31 de agosto de 2012

Get Jiro! Anthony Bourdain, Joel Rose e Langoon Foss (Vertigo)

Não é totalmente despropositado ver neste livro mais uma oportunidade de negócio, um aproveitamento de tendências comerciais contemporâneas, do que um verdadeiro gesto de vontade autoral, algo que se consubstanciasse numa energia expressiva necessária. Afinal de contas, o nome que encima a capa do livro é o do famoso chef Bourdain, destacado dos demais companheiros da equipa criativa (o co-escritor Joel Rose e o artista Langoon Foss), aproveitando a fama e o peso mediático deste. Tratar-se-á, portanto, de uma mera estratégia da parte da Vertigo em diversificar o seu público-base, tentando conquistar franjas até agora mais ou menos alheias à banda desenhada, ou pelo contrário, uma tentativa de fazer com que a banda desenhada se diversifique em direcção a novas preocupações temáticas? É possível. Mas a leitura de Get Jiro! também revelará a própria consciência que o(s) autor(es) têm dessa situação, e exploram-na com alguma distância irónica.
Será fruto de exasperação para alguns a crescente moda da culinária, nas suas mais diversas prestações e escolas, um pouco por todos os circuitos mediáticos. Nunca houve tantos programas televisivos sobre cozinha, documentários sobre cozinhas do mundo, concursos, livros, a proliferação de termos até há pouco tempo apenas conhecidos pelos especialistas, e a própria disponibilização e variedade de instrumentos, ingredientes e cursos breves. Pessoalmente, apesar de considerarmos quase todos os concursos televisivos abjectos e conducentes à indignidade humana, pela forma redutora como transformam tudo em caminhos unidireccionais, unilaterais, competitivos (e não colaborativos), etc., consideramos que a aprendizagem da culinária pode, na sua melhor dimensão, ser uma forma de aprendizagem cultural, um entendimento de tradições locais e autóctones, mas também do outro, e ainda uma indagação de si-mesmo, procurando-se ser-se mais atento, ou passe o pleonasmo, sensível às sensações, etc. E, essa virtude inigualável, o fomento da comensalidade. No fundo, algo bem mais nobre do que os princípios usualmente associados à dependência nacional do futebol e suas novelas, da vida privada e mesquinha dos “famosos-por-substantivo” (isto é, aqueles que são famosos por serem famosos), ou a cada vez mais humanamente esquálida “classe” política. Dito isto, compreendemos que esta cultura da cozinha nova se pode tornar igualmente um factor de diferenciação classista – tirando partido de toda aquela metáfora fundada na estética de Baumgarten, no seu sentido primário associado à sensualidade do corpo antes de atingir as artes visuais, do “gosto” - e, tal como o discurso em torno dos vinhos, rapidamente se podem tornar elementos de um cachet mais falsificado que genuíno. Poderes fátuos, portanto.
Get Jiro! parece estar consciente de todas estas dimensões sociais. A narrativa passa-se numa futura e hipotética Los Angeles. Mas em vez da sombria e pós-tecnologica L.A. de Blade Runner, o que encontramos é uma cidade não só socialmente estratificada como repartida em duas facções, como se se tratassem de territórios controlados por barões da droga. No caso, porém, a divisão é feita entre dois grandes líderes da culinária: o chef Bob, da Global Affiliates, associado à cozinha internacional, molecular, haute/nouvelle cuisine, etc., cheia dos salamaleques de especificidades culturais, novas tecnologias, iguarias raras, mesmo que isso signifique o mau-trato dos animais, a sobreprodução, a exploração de economias menores, ou a absurda comercialização transglobal de certos produtos (o lema dos restaurantes é, aliás, “As melhores coisas/por quaisquer meios”), e a chef Rose, ligados aos movimentos vegan e a toda uma família alargada de preocupações ecológicas, políticas e económicas, sobretudo dedicados a uma produção e consumo localizados. O maniqueísmo é por demais óbvio, e o jovem chef de sushi, acabado de chegar à cidade e com um passado misterioso que jamais é revelado, não só se encontrará no meio dessas batalhas como será ele mesmo objecto cobiçado pelas duas “facções”. De certa forma, seria imaginar que, tal como em Battle Royale a rede escolar poderia seguir regras instituídas por certos reality shows (Survival, et.), teríamos no actual Masterchef o princípio de organização social por vir. Não seria despropositado ver nesta tendência analogias com certos movimentos musicais (o rock, o punk, e a que L.A. está aliada historicamente) associados a certas ideias de revolta social (ou de um tipo de expressão de revolta), mas as modas de cozinha não são usualmente rebeldes, sendo antes instrumentos desde logo de uma qualquer inscrição estratificada.
É impossível não aceitar que a influência quase directa, pelo menos do núcleo da diegese, venha do documentário Jiro Dreams of Sushi (real. David Gelb, 2011), sobre o chef de um restaurante japonês único, detentor de 3 estrelas Michelin, Jiro Ono. Esse é um documentário simples, algo delimitado, mas cujo propósito é construir o retrato de um homem que dedicou toda a sua vida, e procura seguir regras de rigor, exigência e excelência em tudo o que faz, desde a limpeza do estabelecimento à suprema qualidade dos produtos empregues, do exigente treino de todos os empregados – durante anos e anos a fio – aos pormenores ritualísticos da confecção do sushi em frente aos clientes. A visualização dos elementos que compõem o documentário iluminarão sobremaneira as opções narrativas, e pormenores anedóticos, do livro. Por exemplo, o restaurante do Jiro real fica na estação de metro de Ginza, e tem apenas 10 lugares, o que à partida nos faria descrer da sua qualidade e