16 de outubro de 2014

A pior banda do mundo (2 vols.). José Carlos Fernandes (Devir)

Num panorama de produção e distribuição de jornais a nível nacional, com vários diários e semanários de referência, e jornalismo da especialidade (futebol, entretenimento, etc.), não deixa de ser surpreendente que ainda sobrevivam determinados jornais de interesse absolutamente local, associados a uma mão-cheia de freguesias e que se dedicam a notícias que se circunscrevem a um espaço reduzido. Exemplos são o Ecos de Cacia ou o Jornal Torrejano. Focando em interesses culturais, gastronómicos, desportivos e políticos, ou outros, de um interesse comunitário, poderá parecer aos forasteiros matéria de indiferença, mas a sua leitura – sobretudo se fora de quaisquer elos - traz-nos sempre uma ideia de estranheza quase insuperável. O que não deixa de ser um estímulo para o pensamento sobre mundos paralelos, cujos ecos em relação ao nosso nos regressam distorcidos, mas ainda assim possibilitados de iluminar algum aspecto que se nos torna subitamente familiar onde era apenas estranheza ou desconhecimento, ou pelo contrário, que torna estranho aquilo que nos era quase natural. (Mais) 

Na ciência literária há um termo curioso para descrever palavras que apenas tiveram uma instância – por exemplo, surgindo apenas uma vez em toda a história de uma determinada língua, ou na obra de um escritor -: hapax legomenon. Por metonímia ou mesmo empréstimo metafórico, poder-se-á dizer que um hapáx é um fenómeno singular que não se espera ver repetido em quaisquer circunstâncias.
Ora, procurando duas linhas rectas convergentes destas noções, os dois volumes da capa dura que coleccionam todos os seis tomos da série A pior banda do mundo, de José Carlos Fernandes, poderemos dizer que o que temos aqui é uma espécie de imprensa local de acasos únicos, motivo de celebração dupla: por estarem reunidos num objecto que se promete de maior longevidade nas bibliotecas desmemoriadas da banda desenhada portuguesa, e por não se preverem repetições destas estrambólicas profissões, fenómenos, instituições e mesmo personagens. Elas levam a arvorar como lema aquela frase de Borges de considerar os espelhos e a reprodução como abomináveis por multiplicar o homem.

Recordemos os títulos originais dos tomos: O quiosque da utopia, O museu nacional do acessório e do irrelevante, As ruínas de Babel, A grande enciclopédia do conhecimento obsoleto, O depósito dos refugos postais e Os arquivos do prodigioso e do paranormal. Invariavelmente um substantivo descrevendo uma instituição, pequena ou grande, pública ou privada, moderna ou histórica, que encerra depois objectos no seu interior. E, as mais das vezes, todos eles tingidos por noções de não possuírem qualquer utilidade ou ligação concreta ao nosso mundo. Não há nada a aprender, nada a comprar, nada a esperar. A própria desculpa mecânica das narrativas – uma suposta péssima banda de jazz povoada por patéticas criaturas, cada qual com profissões igualmente irrelevantes – de forma alguma promete ou ajuda a consolidar as narrativas (a esmagadora maioria das quais de apenas duas páginas) num enquadramento maior que não o da total irrelevância. O autor não cria de forma alguma personagens que ganhem contornos passíveis da simpatia ou mesmo empatia do leitor. Poder-se-ia dizer mesmo que estas pequenas narrativas são um exercício de desprovimento da emoção, com vista à pesquisa do absurdo total, mas que, malgré lui, atinge um determinado grau de humor, estímulo à curiosidade, espelho de reflexão, e, quem sabe, comoção.

Então que nos leva a ler estas páginas de notícias de um mundo estranho, de acasos que jamais se repetirão, seja o fenómeno de lâmpadas piscarem em Morse, a teoria literária que relaciona a dieta dos autores com os tratamentos ambientais, a serrilhação dos selos, o melhor concorrente de concursos televisivos que jamais concorre, ou o arquivamento de sonhos? É que aos poucos, de uma maneiro ou outra, elas vão exsudando uma matéria viscosa, lenta e reflectiva de muitos desassossegos da nossa própria existência. Não de uma maneira panfletária e directa, mas revestindo-a, como dissemos, por uma patina de absurdo.

Por absurdo aqui queremos mesmo entender o género literário que leva esse nome com toda a propriedade. Mundos aparentemente coincidentes com os nossos onde factos extraordinários levam a uma reacção sem paixões, quase indiferente, da parte das personagens que os habitam. Tal como no caso de Ben Katchor, grande figura tutelar desta série do autor português (se bem que o universo de referências – quer aquelas que são instrumentais nos argumentos, atitudes e jogos de referências quer aquelas que precisamente surgem apenas como cor e referência), a passagem por todas estas situações é feita sem quaisquer laivos de melodramatismo, de um modo até mesmo monótono – corroborado pelo trabalho de figuração do autor, e as ecolines submissas a uma paleta reduzida de sépias, ocres, mostardas... O que de forma alguma serve como valorização literária, artística, estrutural ou cultural em relação aos livros, é tão-somente uma descrição objectiva que informa a cadência com que as composições nos vão sendo apresentadas.

Tendo abandonado a produção da banda desenhada, por razões inerentes ao modo como o seu círculo de recepção, distribuição, comercialização e divulgação funciona à bolina no nosso país, não há porém qualquer razão para esquecer a obra de José Carlos Fernandes e o modo como ele contribuiu para uma prática singular desta forma de arte entre nós, mais devedora a processos de criação de autores alternativos internacionais do que a espartilhos locais. Curiosamente, a sua escrita tem dado azo a toda uma série de projectos teatrais, cinematográficos e outros, quer haja explícitas referências (e autorizações, trabalho de adaptação, etc.) quer não (como o caso deste espectáculo, que não faz referência a JCF, mas dele parece partilhar muitos elementos).

Uma forma de celebração e memorização está então patente nestes volumes.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos livros. Imagens da própria editora. 

3 comentários:

  1. Alguem conhece o contacto do Jose Carlos Fernandes? Para um trabalho..

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  2. Caro George f,
    Não tenho o hábito de partilhar contactos de uma forma imediata nem em público. Se desejar, poderei re-enviar uma mensagem ao J.C. Fernandes, caso o desejar, sendo o meu email pedrovmoura +arroba+gmail.com
    Obrigado,
    PM

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  3. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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