Há
uns anos, a propósito da publicação em inglês de Red Colored Elegy,
faláramos do papel de Hayashi na geração da Garo,
na companhia de outros autores que, não sendo famosos junto a um
público mais jovem e mais “fã” de séries populares, compõem
porém um grupo extremamente significativo numa verdadeira expansão
da banda desenhada enquanto linguagem passível de explorar emoções
e realidades humanas complexas, desprovidas quase totalmente de
mecanismos mais tipificados, sejam eles da aventura, da acção ou do
romance. (Mais)
Em
nada quer isto criar uma hierarquia intrínseca entre trabalhos que
exploram géneros mais reconhecíveis ou que exploram contornos mais
decididos em termos de público específico, uma vez que uma ou outra
opção não se destila necessariamente em um perfil criativo ou
interessante. Simplesmente estamos em crer que, se a banda desenhada
deseja ser vista como um território como outro qualquer para a
expressividade humana, deve viver o mais livre possível de
espartilhos, sejam eles quais forem. E nesse sentido existem, de
facto, experiências mais livres do que outras. Permitidas ou
exigidas por contextos particulares, sem dúvida alguma, alimentados
por uma vontade expressa que as enquadra num cadinho cultural e
social apropriado, também, e depois em mecanismos de recuperação
histórica, tal como tem ocorrido nos últimos anos, precisamente, em
várias línguas estrangeiras, sobre a produção “alternativa”
japonesa das décadas de 1960 e 1970. além disso, sempre que nos
deparamos com aquelas afirmações sobre a “potencialidade da banda
desenhada”, não podemos senão compreender a esmagadora maioria
dessas afirmações enquanto feitas na ignorância do que já existe
criado que expandiu qualquer perspectiva delimitada desta arte.
Apesar
de termos falado de uma “libertação” dos géneros, que não se
os entenda como grilhões inexoráveis e que lançam os autores em
uma impossibilidade de criar trabalhos de grande intensidade. Como
alguém escreveu algures, as restrições de um género podem ser tão
estimulantes quanto a abordagem de salão do Oulipo/Oubapo, e apenas
os resultados interessarão no cômputo final. Hayashi, enquanto
colaborador da revista Garo
durante a década de 1960, foi providenciando trabalhos curtos (três
dezenas de páginas, em média, em cada número mensal), e algumas
delas exploram mesmo os géneros ou os temas então na berra,
sobretudo com yakuza e estudantes. Mas os interesses do autor sempre
se mostraram inclinados para com uma ambivalência narrativa,
sobretudo onde pudesse entrar o absurdo, o surrealismo ou outras
explorações poéticas, inclusive do plano visual.
A
narrativa que compõe este pequeno livrinho pertence a uma série de
uma dezena de trabalhos cujo título geral é “Poemas da flor”.
Pelas informações coligidas em vários locais, como é o caso do
blog de Curtis Hoffmann, não parecem estas histórias participar no
mesmo universo diegético, nem partilham personagens ou sequer
humores. Mas apenas uma leitura mais completa poderia sublinhar ou
iluminar quais os pontos comuns. Desta forma incompleta,
arriscarmo-nos-emos a imaginar tratarem-se de exercícios livres em
que o autor explora formas curtas da narrativa para transmitir e
aperfeiçoar o que seria a sua linguagem típica, um encontro entre
as emoções e sentimentos ambivalentes de personagens, que se
encontram subitamente num mesmo espaço comum, mas onde esse encontro
parece estar votado a toa uma série de obstáculos,
impossibilidades, incompreensões. E dessa frição, partem todos os
elementos oníricos que pautam esse diálogo. São esses elementos
que depois, mais tarde, seriam tentados numa forma mais alargada, com
Red
Colored Elegy,
que conterá ainda elementos autobiográficos.
O
[sub-]título desta história em particular repete ipsis
verbis o
título de um filme de Keisuke Konoshita, de 1943, que poderia ser
traduzido para português como “Porto das flores” ou “Porto
florido”, por sua vez adaptação de um romance. Desconhecemos,
porém, quais as ligações com esse filme: possivelmente estará
apenas no título, pois esta narrativa de uma trintena de páginas
não procura criar um romance alargado, mas um breve e aberto relato.
