Dean
Trippe é um dos co-fundadores de um dos sites mais revisitados de
quem segue algumas das mais interessantes discussões em torno do
design de super-heróis, Project: Rooftop, de uma forma
equilibradamente inteligente e fanática, sem a secura da primeira
abordagem e sem a leitura acrítica da segunda. Enquanto ilustrador,
Trippe parece devedor de uma linguagem simples e “limpa”,
reminiscente de um encontro entre a banda desenhada mainstream
de super-heróis dos anos 1950 (Carmine Infantino e Curt Swann acima
de tudo?) e o streamlining da banda desenhada infantil da
mesma época (como os das companhias Harvey ou Archie). Nesse
sentido, é uma equação que teria dado os seus primeiros passos de
recuperação com Bruce Timm e é uma família que incluirá por
autores como Cameron Stewart, Darwyn Cooke, entre outros. Mas
Something terrible é something different. (Mais)
Em
primeiro lugar, trata-se de uma publicação disponível em formato
pdf, que se pode comprar e fazer o download no site do autor [ligeiramente maior do que o conteúdo grátis] e é
aparentemente a sua primeira banda desenhada total. Com apenas 14
pranchas, quase todas numa grelha de quatro vinhetas regulares e duas
splash-pages, é
uma obra que se lê muito rapidamente, mas ela exige que se entenda o
esforço tremendo que a originou. De certa forma, ela é uma
narrativa de “origem secreta” assim como de “transformação”.
O autor foi vítima de repetidos abusos sexuais quando era criança,
e isso levou-a a cair num ciclo de temores internos e fantasmas que o
faziam imaginar que ele mesmo se poderia vir a tornar um predador.
Apesar de – tudo isto explorado brevemente na história – ter
encontrado uma companheira e ter tido um filho, essa “sombra”
manteve-se, assinalando não apenas um perigo mas um obstáculo na
sua vida. Esta pequena obra, de certa forma, revisita o conforto e
imaginário que foram sendo nutridos numa dieta contínua de toda uma
série de personagens da cultura popular, infantil e adolescente mas
que sobrevivem na idade adulta, e mostra o modo como essas mesmas
personagens podem servir de mecanismo de sobrevivência e
reconstrução psicológica, com vista à recuperação de um trauma.
Mesmo que este em si não desapareça, o que é impossível, e não
estejamos a falar de uma “cura” do trauma – o que, seja como
for, já envolveria um trabalho psicanalítico em relação à
própria pessoa, e não ao constructo textual que é a obra e o seu
autor (o autor como “função” do texto, atenção) – Something
terrible mostra como se pode conquistar de novo um espaço de
segurança. Arte terapia, levando a um estado quase literal como a
obra de arte, neste caso a banda desenhada, pode de facto exorcizar
fantasmas (tal como ocorreu em relação a Debbie Dreschler, Dave
Cooper, Craig Thompson, David B., Art Spiegelman, Alisa Torres, e
outros autores).
Num
segmento inicial, o autor não utiliza qualquer texto verbal com a
excepção das frases ameaçadoras do seu violador. E as próximas
frases que surgem são “somente” citações dos filmes e séries
de televisão que, ainda assim, vão afirmando e fundando
precisamente os seus fantasmas.
Desde logo entendemos que a presença das personagens fantásticas estão
presentes em várias formas visuais – banda desenhada, livros,
televisão, até mesmo roupas -, inclusive o desenho de Dean enquanto
criança, surgindo como uma forma alternativa de comunicação e
expressão, que se torna um caminho alternativo para a sua salvação.
Esta dicotomia entre texto verbal e visual é uma constante em alguns
outros títulos de banda desenhada que navegam pelas terríveis águas
da autobiografia do trauma, como nos casos de Daddy's Girl, de
Debbie Dreschler, Encore Ça, de Julie Delporte, Pourquoi
j'ai tué Pierre de Alfred e Olivier Ka, L'ascencion du haut
mal, de David B., ou até mesmo obras que aparentemente de ficção
são baseadas em factos reais (Dan and Larry, de Dave Cooper).
Uma
vez que o autor utiliza pouco texto verbal, ele opta por uma
construção elíptica, em que em vez de termos sequências de uma
acção, temos antes cenas ao longo da sua vida (o que McCloud
chamaria de transições “cena a cena”, precisamente), com mais
ou menos longos períodos separando cada vinheta, mas cuja
representabilidade, assim como os jogos a que o autor se permite com
as posições dos corpos, as expressões faciais e algumas metáforas
visuais e citações intertextuais, apenas tornam mais concentradas
no seu significado. O Batman aparece sempre como uma espécie de
totem protector, uma personagem que o protagonista segue, idolatra e
transforma à sua maneira para cartografar as suas emoções, medos e
forma de dialogar com o mundo. O autor é exposto pela primeira vez
ao Cavaleiros das Trevas na sua versão cinematográfica de Tim
Burton, de 1989, e depois segue-se a banda desenhada, as fantasias de
Halloween, os desenhos animados de Paul Dini e Bruce Timm, e as
t-shirts... Mas este jogo de entrada no visual ganha ainda mais força
quando vemos finalmente o uso que o autor faz dela: criando uma banda
desenhada (dentro da banda desenhada que a conta), o autor
projecta-se no passado, possivelmente no momento imediato após o
abuso, e coloca-o em contacto com Batman (que chega ao seu universo
numa Tardis, do Doctor Who).
Com a sua companhia, o pequeno
Dean é apresentado a uma verdadeira galeria de personagens de toda
uma mole da cultura popular moderna (da banda desenhada, animação,
cinema, televisão), e que surgem não tanto como fantasias de
escape, mas formas de protecção, projecção e modelos. Mesmo que
sejam todas fantasiosas, fantásticas e algumas até algo ridículas,
a verdade é que provam a necessidade e a força que a fantasia têm
na construção da vida dita real. O contraste entre as cores vivas e a paleta subsumida a pretos, azuis e cinzentos do resto da obra também quer mostrar o "maior grau de vida" ali presente, na fantasia. É a sua intensidade que ilumina a da própria vida, por assim dizer.
Na
página de agradecimentos, Trippe inclui o nome de Bill Finger,
realmente tentando trazer alguma justiça para a história da banda
desenhada, e da criação de Batman em particular, mas mais curioso é
falar de Grant Morrison, não apenas como autor do que ele entender
ser algumas das melhores histórias de super-heróis dos tempos
recentes, mas sobretudo por “consertar os brinquedos”, o que é
uma forma muito justa de entender o trabalho do escritor escocês,
quase por oposição ao que Moore começara, e depois seria
continuado por tantos outros escritores. Por estas citações, Trippe
parece também querer devolver ao próprio meio da banda desenhada um
poder que possivelmente terá desaparecido nos últimos anos. Além
disso, Trippe agradece Morrison “por me fazer crer que os
super-heróis podiam salvar-me a sério se eu acreditasse neles”, o
que remete possivelmente para toda a argumentação de Supergods.
Se
for esse o caso, então trata-se mesmo de um daqueles casos em que
não adianta dizer que uma crença está “errada” ou é
“ilusória”, mas devemos antes concentrar-nos na forma como ela
funcionou positivamente para Trippe.
Nota
final: agradecimentos a Nicolas Verstappen, por nos colocar no
caminho deste pequeno livro e algumas discussões em torno do tema.
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