9 de julho de 2014

F(r)icções. Nuno Duarte e João Sequeira (El Pep)

No nosso pequeno mercado, na inexistência mesmo da possibilidade de garantir a continuidade de géneros, formatos, colecções, etc., dada a volatilidade do público, a descoordenação dos canais de divulgação, e a falta de memória generalizada, e até mesmo por os esforços editoriais nem sempre serem recompensados da forma que mereceriam, todo e qualquer livro ou projecto surgirá como singular. E criar expectativas determinadas por trabalhos anteriores que servem como instrumento principal de leitura de um novo pode ser o caminho errado para a sua recepção livre de escolhos. Caso contrário, e perdoe-se o jeu de mots, criam-se fricçõesque de pouco servem. (Mais) 

Com a leitura de A fórmula da felicidade, pode ter-se criado a expectativa de esperar pelo próximo projecto de grande fôlego de Nuno Duarte, que não foi garantido por O baile, o qual era uma espécie de exercício leve e breve de uma capacidade inventiva, e menos uma exploração psicológica de personagens. É possível que o autor tenha esse projecto em mente, mas a presença e mesmo “treino” em textos mais curtos é um caminho para revelar outras facetas. F(r)icções é precisamente isso, um conjunto de histórias curtas, à la Black Box Stories, de José Carlos Fernandes, neste caso todas trazidas a tinta por João Sequeira. Quanto a este artista, com que nos havíamos através de Psicose, escrito por ou com Miguel Costa Ferreira, encontramos o seu traço rápido e quase num ponto de dissolução ancorado por histórias mais concretas, sólidas e presas à gravidade da existência do que a sensação de alienação e isolamento quase absoluto das personagens do livro anterior.

Reunindo quatro histórias, poder-se-ia dizer que os autores tentam experimentar, e conseguindo-o, vários géneros, partindo de fórmulas conhecidas para criar pequenos desvios. Há uma história com um cowboy, outra com um viking, uma outra com um detective privado e finalmente uma que envolve a morte como personagem. De forma alguma elas partilham as mesmas características. Apesar de ser o mesmo escritor vestido pelas imagens de um mesmo artista, existem inflexões em cada uma das narrativas, que têm estruturas diferentes, materializadas em tamanhos, humores e ecos diversos entre si.

A história mais elaborada e complexa, e também a mais longa, é a última, “A dama vestia de negro”, uma espécie de homenagem ao policial, com uma pequena trama feita de surpresas e todos aqueles ingredientes clássicos de Hamnett e Chandler: paisagens inóspitas, urbanas ou não, whiskey, .38 e a femme fatale. Se num determinado momento podemos pensar que vai haver um abandono ao cliché do detective enrolando-se com a mulher sexualmente, descobriremos que a paixão que o move é bem diferente.

“O pistoleiro que gostava de dançar” é a mais leve das histórias, no sentido de ter no seu centro uma ideia quase absurda, mas que explora precisamente toda uma série de expectativas do policial e também as mesmas expectativas dos desvios possíveis. É curioso que o western seja precisamente um género que, repetidamente, é visto pelos críticos como um animal mutante nos seus instrumentos internos. Quase todas as séries que possamos pensar que tenham algum sucesso crítico e/ou comercial, de Tex a Lucky Luke, de Scalped a Blueberry, de Matt Mariott a Sargento Kirk, são sempre vistas como “pouco convencionais”, “desviantes das fórmulas”, mas parece antes que se tornou desse logo um género passível de ter essa vida para além das fórmulas, que talvez tenham tido apenas lugar numa fase muito primária da sua emergência. Afinal de contas, podemos dizer que John Ford tanto fundou uma definição perene do western ao mesmo tempo que a minava. Esta pequena história talvez não seja cómica e absurda à la Blazing Saddles, mas fica nos seus arredores.

“O uivo” é uma história que tem mais ecos de lenda tradicional, talvez mesmo bebendo directamente dos mitos dos escandinavos, do que propriamente uma narrativa que demonstre as proezas masculinas desses guerreiros meio-históricos, meio-fantasiados conhecidos por “vikings” (como o fazem as séries Northlanders e Viking). Quanto à história da morte, que abre o livro talvez de uma forma simbólica, e que também partilha um pouco do humor do western, recorda-nos variadíssimas coisas, desde a banda desenhada mais underground a comédias mais convencionais, mas mantendo um espírito muito autoral, não só graças aos diálogos entre as personagens, que incutem um tom quase banal na mais certa das experiências humanas, como também graças à abordagem visual de Sequeira, que traz, tal como no caso de “O uivo”, a presença dos ventos, tempestades e soturnidade para a própria matéria com que elabora os seus desenhos.

Sequeira continua a dar uso a uma abordagem que tira partido de uma estilização extrema, na qual é menos importante a pesquisa da expressão facial e física das personagens a partir de regras anatómicas naturalistas, do que das próprias regras gráficas instituídas pelo desenho. O “ruído” visual permitido pelos pincéis meio-secos são explorados, mas não em todas as histórias: tira-se mais partido dessa técnica na história do viking do que na do cowboy, e a do detective explora antes outras formas de criar texturas, sombras e ambientação (veja-se aquela espécie de nevoeiro na página aqui mostrada, tanto feita do branco do papel imaculado pela tinta que circunda como, possivelmente, por aplicações de branco (tinta?, corrector?) sobre o preto.


João Sequeira, logo à partida, tem uma forma de criar imagens que puxam para uma ideia de ambiguidade, de vagueza, de formas incertas que ainda não encontraram o seu poiso final, por assim dizer. Em Psicose, essa abordagem era corroborada pela narrativa principal. Aqui, pelo contrário, uma vez que estão votadas ao serviço de histórias com contornos mais sólidos, sobretudo a policial e a do western, ganham um outro tipo de tensão, mas por isso mesmo também ganham, os desenhos, pequenas inflexões: mais clareza em “pistoleiro”, paisagens mais concretas em “dama”... Não se trata de um braço-de-ferro entre os autores, trata-se antes em ambos medirem as forças um do outro e procurarem remar numa mesma direcção. Sem fricção. 

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