No
nosso pequeno mercado, na inexistência mesmo da possibilidade de
garantir a continuidade de géneros, formatos, colecções, etc.,
dada a volatilidade do público, a descoordenação dos canais de
divulgação, e a falta de memória generalizada, e até mesmo por os
esforços editoriais nem sempre serem recompensados da forma que
mereceriam, todo e qualquer livro ou projecto surgirá como singular.
E criar expectativas determinadas por trabalhos anteriores que servem
como instrumento principal de leitura de um novo pode ser o caminho
errado para a sua recepção livre de escolhos. Caso contrário, e
perdoe-se o jeu de mots, criam-se fricçõesque de pouco
servem. (Mais)
Com
a leitura de A fórmula da felicidade, pode ter-se criado a
expectativa de esperar pelo próximo projecto de grande fôlego de
Nuno Duarte, que não foi garantido por O baile, o qual era
uma espécie de exercício leve e breve de uma capacidade inventiva,
e menos uma exploração psicológica de personagens. É possível
que o autor tenha esse projecto em mente, mas a presença e mesmo
“treino” em textos mais curtos é um caminho para revelar outras
facetas. F(r)icções é precisamente isso, um conjunto de
histórias curtas, à la Black Box Stories, de José Carlos
Fernandes, neste caso todas trazidas a tinta por João Sequeira.
Quanto a este artista, com que nos havíamos através de Psicose,
escrito por ou com Miguel Costa Ferreira, encontramos o seu traço
rápido e quase num ponto de dissolução ancorado por histórias
mais concretas, sólidas e presas à gravidade da existência do que
a sensação de alienação e isolamento quase absoluto das
personagens do livro anterior.
Reunindo
quatro histórias, poder-se-ia dizer que os autores tentam
experimentar, e conseguindo-o, vários géneros, partindo de fórmulas
conhecidas para criar pequenos desvios. Há uma história com um
cowboy, outra com um viking, uma outra com um detective privado e
finalmente uma que envolve a morte como personagem. De forma alguma
elas partilham as mesmas características. Apesar de ser o mesmo
escritor vestido pelas imagens de um mesmo artista, existem inflexões
em cada uma das narrativas, que têm estruturas diferentes,
materializadas em tamanhos, humores e ecos diversos entre si.
A
história mais elaborada e complexa, e também a mais longa, é a
última, “A dama vestia de negro”, uma espécie de homenagem ao
policial, com uma pequena trama feita de surpresas e todos aqueles
ingredientes clássicos de Hamnett e Chandler: paisagens inóspitas,
urbanas ou não, whiskey, .38 e a femme fatale. Se num
determinado momento podemos pensar que vai haver um abandono ao
cliché do detective enrolando-se com a mulher sexualmente,
descobriremos que a paixão que o move é bem diferente.
“O
pistoleiro que gostava de dançar” é a mais leve das histórias,
no sentido de ter no seu centro uma ideia quase absurda, mas que
explora precisamente toda uma série de expectativas do policial e
também as mesmas expectativas dos desvios possíveis. É curioso que
o western seja precisamente um género que, repetidamente, é
visto pelos críticos como um animal mutante nos seus instrumentos
internos. Quase todas as séries que possamos pensar que tenham algum
sucesso crítico e/ou comercial, de Tex a Lucky Luke,
de Scalped a Blueberry, de Matt Mariott a
Sargento Kirk, são sempre vistas como “pouco
convencionais”, “desviantes das fórmulas”, mas parece antes
que se tornou desse logo um género passível de ter essa vida para
além das fórmulas, que talvez tenham tido apenas lugar numa fase
muito primária da sua emergência. Afinal de contas, podemos dizer
que John Ford tanto fundou uma definição perene do western
ao mesmo tempo que a minava. Esta pequena história talvez não seja
cómica e absurda à la Blazing Saddles, mas fica nos seus
arredores.
“O
uivo” é uma história que tem mais ecos de lenda tradicional,
talvez mesmo bebendo directamente dos mitos dos escandinavos, do que
propriamente uma narrativa que demonstre as proezas masculinas desses
guerreiros meio-históricos, meio-fantasiados conhecidos por
“vikings” (como o fazem as séries Northlanders e Viking).
Quanto à história da morte, que abre o livro talvez de uma forma
simbólica, e que também partilha um pouco do humor do western,
recorda-nos variadíssimas coisas, desde a banda desenhada mais
underground a comédias mais convencionais, mas mantendo um
espírito muito autoral, não só graças aos diálogos entre as
personagens, que incutem um tom quase banal na mais certa das
experiências humanas, como também graças à abordagem visual de
Sequeira, que traz, tal como no caso de “O uivo”, a presença dos
ventos, tempestades e soturnidade para a própria matéria com que
elabora os seus desenhos.
Sequeira
continua a dar uso a uma abordagem que tira partido de uma
estilização extrema, na qual é menos importante a pesquisa da
expressão facial e física das personagens a partir de regras
anatómicas naturalistas, do que das próprias regras gráficas
instituídas pelo desenho. O “ruído” visual permitido pelos
pincéis meio-secos são explorados, mas não em todas as histórias:
tira-se mais partido dessa técnica na história do viking do que na
do cowboy, e a do detective explora antes outras formas de criar
texturas, sombras e ambientação (veja-se aquela espécie de
nevoeiro na página aqui mostrada, tanto feita do branco do papel
imaculado pela tinta que circunda como, possivelmente, por aplicações
de branco (tinta?, corrector?) sobre o preto.
João Sequeira,
logo à partida, tem uma forma de criar imagens que puxam para uma
ideia de ambiguidade, de vagueza, de formas incertas que ainda não
encontraram o seu poiso final, por assim dizer. Em Psicose,
essa abordagem era corroborada pela narrativa principal. Aqui, pelo
contrário, uma vez que estão votadas ao serviço de histórias com
contornos mais sólidos, sobretudo a policial e a do western,
ganham um outro tipo de tensão, mas por isso mesmo também ganham,
os desenhos, pequenas inflexões: mais clareza em “pistoleiro”,
paisagens mais concretas em “dama”... Não se trata de um
braço-de-ferro entre os autores, trata-se antes em ambos medirem as
forças um do outro e procurarem remar numa mesma direcção. Sem
fricção.
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