16 de setembro de 2014

Safe Place. André Pereira e Paula Almeida (Kingpin Books).

Safe Place é um projecto curioso na medida em que parece ser construído a partir de uma ideia modular. Ele pode ser lido como um projecto isolado, mas potencia-se igualmente como episódio de algo maior, que poderá ou não vir a ser desdobrado. Além disso, como todas as obras de autores que se vão formando de modo decisivo e certeiro, ela também pode ser lida em conjunção com os trabalhos anteriores do autor. (Mais)

Bem vistas as coisas - se exceptuarmos O impaciente inglês, parte da saga de Super Pig, e o qual é um projecto cuja responsabilidade autoral e de moldação pende mais para o seu escritor, Mário Freitas - André Pereira tem procurado criar narrativas, quer a solo quer em colaborações (com João Machado), onde há uma estranha tensão em criar um típico dinamismo de conflito para depois o negar e procurar um foco e interesse noutros factores.
Muitos manuais de escrita criativa insistem que uma qualquer narrativa (fílmica, as mais das vezes, mas transpondo-se para os campos da banda desenhada, televisão, jogos de computador, e também a literatura), para se tornar verdadeiramente interessante, ou mesmo sendo-lhe um elemento “essencial”, deve ser o conflito entre duas personagens (ou forças que ajam como tal). Isto é um disparate, obviamente, uma vez que pretende reduzir todo e qualquer acto criativo a meia-dúzia de fórmulas (por vezes fazendo intervir a “viagem do herói” de Joseph Campbell, onde o exercício comparatista é levado ao seu extremo redutor, se não mesmo perigosamente racista). Ele pode ou poe não ser necessário, e tanto se podem criar narrativas interessantes, brilhantes ou más com ou sem ele. Os vectores que contribuem para a qualidade de uma obra procedem de formas bem diversas.

Safe Place parece unir duas grandes linhas já presentes em títulos anteriores. Por um lado, todo este imaginário que descende dos jogos de computador: as personagens combatem contra criaturas que guardam um ponto de passagem, utilizam técnicas de combate formuladas, colectam objectos mágicos que se vão acumulando num tesouro, ou que se transformam através de funções, levando a upgrades das suas capacidades. Por outro, estas mesmas personagens, um miúdo chamado Magus (e que parece ser uma mistura de Magus e de um auto-retrato meio-velado do próprio autor) e uma rapariga teriomórfica chamada Dragoon podem ser vistos como simples adolescentes sub-urbanos a queimar tempo num passeio pelos baldios, a entabularem conversas vagas e que roçam alguns típicos desejos de fuga e crescimento, acções mortas mas confortáveis de uma burguesia suficiente. Se os primeiros elementos estavam sobretudo presentes em Enjôo de invocação, Megafauna/Inner Math e o mais recente antologia QCDA # 1000 (que é visualmente rico da parte de todos os autores, mas narrativamente menos acabado), e se a melancolia quotidiana no “nada acontece” surgia em primeiro plano em 9:2:5, eles encontravam-se todos em distribuições diferentes. Em Safe Place, estão como que num equilíbrio simétrico.
Na verdade, poderíamos ler toda a “aventura” de duas maneiras, mas que a tornam totalmente ilusória. As primeiras páginas fazem-nos pensar nos momentos em que muitos miúdos, de várias gerações, tentam matar o tempo nos terrenos sub-urbanos, aqueles cantinhos de estranha natureza desamparada por detrás das urbanizações (e que pessoas que terão morado em subúrbios de Lisboa, ou outros, conhecerão bem), mas que, com os seus estranhos objectos abandonados, estruturas inacabadas, são pasto para jogos de fantasia. O regresso de Dragoon a casa da mãe, onde se sucedem com simplicidade um duche, uma sopa de espinafres e ver televisão, desviam o cerne do conflito com as criaturas-cães para uma dimensão lúdica. Mas há ainda a ideia do epílogo, desenhado pela convidada Paula Almeida: duas páginas mostram um rapazinho a, aparentemente, acordar em frente do computador, discutindo sobre a irmã que essa “estratégia” quase lhe fazia perder o jogo, e depois mencionando um estranho sonho. A transição entre as últimas páginas desenhadas por André Pereira, o balão isolado numa página negra instando alguma das personagens a acordar (desenhado pelo próprio Pereira, mas numa letra mais manual e livre do que aquela usada no resto das suas pranchas), e depois as de Almeida, levam a ideia de uma fluida passagem, mas ainda assim a uma passagem indubitável entre dois níveis de narrativa, em que a final corresponderia à “realidade”, à narrativa que enquadraria e englobaria a anterior, que lêramos. Ou seja, toda a aventura de Safe Place protagonizada por Dragoon e Magus são seria mais do que sonho ou um jogo. Ou, quem sabe, algo entre isso, que a tecnologia futura poderá vir a proporcionar (a irmã do rapaz que acorda fala de “transe”).