fama. Mas a marcação de um lugar, e o seu pagamento, impede logo que qualquer cliente possa “entrar desprevenido”. Esta diferenciação das mais usuais expectativas de restaurantes de luxo espelha-se neste livro pela localização do restaurante do Jiro ficcional num banal complexo de pequenos restaurantes à beira da estrada nos arredores da futura Los Angeles, fora do seu “círculo principal” (controlado por barreiras de controlo, como impedimento social e económico). A tensão palpável que se nota no documentário, ao termos um mestre desta culinária a dar os últimos mas decisivos toques no que nos é servido a escassos centímetros do nariz, é transformada depois no livro numa tensão num grau maior, precisamente pelo filtro dos filmes de gangsters, mormente pela romanticização pós-moderna e ultraviolenta à Tarantino. Questões de etiqueta e identidade do sushi (não colocar molho de soja no arroz, não deixar os pauzinhos espetados nas malgas, não pedir “California rolls”, etc.) levam a reacções de atrocidades guerreiras. Por outro lado, o humor inerente a todos os exageros verificados na história, e o tema, enfim, também são reminiscentes ou pelo menos comparáveis ao inefável “ramen western” Tampopo (real. Juzo Itami, 1985), na sua busca dos “ramens perfeitos” e os inúmeros sketches em torno da cultura gastronómica. Todos aqueles discursos tipificados e ilusórios de “honra”, “códigos”, à la samurai, etc., que pululam em torno dos mitos nipónicos, encontram-se aqui exacerbados, mesmo que entrosados noutros géneros.
Aquela disputa entre os defensores da cozinha internacional e os vegans não deixa de ser algo desequilibrada. Apesar de ambas as escolas serem retratadas como exageradas e hipócritas, parece-nos que, no final de contas, a primeira é vista com maior simpatia (afinal de contas, Bourdain pertence mais a essa escola do que a outra), e a segunda associada a toda uma panóplia de movimentos diversos (cita-se mesmo os Occupy, por exemplo), por sua vez vistos como tendências passageiras, hipócritas, iludidas e inconsistentes. Contra o exagero desses dois pólos, a figura de Jiro surge como uma espécie de paladino (sushi samurai é o descritivo repetido nas recensões) a uma maior diversidade e liberdade de escolha, e que encabeçará uma revolta de produtores menores, cozinheiros de menor escala, etc., desde um velhote vietnamita de sopas pho a um chef francês tradicional, à escala familiar (e vítima do feudo).
É difícil compreender a quem pertencerá o trabalho de ideia original e argumento, mas pela distribuição e ênfase dos nomes, estaremos em crer que as ideias serão de Bourdain e a planificação, pelo menos em parte, serão de Rose, com basta experiência, sobretudo editorial, neste campo. Bourdain tem a sua própria cultura de banda desenhada, sobretudo do underground dos anos 1970, mas falamos aqui é da escrita específica que leva às estruturas visuais do texto final. Todavia, se formos mais longe que o notório “cool” desta narrativa, uma análise cuidada revelará que estruturalmente o livro apresenta alguns desequilíbrios (o uso, apenas uma vez, de uma legenda de um narrador externo, que leva à sua dispensabilidade quase total; uma caracterização das personagens que nem sempre nos parece ser a mais ponderada; situações que não são jamais resolvidas, num caso demasiado óbvio de “querer manter o mistério”, mas por isso sem subtileza; e algum abuso de clichés, que só podem ser aceitáveis se se considerar este um exercício ligeiro). Já no que diz respeito à camada visual, digamos que o trabalho de Foss é competente, sem ser brilhante. Como grande parte da tendência contemporânea da banda desenhada norte-americana, a composição é feita um pouco ao acaso, com raras excepções onde se procuram formar estruturas mais dinâmicas, interessantes e significativas. A figuração plástica e ligeiramente estilizada (abonecada) remete para os corpos de um Corben (de que Bourdain é fã, pelos vistos), por exemplo, sem esquecer uma larga influência da mangá mais clássica, sobretudo nos rostos (o chef Bob parece um Clark Kent mais velho), mas o uso de establishing shots, planos gerais e cheios, encaixes de vinhetas de planos de pormenores extremos, muitas piadas privadas, textuais ou visuais (desde o stand no mercado de peixe do capitão Haddock às sapatilhas tabi de Jiro), cenas de acção sem texto, e as várias estratificações de informação visual nas imagens, aproximá-lo-ão – também pelas cores vivas de Villarrubia – de um Seth Fisher ou um Geof Darrow, mas sem a vivacidade e dinamismo do primeiro nem a compulsão ou brio de detalhe do segundo.
Get Jiro! é, portanto, um curioso e divertido exercício de cruzamento de géneros e tendências. Violento (gore, mesmo, nalguns momentos), procura ser sensível a toda uma série de questões – desde as ecológicas às de respeito para com as várias culturais globais, passando pela identidade cultural que passa pela culinária (questões por vezes de grande sensibilidade) -, e, como não poderia deixar de ser, é condimentada com breves cenas “enciclopédicas” (empregamos um termo de Fresnault-Deruelle), na qual se demonstram de uma forma esquemática, mas aparentada às “receitas filmadas”, algumas receitas (associando este título, mesmo que tenuemente, a coisas como Oishinbo e/ou The Art of Pho, ou mesmo Le gourmet solitaire, de Taniguchi). Há dois momentos também em que o prazer sensorial de Jiro, face a cozinha dos outros, se expressa graficamente, mas infelizmente essa não será uma das dimensões mais exploradas. Toda a narrativa está imersa, ainda assim, no conhecido humor descontraído e informal de Bourdain, que torna este livro mais um entretenimento bem construído do que outra coisa.

