18 de setembro de 2014

March, Book One. John Lewis, Andrew Aydin e Nate Powell (Top Shelf)

Imaginemos a cena. Um pequeno restaurante, numa rua principal de uma cidade de alguma dimensão, tem mesas distribuídas no seu espaço, algumas perto das montras, outras dispostas perto das paredes, um balcão corrido. As pessoas entram, sentam-se, escolhem o prato de uma ementa, encomendam, comem e pagam. Mas conforme a cor de pele, pode ou não ser autorizado a sentar-se ao balcão, ou tem de ser dirigido a um canto especial. O mesmo ocorria com lugares nos autocarros, se não mesmo no tipo de autocarros, das casas de banho em estações de serviço, ou nas escolhas e possibilidades de inscrição em escolas, bibliotecas, jornais, já para não falar sequer no direito à directa representação eleitoral ou outros assuntos ainda mais prementes (habitação, empregabilidade, etc.). (Mais) 

Algumas pessoas poderão não ter compreendido porque é que tantas pessoas choravam no dia da tomada de posse como presidente dos Estados Unidos de Barack Obama. Independentemente de se desconfiar das políticas externas dos E.U.A., e de outros assuntos, não se pode compreender a história recente daquele país se não se compreende a vitória magnífica que significou essa eleição para uma larga parte da população dos Estados Unidos da América. Essa vitória é, até certo ponto, a chegada de uma longa caminhada dos negros norte-americanos. De uma marcha militante e, como se dizia nos anos 1970, engajada. Este livro versa os primeiros passos dessa marcha a partir da perspectiva pessoal de um dos seus intervenientes.

Em termos estruturais e de produção, March poder-se-á irmanar a títulos tais como La guerre d’Alan, de Guibert e Cope, ou American Widow, de Torres e Choi, se bem que as estratégias sejam muito diferentes entre si. Num dos casos, temos uma mulher que decide construir uma autobiografia em banda desenhada (Torres) e procura uma artista (Choi) que dê corpo visual à sua voz; noutro temos um artista (Guibert) que resolve transformar o relato de um amigo (Cope) numa obra pessoal mas que não deixa de emprestar corpo a uma outra voz pessoal. March, por seu lado, faz inflectir um trabalho profissional, as funções de assessoria de Andrew Aydin, que encontra num artista, Nate Powell, um veículo exemplar para moldar um novo caminho para a vida, já anteriormente exposta sob outras formas, de um homem vivido e seu patrão, John Lewis, membro do Congresso e um dos “Big Six”.

O título, reduzido a uma palavra, serve para emparelhar todas as manifestações (“marches”) do final da década de 1950 e princípio da de 1960, que marcaram o movimento dos direitos civis, mas também associá-las, de forma mais metafórica, à marcha de toda uma vida, quer a de Lewis quer a de outros que com ele partilharam a missão, sofrimento e vitórias, àquela mesmo em que nos podemos juntar pelo acto de leitura. Essa função simbólica surge de forma dramática e espectacular na dupla página de título, em que a perna do R se estende numa diagonal onde se encontra a luz de um glorioso sol matinal e o pináculo do monumento a Washington. De uma vista elevada e exterior ao monumento a Lincoln, vemos uma outra diagonal que acompanha o espelho de água até ao monumento, criando-se uma estrutura convergente entre todos estes símbolos da nação americana e das suas conquistas políticas. Importa menos o pormenor de cada um deles, e as possíveis imperfeições que poderão representar, do que a promessa de encontro entre essas promessas e esforços. A vida e trabalho de John Lewis são em si mesmas testemunho dessa possibilidade. E é esse o papel de March, uma trilogia biográfica escrita em conjunto com Andrew Aydin, que trabalha como assessor de comunicação de Lewis, e Nate Powell, um artista de banda desenhada em claríssima ascensão, e de quem havíamos falado brevemente quando do seu primeiro livro, PleaseRelease, ainda trabalhando nos ecos da autobiografia slacker dos anos 1990, e que teve o seu momento de maior glória com o excelente Swallow Me Whole, e tendo já encetado esta temática em The Silence of Our Friends, com Mark Long e Jim Demonakos.

