Satrapi abomina que a encerrem nesse inexistente género e aprisionante preconceito político da banda desenhada (e de tudo o resto) conhecido como "feminina". E chega mesmo a recusar convites que a integrem em exposições da "criação feminina" desse modo. Não obstante, a autora do ainda não sobejamente conhecido Persepolis resolve revisitar o território das memórias, estas últimas mais recentes, sob o signo exclusivo da mulher. Mais, um grupo de mulheres iranianas, que fala de tudo e mais alguma coisa, de narizes, coisas várias que se cosem, chá, chaves, fugas, mas sobretudo de homens, sejam eles amantes ou maridos, amados ou odiados. O estilo continua simples, a preto e branco, o que não impede Satrapi de nos ofertar com soluções extremas e constantemente surpreendentes num livro feito sobretudo de diálogos. Para um público exigente e aberto à mais pessoal das expressividades, Broderies (Bordados) serve muitos objectivos: aproximarmo-nos de uma realidade que não nos é familiar (o Irão das últimas décadas), abalar as diferenças (o que move as mulheres é universal), alertar-nos (da Internacional Machista) e até mesmo fazer-nos rir com momentos tristes.
(publicado em Mondo Bizarre no. 20)
17 de setembro de 2004
Broderies. Marjane Satrapi (L’Association)
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Enfants C’est L’Hydragon qui passe. Jean-Claude Forest (Casterman)
Das várias definições de Calvino, um clássico pode ser "o que tiver tendência para relegar a actualidade para a categoria de ruído de fundo, mas ao mesmo tempo não puder passar sem esse ruído de fundo". O ponto importante é o pólo "actualidade-ruído de fundo"; Calvino não explicita se se refere à nossa (leitores actuais) contemporaneidade ou à da obra. Seja como for, é justo que na (desiquilibrada) colecção Classiques a Casterman inclua este álbum dos anos 80 do autor de Barbarella. Como todo e qualquer livro, este também tem a sua dimensão de virtuosismo técnico, de propósitos estéticos e de âmbito político, mas talvez não sejam muitos os livros de banda desenhada que alcancem este equilíbrio interior desses propósitos que parecem claros e por isso mesmo mereça esse nome de "clássico". Superficialmente, é a história de um jovem rapaz, Jules (quase-andrógino, nas feições e nos comportamentos), e as relações tempestuosas com uns (a mãe, os "inimigos"), cúmplices com outras (o pai, o velho Original), e outras ainda mais dúbias (com Lili Tambour, uma "andrógina"?). O que se busca é compreender o jovem? Ou os caminhos desaparecidos de uma Europa feita de canais? O por que razão um pássaro de cabeça de vidro pode significar algo mais que um sonho concretizado? Uma obra contida, textualmente densa e de temporalidade curiosa, mas ainda assim uma interessante reminiscência de um tempo que não se dá como perdido.
(publicado em Mondo Bizarre no. 20)
Publicada por Pedro Moura à(s) 6:46 da tarde 0 comentários
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Caravane. Jorge Zentner e Bernard Olivié (FRMK-Frémok)
"O nosso percurso - explica-me um guia - abre uma ferida na paisagem. A esta ferida... alguns chamam-na de caravana." Outro tipo de feridas são os versos, cuja etimologia remete precisamente para os "sulcos" que se abrem na terra arada. E é a poesia, até mesmo entendida como apenas um mecanismo de retórica, que compõem este livro; é como se fosse uma espécie de colecção de aforismos de um homem que atravessa o deserto: intermitentemente, apresentam-se frases curtas numa folha em branco (mas não branca), ou 3 pranchas que estruturam em banda desenhada uma ideia do que é uma caravana, um deserto, a vida. O escritor de Le Bruit de le Givre (com Mattoti) reúne-se mais uma vez com Bernard Olivié, para publicar um livro cuja simplicidade superficial (o desenho, a planificação, os cinzentos) sustenta a pretensão de apresentar literariamente uma vida mais fiel aos impulsos humanos do que aquela que levamos (nós, urbanos). O fim da viagem é como "um fruto maduro que cai de uma árvore seca", mas as compotas permitem uma continuação do seu usufruto. Dependendo dos gostos por compotas com mais ou menos açúcar, é o que Caravane é, umas vezes pejado de sensibilidade, outras de sentimentalismo.
(publicado em Mondo Bizarre no. 20)
Publicada por Pedro Moura à(s) 6:43 da tarde 0 comentários
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Pasolini – Une Recontre. Davide Toffolo (Casterman)
"Que significa ser comunista hoje?" era a pergunta que Nanni Moretti se fazia em Palombella Rossa. A importância estava na absoluta necessidade em revermos quem somos e porque lutamos a cada nova etapa. Igualmente, "quem é Pasolini?" não se trata de uma pergunta a uma ignorância, mas sim a uma intensidade. Toffolo é músico e autor de bandas desenhadas famosas em Itália para um público alargado (Animali, Fragoli, Fandango), e este é talvez o seu trabalho mais pessoal. Autoretratando-se, é contactado por um Sr. Pasolini, que nunca se entende se é o verdadeiro ou se um sósia ou se um fantasma (o site indicado no livro existe, tal como o sósia). Através de uma série de entrevistas a esse misterioso alter-ego, constrói-se um mapa do pensamento do poeta, realizador e, acima de tudo, livre-pensador. Homenagem, revisão de um espírito, o contrário de uma hagiografia, este é um objecto estranho que desafia a catalogação. Não cai nos termos simples de uma biografia, nem tampouco de adaptação, mas antes de um verdadeiro exercício de cidadania cultural ao apropriar-se das forças e do significado pessoal de Pasolini para si-mesmo, para no-lo ofertar com a maior das generosidades. Na capa, esconde-se uma caveira espreitando. Porque também a morte é uma personagem sempre presente neste livro.
(publicado em Mondo Bizarre no. 20)
Publicada por Pedro Moura à(s) 6:39 da tarde 0 comentários
Soupe Froide. Charles Masson (Casterman)
Um alienado social escapa do asilo onde se encontrava porque lhe serviram um prato de sopa fria, e isso tinha sido um atentado à sua dignidade humana. Na verdade, tinha sido um engano. Acompanhando a fuga desse homem, e todos os seus pensamentos, e vendo o que se passa ao mesmo tempo com as pessoas com as quais há relação (a filha, a ex-mulher, o médico, a enfermeira que servira a sopa), tentamos reconstruir o mundo que lhe sobra. Que é primeira obra de Charles Masson, médico, nota-se na qualidade do ritmo, nas desnecessárias repetições (até mesmo quando o objectivo é o esgotamento pela repetição), e até numa certa romantização do trabalho de um médico (é um quem assume a palavra no fim; o autor como personagem?). Não deixa de ser interessante colocar a banda desenhada como forma de expressão das preocupações específicas de uma profissão cujas consequências sociais são aqui exploradas. O autor parece querer-nos mostrar que o alienado é, acima de tudo, um homem, mas pergunto-me se essa compaixão é suficiente para construir um bom livro. É redimido, porém, pela sua despretensão e frontalidade.
(publicado em Mondo Bizarre no. 20)
Publicada por Pedro Moura à(s) 6:37 da tarde 0 comentários
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