29 de agosto de 2012

Dois livros de Batman (DC Comics)


Como já havíamos explicado noutro momento, a falta de uma mais continuada leitura de livros do mainstream de super-heróis deve-se à dificuldade em acompanhar todos os títulos, uma vez que a sua economia de produção é protelada, nem sempre se prezar a contenção de uma unidade narrativa (as séries estão sistematicamente a entrar em novas crises, crossovers, reboots, etc.) e raramente escaparem a uma certa gravidade para que se tornem gestos interessantes num panorama mais alargado da banda desenhada. Todavia, não acreditando na existência de um território comum a não ser pela sua descrição mediática, é necessário que se elejam instrumentos específicos para ler esses mesmos títulos, e estar-se consciente e sensível a o que se busca ser sempre diverso a todos os níveis: os seus estímulos, as suas ferramentas de criação de sentido, a tensão que produzem em relação à nossa experiência societal, etc. Daí que seja impensável pensar em termos de uma notação crítica que criaria a ilusão de uma qualquer objectividade (impossível, inexistente), como as “estrelas” ou os “pontos”, por exemplo. Seria grotesco, portanto, querer utilizar os mesmos instrumentos de apreciação críticos que são usados em relação a, por exemplo, uma publicação como Buraco, ou o livro Sobrevida, ou a série Death Note, sobre uma produção deste tipo. Isto não significa que não se possam fazer comparações, ou querer avançar um princípio mais ou menos transversal de apreciação da banda desenhada como um “todo”, que levará porventura a cânones, hierarquias de complexidade, ou meras preferências, mais ou menos perenes ou mais ou menos passageiras, mas é preciso ter cuidado com as qualificações. De uma forma mais circunscrita, devemos antes perguntarmo-nos até que ponto estes títulos trazem um novo tratamento destas personagens e histórias familiares, de que forma empregam uma tradição num tempo contemporâneo ou tendências contemporâneas nesta tradição, etc. Repare-se mesmo como, na capa, a importância e proeminência é dada, em primeiro lugar, à personagem, e não aos autores.