Conforme será de esperar neste tipo de projectos, sendo a “função comunicacional” particularmente vincada – num sentido de haver um propósito explícito de se tecer uma mensagem, um conteúdo politicamente significante, o que é drasticamente diferente de um modo de expressão que possa ser visto como metatextual ou investigativo -, o artista procura empregar todas as estratégias visuais possíveis para a veiculação mais clara possível do impacto que este ou aquele evento terão tido na vida de Lewis, ou então a incutir nesses episódios uma eficaz capacidade de dramatizar e transmitir uma emoção junto ao leitor. A variedade de composições é evidente, desde a mais isolada das vinhetas no centro de uma página em branco (de forma a salientar o isolamento numa viagem) às páginas mais prenhes em termos de informação, de splash pages a construções com vinhetas incrustadas. Panoramas e paisagens, grandes planos sobre os rostos das personagens e cortes de pormenor, fundos negros e outros “sangrando”, há um pouco de tudo, mas não se trata nem de um uso excessivo, nem de um virtuosismo gratuito. Bem pelo contrário, a leitura pausada e ritmada da narração na primeira pessoa de Lewis, presente em flutuantes mas sólidas frases sobre as cenas, vão acompanhando essas imagens de uma forma quase inconsútil, criando uma fluidez rara. A figuração do artista, que tem traços suficientemente idiossincráticos para reconhecermos a sua assinatura mas um grau de naturalismo que nos leva a compreender as opções e a relação acessível com a realidade, é um outro factor de fluidez.

Essa fluidez tem também momentos de “textura”, ou de “volume”, por assim dizer, sempre que as cenas passam a ser desenroladas num “presente da acção”, com as personagens movendo-se e falando, ganhando menos distância na narração que as tornara pretéritas. E como convém a uma espécie de confirmação da verdade, de historicização do testemunho do protagonista e narrador, há muitos casos de representação de documentos, traduzidos pelo punho de Powell: parangonas e notícias de jornal, capas de revistas e documentos dactilografados, e até mesmo peças radiofónicas. Se no caso de outros autores a presença de documentos reais, fotografados e “colados” à banda desenhada (o caso charneira de Maus) leva a que alguns autores falem de “memórias impossíveis de assimilar” (cf. as lições de Marianne Hirsh, Ann Cvetkovich e Gabrielle Schwab), e que pode mesmo ocorrer em casos onde há uma “tradução mediática” (o exemplo usual é Fun Home, de Bechdel), neste caso em particular encontraremos antes uma celebração, e uma procura por uma assimilação, ou melhor dizendo, integração, material e memorial que é positiva.

John Lewis viria a ser o mais jovem orador da famosa marcha sobre Washington a 27 de Agosto de 1963, em que Martin Luther King Jr., indubitavelmente o mais famoso orador do encontro e manifestação política, fez o seu discurso “Tenho um sonho” (o conjunto de oradores seria conhecido por “Big Six”). É possível que revisitemos esse evento num dos volumes futuros, sendo Lewis, afinal, o único sobrevivente desses oradores.

O livro abre com a marcha sobre a ponte de Edmund Pettus, a 7 de Março de 1965, também conhecida como “Bloody Sunday”, pelos activistas terem sido atacados pelas forças policiais e federais. Como parte de todo o movimento americano dos direitos civis, que vieram pôr cobro às leis discriminatórias em vigor em muitos dos estados com base na “diferença racial”, esta foi apenas a primeira de três marchas, mas a mais sangrenta, e que se integra numa brutalmente complexa cadeia de eventos, acções, contra-acções, crimes e conquistas legais e sociais cujas consequências ainda são sentidas hoje. Poderemos dizer que, de um ponto de vista, a herança destas acções é positiva em termos de progressivas aberturas e possibilidades da comunidade negra, ou afro-americana, e em relação às quais muitas pessoas considerariam a eleição de Barack Obama como um corolário. De outro ponto de vista, porém, as conquistas ainda não foram totais, e há até mesmo sinais de perdas dessas conquistas, quer por tragédias a nível nacional, como o que se passou em Nova Orleães sob o furacão Katrina, quer por casos pontuais (como os vários assassinatos de jovens negros às mãos de forças policiais e de segurança, que estalaram mais uma vez os problemas do “profiling” e das respostas de força excessiva). Mas acima de tudo, não se pode negar que em alguns aspectos sócio-legais se mantêm; apesar das ditas “leis de Jim Crow” terem sido declaradas anticonstitucionais, muitos dos mecanismos existentes para supostamente travar actos criminosos acabam por criar uma cultura de crime, e particularmente afectando populações menos protegidas, das quais fazem parte substancialmente muitas comunidades negras (como os dos crimes chamados de “felony” e as consequências na maioria dos estados: um excelente livro sobre este assunto é o da activista Michelle Alexander, The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness).