Todavia, a pergunta que restaria seria, em que medida é que decidirmo-nos em que níveis as narrativas se encontram alteram a fruição do texto? Em pouco, seguramente, uma vez que Safe Place tem menos a ver com uma narrativa fechada e explícita do que com as sensações e emoções “fracas” das personagens. Por “fracas” entendemos o modo como o autor evita, mais uma vez, construir a sua narrativa em torno de emoções bombásticas, da raiva à paixão, terror ou paranóia, inveja ou depressão, preferindo antes uma espécie de derrotismo melancólico de uma certa juventude, naquele momento entre o fim da infância e o princípio da idade adulta, que havíamos discutido também com Le muret. Por isso temos um grande número de vinhetas, ou mesmo sequências curtas, que se centram em pequenos gestos, momentos em silêncio, ou a deambulação mais ou menos sem rumo dos protagonistas.

É muito interessante que, ao contrário de Impaciente, André Pereira abandone grande parte das experimentações e pirotecnias neste livro. Inexoravelmente, o autor segue uma grelha regularíssima de 4 por 3 vinhetas, o que não o impede de fundir um bom número delas para dar a entender uma perspectiva mais alargada dos espaços (se bem que empregue igualmente a estratégia de mostrar uma paisagem ininterrupta por “de trás” dos filamentos dividindo as vinhetas), ou para mostrar a sua dissolução (na cena final). A figuração, com muitos planos gerais e americanos, e muito menos grandes planos, abdica igualmente da representação dramática dos rostos em rictos ou vibrações emocionais. Bem pelo contrário, com a excepção do momento do combate, Dragoon e Magus parecem sobretudo impassíveis, ainda que não indiferentes. E o autor leva a um outro nível, do que havia feito até à altura, do seu domínio da linha, manual mas mais segura, das breves tramas para sombra e volume, e de um uso parcimonioso e elegante de tramas. Quanto a Paula Almeida, de quem havíamos falado a propósito de Zona Nippon 1, são apenas quatro páginas aqui presentes, duas das quais retratos a cores (dos tais protagonistas do epílogo, os “jogadores-sonhadores”), mas que demonstram que o seu estilo anterior se tem moldado de encontro a uma família alargada em que se encontram artistas tais como DeForge ou Negron (podemos falar de uma escola “post-Cartoon Network” ou “pró-Adventure Time”?). uma plasticidade rápida, sumária, mas sólida.

Em alguns aspectos, será mesmo na análise formal que se encontrarão alguns elementos (nunca finais) que nos permitem compreender porque é que faz sentido falar-se de banda desenhada “alternativa” e “de género” mesmo no nosso território. Mas ainda mais surpreendente é que é André Pereira, em particular, um dos autores que, neste momento, se encontra de modo confortável a passear-se por “ambos” campos. E a própria aliança da Kingpin Books, chancela de presença significativa, e o Clube do Inferno, plataforma zinística, autoral e de propósitos de pesquisa, faz titubear de forma salutar essas divisões (que fazem, ainda assim, em termos analíticos, sentido).


Um dos aspectos curiosos trazidos a lume através de entrevistas ao autor, por exemplo, é a dimensão aparentemente autobiográfica da obra. O autor insiste mesmo numa série de aspectos que associam episódios da sua vida, uma espécie de nicho de conforto e segurança encontrado numa série de jogos de computador, sobretudo Final Fantasy, às escolhas narratológicas de Safe Place. Mas existem aqui duas linhas, portanto, que não perseguiremos. Por um lado, é precisamente essa dimensão autobiográfica. Toda e qualquer obra artística nasce sempre da manipulação de elementos que têm a ver com a materialidade e a especificidade mediática da arte escolhida, mas na qual há uma quota-parte de intervenção do inconsciente. Porém, se abrirmos as portas para interpretações autobiográficas, ou mesmo biografistas, de uma obra qualquer, estende-se o perigoso caminho de atravessarmos uma linha de abuso nessa mesma interpretação, que bastas vezes tem ocorrido (pense-se na relação de Tisseron sobre a obra de Hergé, ou em qualquer daqueles textos de encómio de um autor em que a relação de amizade com o articulista ganha destaque coo argumento de autoridade). E, se estivermos de acordo com o edifício freudiano, há que compreender a radicalidade do inconsciente, precisamente fora do alcance de qualquer interpretação final e absoluta.  Por outro lado, seria certamente producente analisar ponto a ponto quais elementos se têm transporto desse universo de referências dos jogos de computador para a obra de André Pereira (não apenas Safe Place, claro), e compreender em que medida é que as suas funções originais são transformadas nas suas histórias, mas para isso é necessário uma maior cultura dessa mesma realidade, que não temos. 

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