O problema da obrigação em se respeitar a continuidade de publicação - isto é, os eventos canónicos no interior do universo ficcional e que todos os sequentes autores devem respeitar - é que sempre haverá uma interrupção qualquer para a coesão do projecto que houver em curso, e é raro que estes se mantenham o tempo suficiente para serem levados a cabo de uma maneira respeitável. Talvez Bendis seja a grande excepção (com o seu Demolidor e Ultimate Spider-man). Há autores, como Scott Snyder, que trabalha actualmente a continuidade de Batman, que conseguem, nas palavras do autor português Jorge Coelho, “respeitar os leitores”, no sentido em que absorvem a história e não a negam, independentemente das mudanças editorais da casa (The New 52), e não procurando revolucionar as premissas conseguem fazer emergir algo ajuizado. Nos dois casos aqui em discussão, porém, há uma maior liberdade em relação ao espartilho da continuidade. Entendamos, portanto, que jamais é possível ler estas obras (e também os seus derivados, como os filmes) de uma maneira totalmente alheia ao seu contexto maior de produção, circulação e uso, como se faria a um texto de banda desenhada independente destes factores. Há, portanto, na leitura de novos títulos de banda desenhada de super-heróis, uma negociação entre tradicionalismo/conservadorismo e inovação, originalidade e familiarização, e para mais, nestes exercícios de “universos paralelos” ou “mundos outros”, essa negociação é ainda mais circunscrita (e por isso específica).

Parte do prazer em ler estas histórias, então, encontra-se num movimento duplo que não se prende somente com a leitura/interpretação da história em si, mas da sua constante comparação com outras histórias anteriores (e que tanto podem ser exemplos específicos como toda a amálgama de memória de décadas da sua leitura, e outras mais de produção - pois a nossa leitura apenas pode cobrir parte dessa produção, se houver leituras retrospectivas). Quer dizer, é mais ou menos claro que qualquer das nossas experiências, relativas à fruição de arte ou não, é feita sempre num quadro da nossa percepção, memória, vivência, etc., mas no caso dos super-heróis, a malha da intertextualidade é de uma significância extrema (inevitável, mesmo, quase uma qualidade intrínseca a estas personagens). Não se trata de encontrarmos factores que estejam “errados” ou “certos”, tampouco se “funcionam” ou não, mas antes se se conseguem afastar o suficiente para tornar a nova história numa variação curiosa, digna e bem construída, mas ao mesmo tempo deixando visíveis as suas ligações gravitacionais à matéria original, que, na verdade, se vai tornando, à medida que o tempo passa, e no caso de Batman estamos a falar de 70 anos de histórias, uma amálgama de gestos, e não somente dos primeiros trabalhos de Kane e Finger… Como dizia Bat-Mite num episódio da série de animação Batman: The Brave and the Bold, “A história rica de Batman permite que ele seja interpretado de múltiplas maneiras. É verdade que esta [da série de animação] é uma encarnação mais leve, mas não é menos válida nem menos verdadeira às suas raízes do que o vingador torturado a choramingar pela mamã e o papá”. Quer Earth One quer Death by Design apresentam o vingador, mas entre si são bem diversos. O grau de conhecimento e entrega dos leitores destas sagas multímodas são também a matéria que constitui o “capital cultural” muito específico desta sub-cultura (ou seja, quanto mais aspectos subtis se entenderem, mais recompensada é a leitura). Ambos os títulos que trazemos aqui à colação trabalham já em princípios tipificados no interior da economia das “variações” da continuidade oficial (no interior da qual se estruturam narrativas diferenciadas conhecidas por “runs”, quando se referem à participação de um escritor e/ou de um artista particular, ou “storylines” quando se referem a intrigas específicas e com princípios e fins mais ou menos determinados). O princípio que opera Earth One é mesmo o de série, e é idêntico ao da subsidiária, ou “imprint”, Ultimates da Marvel, onde se procura um maior “realismo sombrio” com estas personagens de fantasia. Tal como All-Star, também Earth One opta por juntar escritores e artistas de alto perfil, para se produzirem trabalhos acima da média, mas onde a anterior série era de comic books, neste caso é de livros que se trata, ou em inglês, o termo composto, estranho mas muito específico de Original graphic novel. Death by Design não se integra em nenhuma série propriamente dita, mas muitos dos leitores da DC poderão imaginar tratar-se de uma peça da antiga série Elseworlds.