O livro lida com o racismo gritante e explícito que fazia parte da cultura quotidiana d(e parte d)os Estados Unidos da época, mas jamais se perscruta a situação actual. Apesar dos vários “intervalos” na narrativa pretérita, mostrando um Lewis atarefado no dia da tomada de posse de Obama – e apontando desde logo para aquela ideia de corolário da “marcha” -, e que serve de mecanismo de enquadramento dos episódios da sua vida, este primeiro volume de três centra-se na infância de Lewis, e nos seus primeiros contactos com uma vida de consciência da luta política necessária, e as primeiras acções. Por isso, apenas no fim desta saga é que podemos tentar compreender se a narrativa é criada de uma forma teleologicamente dirigida para uma espécie de hagiografia simplista, em que a eleição de um presidente negro (de mãe branca) é sinal de um selo nas lutas, ou se antes se apresentará um discurso matizado que dá conta das efectivas transformações positivas de uma sociedade mas não se deslumbra e esquece dos esforços que há ainda por fazer (e que poderão servir, sem dúvida, de modelo ainda a muitos outros países nas conquistas a fazer, quer se considere estar “à frente” ou não).

Em termos de banda desenhada, nomeadamente norte-americana, existe toda uma tradição de associar esta arte à divulgação das ideias preconizadas por estas personagens históricas, de testemunhos dos sofrimentos de décadas senão séculos de existência naquele país, da solidariedade possível com outras frentes de batalha, e mais especificamente das biografias das personagens principais. Se se pode olhar para a questão da “representação” somente – que é importante, mas vasculhará toda a história das caricaturas redutoras raciais, desde Sambo a Milton Caniff, Will Eisner aos Transformers -, será mais curioso compreender como é que esta forma foi empregue pelas próprias comunidades para transmitir uma experiência mas também providenciar instrumentos para dar voz a quem não a tinha, instrumentos de batalha para quem a não imaginava poder levar a cabo, e elementos para combater toda uma cultura, vista como “tradicional”. Aqui poder-se-ia falar desde autores como Jackie Ormes e Kyle Baker, passando por projectos editoriais desde a revista All-Negro Comics à Milestone, ou projectos autorais como X de Sue Coe ou King de Ho Che Anderson. A banda desenhada foi usada como veículo quase imediato, se tomarmos em conta o livro Martin Luther King and the Montgomery Story, publicado imediatamente em 1957. Trata-se de uma publicação citada no interior deste mesmo livro, uma produção da Fellowship of Reconciliation, ou F.O.R., que ensinava uma entrega à não-violência como resposta à opressão em curso, com a qual Lewis veio a envolver-se, pela pessoa de Jim Lawson. Uma leitura sobre este tema é o volume académico Black Comics: Politics of race and Representation (Bloombury 2013), que demonstrará perfeitamente que o projecto de Lewis, Aydin e Powell não está, de forma alguma, sozinho.


Aliando uma sensibilidade treinada no círculo da banda desenhada alternativa a uma “mão” solta no seu trabalho a pincel, que revela um talento virtuoso pictoral nada normativo, Powell agrega uma expressividade emocional a opções mais gráficas de metáforas visuais eficientes. Excelente instrumento para a voz pessoal de Lewis, cria-se assim um livro apropriado a toda uma série de leituras, que não serão contraditórias entre si, mas complementando-se num imenso gesto dirigido aos mais diversos dos leitores.  

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