 6:57 da tarde 0 comentários
Etiquetas: Antologias, Coreia do Sul, França-Bélgica