Iríamos mesmo ao ponto de tecer uma generalização e redução quase absurda (as simplificações são necessárias para a argumentação, mas não a simplificação excessiva), e dizer que o prazer de ler estas histórias teria menos a ver com a apreciação de tramas complexas e estimulantes (como sucede com a leitura das obras de um Naoki Urasawa ou um Hideo Yamamoto), ou “crescimento psicológico/social” das personagens (por hipótese, em Ware, Clowes, Bechdel, Baudoin, etc.) o ou que desfruir da arte dos desenhos (como nos centramos com a obra de Brecht Evens), ou tentar perceber como respondem a questões contemporâneas (políticas, identitárias, etc., como ocorre na esmagadora maioria das bandas desenhadas a que se dá o nome geral de “alternativas”), do que nesse prazer de contínua comparação com essa História. Claro está que todas essas dimensões são analisáveis – por exemplo, a estrutura narrativa de Kidd é bem mais simples e linear que a de Johns, se bem que a de Johns siga fórmulas usuais; ambos pretendem associar Batman a um grau de realismo onde a sua humanidade e capacidade de falhar é patente, mas em que a dimensão social real - se bem que sempre, de alguma forma, reduzida da sua imensa complexidade - é mais marcada em Earth One; e ambos trazem à tona as tensões políticas específicas desta personagem. Apenas a distribuição desses factores é diferente (ou, pelo menos, o momentâneo foco crítico que nos interessa explorar). Uma das estratégias obrigatórias nesse sentido é que as várias personagens famosas da série surjam de alguma forma, ora nos seus papéis habituais, haja que variações sejam possíveis, ora transformados de alguma forma. Até no último filme de Nolan, uma referência a Killer Croc é feita de raspão… Em Earth One, por exemplo, Cobblepot/Pinguim aparece como o Presidente da Camara de Gotham (e o pai de Bruce, Thomas Wayne, é seu concorrente, eliminado eventualmente por razões políticas), e existem vários pontos em que entenderemos surgirem os costumeiros cameos ou referências distorcidas. Os aspectos mais tolos da (história da) personagem também são explorados, como se pode verificar pela presença de cenas, em cada livro, que lidam com o (péssimo) bat-grappler”.

Batman: Earth One. Geoff Johns e Gary Frank (DC Comics)
Geoff Johns, tal como muitos dos mais jovens escritores profissionais da indústria do mainstream de super-heróis norte-americano (por oposição, apenas em benefício da presente discussão, de um autor como Kidd a querer “dar um toque” na mesma indústria), tem que gerir, por um lado, a sua vontade de fã em brincar com as personagens, que vem de anos da sua leitura desde criança – quer dizer, parte da vontade em criar histórias novas para estas personagens nasce do cadinho da sua leitura e fantasia pessoal, tão típica de gerações de autores (a própria indústria dos comic books, desde Siegel e Shuster, nasce com “fãs”, mas à medida que o tempo passa a especialização é maior) - e a capacidade de inovação interna. Johns escreveu muito material, inclusive para os “Grandes Dois”, mas sempre em flutuações constantes de qualidade (recentemente, a colecção Levoir/Público Heróis da Marvel optou por editar dois volumes dos Vingadores com histórias de Johns, maus exemplos quer do que Johns pode criar e do que essas personagens já protagonizaram, por exemplo). Com Gary Frank também como artista, por exemplo, escreveu Superman: Secret Origins, o qual, não deixando de ser um daqueles gestos que se têm de cumprir regularmente ao fim de uns tantos anos depois das “limpezas e reposição de continuidade” (recordando precisamente o Super-homem de John Byrne), não cria uma narrativa má de todo. Enquanto “história definitiva”, para um período sempre a prazo nesta indústria, ela é suficientemente tradicional e até protectora das expectativas da companhia, que deve defender os seus activos patrimoniais, para se tornar icónica num prazo mais alargado (isto é, depois de não fazer mais parte da continuidade em vigor, como agora ocorre no período The New 52). É essa mesma tendência que opera em Earth One, com um Batman que não é idêntico ao que Snyder emprega, mas reformula a premissa de Batman num universo mais contido. Os seus instrumentos são menos fantásticos, são falíveis, as relações entre as personagens são relativamente diferentes (o Alfred desta história é um veterano de guerra que age como mentor, âncora moral, e até mesmo cumprindo o papel do Bruce Wayne de Batman Beyond em relação ao jovem Terry), e a relação entre a sociedade em geral e estas personagens mascaradas, justiceiros-vigilantes que trabalham à margem da lei sofrem tensões de aceitabilidade maior. Isso faz com que as acusações típicas (e merecidas) do papel social dos super-heróis à luz de uma democracia participativa venham à tona, mas não procurem uma solução simples. Acima  de tudo, e este é um dos trunfos de Johns, a importância principal está na relação a nível pessoal entre as personagens, as crises que todas elas atravessam em relação umas às outras, a forma como se descobrem e se deixam descobrir. Para Johns a importância desta personagem em particular, Batman, está a sua densidade psicológica, a forma como seu trauma se impõe e obriga a cumprir o papel que escolheu, etc. (repara-se como a capa opta por uma imagem que remete a um momento de silêncio e integração da dor da perda e, eventualmente, da “promessa” de Bruce; um factor algo estrambólico é Alfred ter na mão uma arma de fogo…). Sabemos já a história toda, e o interessante, e até valor de entretenimento, é vermos como é que esse papéis acabam por ser preenchidos por vias bem diferentes.

