Num
panorama de produção e distribuição de jornais a nível nacional,
com vários diários e semanários de referência, e jornalismo da
especialidade (futebol, entretenimento, etc.), não deixa de ser
surpreendente que ainda sobrevivam determinados jornais de interesse
absolutamente local, associados a uma mão-cheia de freguesias e que
se dedicam a notícias que se circunscrevem a um espaço reduzido.
Exemplos são o Ecos de Cacia ou o Jornal Torrejano.
Focando em interesses culturais, gastronómicos, desportivos e
políticos, ou outros, de um interesse comunitário, poderá parecer
aos forasteiros matéria de indiferença, mas a sua leitura –
sobretudo se fora de quaisquer elos - traz-nos sempre uma ideia de
estranheza quase insuperável. O que não deixa de ser um estímulo
para o pensamento sobre mundos paralelos, cujos ecos em relação ao
nosso nos regressam distorcidos, mas ainda assim possibilitados de
iluminar algum aspecto que se nos torna subitamente familiar onde era
apenas estranheza ou desconhecimento, ou pelo contrário, que torna
estranho aquilo que nos era quase natural. (Mais)
Na
ciência literária há um termo curioso para descrever palavras que
apenas tiveram uma instância – por exemplo, surgindo apenas uma
vez em toda a história de uma determinada língua, ou na obra de um
escritor -: hapax legomenon.
Por metonímia ou mesmo empréstimo metafórico, poder-se-á dizer
que um hapáx é um fenómeno singular que não se espera ver
repetido em quaisquer circunstâncias.
Ora,
procurando duas linhas rectas convergentes destas noções, os dois
volumes da capa dura que coleccionam todos os seis tomos da série A
pior banda do mundo, de José Carlos
Fernandes, poderemos dizer que o que temos aqui é uma espécie de
imprensa local de acasos únicos, motivo de celebração dupla: por
estarem reunidos num objecto que se promete de maior longevidade nas
bibliotecas desmemoriadas da banda desenhada portuguesa, e por não
se preverem repetições destas estrambólicas profissões,
fenómenos, instituições e mesmo personagens. Elas levam a arvorar
como lema aquela frase de Borges de considerar os espelhos e a
reprodução como abomináveis por multiplicar o homem.
Recordemos
os títulos originais dos tomos: O
quiosque da utopia, O
museu nacional do acessório e do irrelevante,
As ruínas de Babel,
A grande enciclopédia do conhecimento
obsoleto, O
depósito dos refugos postais e Os arquivos do prodigioso e do paranormal.
Invariavelmente um substantivo descrevendo uma instituição, pequena
ou grande, pública ou privada, moderna ou histórica, que encerra
depois objectos no seu interior. E, as mais das vezes, todos eles
tingidos por noções de não possuírem qualquer utilidade ou
ligação concreta ao nosso mundo. Não há nada a aprender, nada a
comprar, nada a esperar. A própria desculpa mecânica das narrativas
– uma suposta péssima banda de jazz povoada por patéticas
criaturas, cada qual com profissões igualmente irrelevantes – de
forma alguma promete ou ajuda a consolidar as narrativas (a
esmagadora maioria das quais de apenas duas páginas) num
enquadramento maior que não o da total irrelevância. O autor não
cria de forma alguma personagens que ganhem contornos passíveis da
simpatia ou mesmo empatia do leitor. Poder-se-ia dizer mesmo que
estas pequenas narrativas são um exercício de desprovimento da
emoção, com vista à pesquisa do absurdo total, mas que, malgré
lui, atinge um determinado grau de
humor, estímulo à curiosidade, espelho de reflexão, e, quem sabe,
comoção.
Então
que nos leva a ler estas páginas de notícias de um mundo estranho,
de acasos que jamais se repetirão, seja o fenómeno de lâmpadas
piscarem em Morse, a teoria literária que relaciona a dieta dos
autores com os tratamentos ambientais, a serrilhação dos selos, o
melhor concorrente de concursos televisivos que jamais concorre, ou o
arquivamento de sonhos? É que aos poucos, de uma maneiro ou outra,
elas vão exsudando uma matéria viscosa, lenta e reflectiva de
muitos desassossegos da nossa própria existência. Não de uma
maneira panfletária e directa, mas revestindo-a, como dissemos, por
uma patina de absurdo.
Por
absurdo
aqui queremos mesmo entender o género literário que leva esse nome
com toda a propriedade. Mundos aparentemente coincidentes com os
nossos onde factos extraordinários levam a uma reacção sem
paixões, quase indiferente, da parte das personagens que os habitam.
Tal como no caso de Ben Katchor, grande figura tutelar desta série
do autor português (se bem que o universo de referências – quer
aquelas que são instrumentais nos argumentos, atitudes e jogos de
referências quer aquelas que precisamente surgem apenas como cor e
referência), a passagem por todas estas situações é feita sem
quaisquer laivos de melodramatismo, de um modo até mesmo monótono –
corroborado pelo trabalho de figuração do autor, e as ecolines
submissas a uma paleta reduzida de sépias, ocres, mostardas... O que
de forma alguma serve como valorização literária, artística,
estrutural ou cultural em relação aos livros, é tão-somente uma
descrição objectiva que informa a cadência com que as composições
nos vão sendo apresentadas.
Tendo
abandonado a produção da banda desenhada, por razões inerentes ao
modo como o seu círculo de recepção, distribuição,
comercialização e divulgação funciona à bolina no nosso país,
não há porém qualquer razão para esquecer a obra de José Carlos
Fernandes e o modo como ele contribuiu para uma prática singular
desta forma de arte entre nós, mais devedora a processos de criação
de autores alternativos internacionais do que a espartilhos locais.
Curiosamente, a sua escrita tem dado azo a toda uma série de
projectos teatrais, cinematográficos e outros, quer haja explícitas
referências (e autorizações, trabalho de adaptação, etc.) quer
não (como o caso deste
espectáculo, que não faz referência a JCF, mas dele parece
partilhar muitos elementos).
Uma
forma de celebração e memorização está então patente nestes
volumes.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta dos livros. Imagens da
própria editora.
Alguem conhece o contacto do Jose Carlos Fernandes? Para um trabalho..
ResponderEliminarCaro George f,
ResponderEliminarNão tenho o hábito de partilhar contactos de uma forma imediata nem em público. Se desejar, poderei re-enviar uma mensagem ao J.C. Fernandes, caso o desejar, sendo o meu email pedrovmoura +arroba+gmail.com
Obrigado,
PM
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