Uma dona de um pequeno bar de sake à beira-mar recebe na sua casa um
homem de Tóquio, um drifter,
que se tornará rapidamente o seu amante. Mas rapidamente se
compreende que ele irá repetir os mesmos gestos que os anteriores
amantes e partir de novo, deixando-a, a cada passo, mais abandonada
naquela pequena vila. Em apenas 33 páginas, não há uma procura
pela construção psicológica ou biográfica das personagens através
de grandes diálogos ou exposições, mas pelo contrário, através
de frases quase que abandonadas de quando em vez, longas sequências
silenciosas, e até mesmo momentos em que a focalização parece
desligar-se das personagens para se envolver com o ambiente e o tempo
que os encerra naquele pequeno espaço. O vento que sopra, a chuva
que cai. Mais, não havendo jamais uma representação realista da
vila, mas apenas traços elípticos de uma casa ou outra, o molhe,
uma montanha, a ideia de solidez espacial só é inferida pelo desejo
do leitor. Não é um esforço diferente daquele que lhe é exigido
para criar uma rede mais completa das histórias internas destas
personagens, como a presença da filha pequena da mulher ajuda a
completar, mas sem jamais se atingir qualquer conclusão
relativamente estável. O final é previsivelmente triste, ou
melancólico, mas não menos expectável, e apenas a mulher parece
querer ainda acreditar na ficção de uma felicidade possível.
O
vento, incessante, cuja onomatopeia soa estranha e quase humana aos
nossos ouvidos (traduzida como “aah aah”), e que é representando
por uma saraivada de riscos oblíquos que cortam vinhetas desabitadas
ou com as personagens isoladas nelas, acaba por ganhar uma espécie
de presença actancial, que tanto aproxima as personagens – ao
início – como as afasta – no fim. É igualmente significativo
notar como na economia da narrativa os corpos do homem e da mulher
são desenhados, na maioria afastados um do outro, isolados nas
vinhetas, e mais pontualmente juntos, mas sempre com distâncias ou
aproximações significativas. Sendo um relato tão curto, permite-se
que seja lido repetidamente, de maneira a ir deslindando todas estas
dimensões.
Publicado
na Garo
em 1960, o seu surgimento agora neste pequeno volume de bolso,
impresso a uma cor roxa, poderá criar uma ideia “social” da
mangá bem diversa daquela do seu contexto original, mas ainda assim
servirá decerto como uma excelente primeira apresentação à obra
deste autor. Aliás, o seu isolamento da revista, desligando-a por
exemplo de um cotejamento quase imediato às aventuras de Kamui,
de S. Shirato, permite que esta “nova” leitura se concentre num
valor poético intrínseco. É como se estivéssemos perante um
pequeno poema narrativo, de facto, em que menos importa a “intriga”,
praticamente inexistente, ou simplesmente linear, mas a intensidade
de cada linha. Tal como no livro que lêramos, as linhas de Hayashi
são simples, arredondadas e cartoonescas,
como se se adoptassem formas de uma certa abordagem da banda
desenhada infantil para veicular experiências bem mais dramáticas
do que esse género costuma. Com composições de página também
simples e sumárias, algumas vinhetas mesmo a negro ou com abordagens
minimalistas, há uma espécie de rapidez de execução que,
paradoxalmente, obriga a uma certa lentidão, um certo degustar
atento, de cada página, cada cena.
A
Breakdown contou com o trabalho de edição e tradução de Ryan
Holmberg, um estudioso e editor experiente da mangá alternativa que
está a preparar um volume sobre a Garo,
portanto criando a impressão de que poderemos esperar novos volumes
numa linha idêntica. De resto, esta edição foi acompanhada por uma exposição, a presença do autor em Londres, etc., reforçando essa ideia de projecto continuado. Além disso, conta este pequeno volume com
texto introdutório do próprio autor, original para este gesto, em
que contextualiza historicamente a produção, e associa a história
a elementos culturais e da sua experiência pessoal, os quais, menos
do que “explicar” a história, trazem uma outra dimensão,
digamos, ambiental.
Nota final: imagem da Garo e da página em japonês colhidas da internet.
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