Gary Frank é um desses autores que não só é de uma extrema competência na linguagem normalizada deste género, como tem toda uma série de qualidades perfeitas para este projecto em particular. Se as suas composições de página são mais convencionais com uma contida mas significativa disjunção momentânea dessas fórmulas para maior impacto na diegese, há uma enorme atenção para a expressão emocional dos rostos (demonstrando o quanto deve ao recém-falecido Joe Kubert; e o trabalho de arte-final de Jonathan Sibal ajuda perfeitamente a ancorar essas linhas e essa associação). A também contida gestão das splash pages, de sequências de silêncio (tudo isto, possivelmente, co-planeado com Johns) e a forma como cria ritmos cromáticos de cena em cena (graças ao trabalho de Brand Anderson), torna esta uma obra competente, ainda que pouco diferenciada de outras tantas. Não deixa de haver, porém, momentos algo gratuitos de referência. Se Alfred é, nesta história, veterano da Guerra da Coreia - muitas vezes ausente da memória recente dos norte-americanos, mas que permitiria associações à própria tradição da banda desenhada local, como Darwyn Cooke fez em The New Frontier, remetendo a Harvey Kurtzman-, a presença de uma armadura completa de samurai cumpre em demasia um papel deus ex machina despropositado).

Não será inocente, por exemplo, o uso que Frank faz do rosto (ou de um desenho que tem características que remetem ao rosto) de Christopher Reeves, como o havia feito de uma forma mais nítida Em Superman, Secret Origin, para a personagem de Thomas Wayne (tratando-se também de uma colaboração com Johns, e tendo sido este assistente de Richard Donner, é possível que haja aqui uma vontade conjunta). É como se se pretendesse ainda encontrar alguma inocência, ou uma associação a um tempo menos complicado (isto é, sob a óptica do que hoje é feito), no interior da desolação que atravessa o género, cada vez mais acossado nos tempos que correm, que pedem por outro tipo de fantasias. De acordo com a teoria dos géneros, sobretudo do cinema, existe um ciclo mais ou menos repetido nos géneros: um momento experimental, em que se lançam as bases do género, depois uma fase clássica, de cimentação, seguindo-se um período de afinamento, em que se procuram pequenas variações, uma outra fase barroca, em que são essas mesmas características típicas que se tornam a matéria principal das obras, e finalmente uma fase reconstrutiva, em que se revisitam as bases do género mas com uma grande consciência, metalinguística, auto-reflexiva, desse mesmo ciclo (seguimos as lições de Peter Coogan, precisamente para o género aqui em causa). Tanto este como o livro seguinte são criados nesse cadinho, e que recordam novamente a tal tensão ou negociação entre a história longa da personagem e o espaço que ainda pode haver para variações e inovações.

Batman: Death by Design. Chip Kidd e Dave Taylor (DC Comics)
Ao passo que Johns quer “brincar” com as personagens propriamente ditas, com os estratos das suas personalidades que se vão formando ao longo de anos e de entrega a nível pessoal, emocional, Kidd parece mais preocupado com o conceito geral da personagem, e com o nível de impacto simbólico que ela pode ter na sua sociedade que a cria e para a qual também contribui. Batman, aliás, parece-nos ser mais mercurial, apesar de tudo, do que o Super-homem (se bem que este tenha atravessado várias fases em termos de símbolo social, atenção). Se, por um lado, a sua mais breve descrição pode remeter para um fundo ideológico proto-fascista e classista que não poder escamoteado de forma alguma – Bruce Wayne é um filho de classes privilegiadas que prefere combater o pequeno crime em vez de intervir a outros níveis (mesmo que isso seja explorado em algumas histórias, como em Earth One, ou neste livro, mais superficialmente) -, por outro, enquanto personagem suficientemente esvaziada para ser completada pela fantasia dos seus leitores, ela pode servir para outros propósitos simbólicos (veja-se a diferença entre o tratamento cinematográfico de Burton e de Nolan, que devem ser contextualizados historicamente, ou as consequências da imitação do seu universo no mundo real). Kidd, portanto, faz jus à sua conhecida obsessão, de coleccionador, fetichista, em torno desta personagem (a sua reificação de Batman ajuda-nos a compreender melhor o afastamento da personagem e aproximação do ícone); pense-se em Batman Collected. Em suma, contra a psicologia de Johns, Kidd opta pelo cool (repare-se como neste caso, a capa remete a algo mais icónico, simbólico, integrado plasticamente na paisagem).

Não sendo a primeira vez que Kidd escreve para esta personagem – já fizera uma curta para Alex Ross, e trabalhou na série de animação retro Batman: the Brave and the Bold, já citada acima – é a história mais longa e que pretenderia ser um projecto mais coeso. Esperar-se-ia que a concentração de Kidd fosse maior em termos objectuais, e isso é notório. O seu fetichismo vê-se expresso no foco que existe nas maquinarias empregues por Batman e por uma nova personagem propositadamente inventada para esta história, uma espécie de paladino da arquitectura clássica de Gotham, que se encontra em perigo por causa do progresso (de que Wayne é símbolo e motor), uma personagem tristememente chamada Exacto (em português, “x-acto”). No entanto, a descrição da trama parece ser mais interessante que o actual tratamento da mesma. Exacto pretende proteger o edifício, a Wayne Central Station (num momento do livro chamado de “WC Station”, fazendo transparecer um humor algo básico), mas Batman não entende a razão, que se prende com corrupção na construção e na política local. Depois das reviravoltas esperadas, que parecem preencher todos os requisitos dos manuais de escrita de Hollywood, Batman acaba por se aliar à missão, ainda que não ao estilo, de Exacto e, apesar da torre ser destruída, procura-se um final feliz, com uma moral mais forte e tudo. 

O tema é óbvio: a visão do artista versus os interesses corporativos e capitalistas (representados e defendidos, afinal, pelo próprio Wayne/Batman) e a lição é: apenas unindo uma e outros é que se atinge o progresso materialista humano. Dificilmente se poderá ver isso como progressista… O aparecimento do Joker (vejam-se as primeiras imagens na abertura do blog) parece mais uma espécie de obrigação contratual, ou fan-service, do que algo verdadeiramente necessário para a intriga montada (e, para os fãs, perguntamo-nos mesmo se se trata de uma versão particularmente interessante). O uso do rosto do próprio Kidd, com os seus conhecidos óculos de aros redondos, como o novo personagem desta história faz prever uma espécie de jogo auto-referencial e de fantasia do autor (a menos que essa decisão tenha sido exclusivamente de Taylor, mas não muda o efeito sobre o leitor) que apenas traz uma dimensão distractiva à história. Se Kidd é fisicamente uma espécie de Clark Kent, ele não quer “assumir” o papel de Batman, mas de um outro herói cujos instrumentos de acção são diferentes, mas preparados para a colaboração - tal como um designer de comunicação - para levar a “mensagem” avante.

Há um quase consenso dos leitores e apreciadores do livro que a força deste livro reside na sua matéria gráfica. A elegância de algumas páginas é nítida, como esta de Taylor (a segunda da diegese; e compara-se com uma cena análoga por G. Frank, acima). A forma como as divisões se vão operando, em que as segundas unidades se vão subdividindo - primeiro em duas metades verticais, depois a segunda coluna em duas metades idênticas, a segunda das quais num ligeiro desequilíbrio mas podendo entender graus cada vez mais sucintos – e a forma como se constroem imagens especulares, de pormenor, de variação, etc., são sinal do denodo do autor. Aliado a pormenores como o símbolo de Batman surge como um ícone totalmente plano, de duas dimensões, sobre o peito do herói, a escolha por corpos pouco musculados mas graciosos (recordando as opções de Moebius, claro e explícito modelo para Taylor, sempre que enveredou pelo universo dos super-heróis, em histórias, ilustrações e paródias), e de expressões vincadas, essa elegância repete-se variadíssimas vezes. O seu trabalho sem tintas, reproduzindo apenas os desenhos a grafite e acrescentando um controladíssimo trabalho de cor digital, mostra como, pelo menos para este projecto, lhe interessará menos uma contínua espectacularização, típica dos super-heróis, mas antes um equilíbrio entre períodos expositivos, de acalmia e explosivos.

Ambos os livros são excelentes adições à contínua colecção de histórias “alternativas” desta personagem (como alguns títulos da Elseworlds, ou alguns livros isolados, como os ainda soberbos, a nosso ver, Year One e The Killing Joke), mas apenas o tempo dirá até que medida o seu impacto será sentido quer na continuidade oficial ou canónica da história da personagem quer no plano “imaginário”... Mas como escreveu Alan Moore em Whatever Happened to the Man of Tomorrow?, “Esta é uma história imaginária… não são todas?”.
Nota final: agradecimentos a André Oliveira, pelo apoio gráfico.

27 de agosto de 2012

Vários títulos. AAVV (Bags of Books)

Nos últimos anos, Portugal tem visto os gestos editoriais, de apreciação, discussão, criação, circulação e divulgação relacionados com a ilustração “infantil” multiplicados, mas acima de tudo temos visto uma tendência geral para a melhoria desta área em termos artísticos. Nem sempre vemos as melhores alianças entre os textos e as imagens, nem sempre vemos verdadeiras colaborações, nem as melhores “traduções” pela parte dos ilustradores, ou escolhas de integração gráfica dos projectos, mas em termos gerais o balanço é positivo, como se poderá entender, em parte, com a publicação Como as cerejas, sobre a participação de Portugal em Bolonha. O surgimento de novos agentes editoriais é sempre um dos factores mais significativos. (Mais)

24 de agosto de 2012

Buraco #1-4. AAVV

Uma vez que “demorámos” na leitura dos três primeiros números desta publicação, a sua leitura agora à luz do quarto número não pode deixar de fazer revelar algumas interpretações retrospectivas. É possível que, fosse ela feita noutro momento anterior, o nosso discurso procurasse outros instrumentos, delimitasse os gestos de outra forma, mas essa não é mais uma possibilidade. Seja como for, a vertente interventiva, política, de comentário social, é por demais evidente nos trabalhos reunidos nas suas páginas, e que simplesmente se exacerba - inclusive na sua “explosão” ao nível material - no quarto número. (Mais) 

10 de agosto de 2012

Sangue Violeta e outro contos. Fernando Relvas (El Pep)

As vicissitudes da publicação original, no semanário Se7e, que foi extremamente influente na forma como divulgava a informação sobre cultura e música “popular” (num quadro de relativa pobreza a esse nível – como se não o fosse ainda, mas enfim, hoje mais mitigada), não deixam de se fazer notar na própria fabricação das narrativas presentes neste livro. Utilizamos esta última palavra com a certeza de descrevermos o objecto que agora de oferta, mas que levanta alguns problemas de inscrição histórica. (Mais) 

2 de agosto de 2012

The Poetics of Slumberland. Scott Bukatman (University of California Press)

Nota inicial: Ao contrário do que costumamos fazer, este texto é acompanhado de uma entrevista que retoma quase ponto por ponto os argumentos deste texto, incorrendo-se no risco de haver alguma repetição de ideias, leituras, etc.

De certa forma, poder-se-á considerar este um livro não apenas transdisciplinar nos seus métodos como marcado pela variedade dos seus objectos de estudo, com isso desejando menos eleger um corpo de textos a analisar, do que compreender uma área contextual que é atravessada por uma série de questões que vibram entre esses mesmos textos e, portanto, é por eles formada. O autor é muito claro numa frase da introdução, quando diz que o seu livro “se movimenta por entre a banda desenhada, a animação e o cinema de imagem real, localizando instâncias recorrentes não só do ‘estado de animação’ [animatedness, um conceito de Sianne Ngai], mas de máquinas desobedientes, possibilidade plasmática, imagens lúdicas e produção de imagens” (23). Como se compreende, então, estão em jogo desde logo áreas criativas que são mais ou menos compreensíveis como tal (banda desenhada, animação, cinema), como conceitos operacionais que os atravessam e são igualmente reflexo de realidades culturais (as máquinas desobedientes, o estado de animação). (Mais)