Quando mencionámos o novo
projecto deste artista, Arsène Schrauwen, conhecíamos já a
versão original deste livro, Le miroir de Mowgli, mas foi com
surpresa agradável que descobrimos ter sido produzida esta nova
versão, publicada em Portugal. Ela difere da primeira em termos de
formato, ligeiramente maior agora (ver nota final), pela técnica de
impressão (correcção: ver comentários) e, consequentemente, pela cor (onde no original duas cores
se complementavam – um amarelo mais torrado e um azul mais claro,
dando origem a pontos de encontro de um vívido verde – aqui usa-se
antes um laranja e um azul mais comedidos, levando a um ambiente mais
sóbrio). (Mais)
As quatro primeiras
páginas abrem para um jovem selvagem – mito a que a história do
The Jungle Book pertence, mas terá outros “primos” - numa
selva tropical encontrando-se com um orangotango. Macaqueam-se entre
si, sendo complicado perceber quem inicia as acções e quem as
imita, levando somente a estruturas de páginas simétricas, com a
diferença das criaturas cumprindo os gestos. Após uma mão-cheia
dessas imitações, o autor mostrar como o filamento que os separa
entre vinhetas se pode ultrapassar, e rapidamente eles passam a
ocupar um espaço comum. Descobrimos depois que o orangotango era
fêmea, e que estava grávida. Nada nos permite dizer que a gravidez
é da responsabilidade do humano (muito menos a ciência), mas este
parece aceitar esse papel com bonomia e gosto. Mas é sol de pouca
dura quando o lobo (Raksha, a mãe?) se lhe junta, mostrando uma
união impossível de entender pela mãe símia. Segue-se uma fuga
com fim trágico. Mogli parece assim inscrever-se num mundo
totalmente apartado do dos animais: nem presa nem predador, nem de
uma espécie nem de outra, a segunda parte do livro lança-o numa
incessante e obsessiva busca por companhia e uma nova família.
Vários momentos o lançam contra reflexos e ilusões, uns mais
dramáticos que outros, e alguns deles desviando-o também do que
imaginaríamos ser as emoções humanas: quando se depara com um
esqueleto de um pequeno símio, supostamente o do “filho”, não
se emociona, as aborrece-se.
É curioso que este Mogli
encontre um orangotango, e não um chimpazé. Se é este último
aquele que mais próximo está do ramo do homo sapiens sapiens, é
aquele outro que, num determinado imaginário aparentaria uma
melancolia quase reflexiva do homem, e até por, historicamente, ter
sido a sua descoberta que deu início a investigações mais
racionais e controversas sobre a possibilidade da ligação do homens
aos ditos primatas inferiores. O espelho de Mogli pode ser
visto então como uma espécie de reflexo sobre o papel do homem no
papel biológico a que cada vez menos pertence. Falar de adaptação
aqui não faz qualquer sentido, sendo o assunto comum entre o livro
de Schrauwen e o de Kipling uma mera coincidência sem mecanismos de
grande importância. É apenas uma jogo superficial para as criações
também superficiais – formais, cromáticas, de estrutura – do
livro em si. Mas há outras questões profundas. Não abdicando do
humor, da fantasia e as revisitações de géneros que parecem já
tipificar a linguagem e abordagem deste autor, há algo aqui da
natureza humana que é procurado e tornado mais ou menos claro, mesmo
que de uma forma também ela tão distorcida quanto um espelho
deformador. A natureza narrativa ou mesmo linear do livro oferece a
possibilidade de uma “aventura”, de um percurso, ou até mesmo um
progresso, à la Hogarth, cuja referência também surgiria como
tutelar se tivermos em conta que a aventura deste Mogli o leva,
depois da procura, à obsessão, seguido da loucura e finalmente ao
eclipse total. Isto é, quando o seu reflexo, tantas vezes adivinhado
em superfícies, ganha corpo próprio, e o remete a renovar os gestos
do início, oferece-lhe também a hipótese, literal, de mergulhar em
si mesmo, o que lhe anula a presença nas páginas do livro.
O oráculo de Delfos
continha duas lições inscritas no seu portal: “conhece-te a ti
mesmo” e “nada em excesso”. Será possível que o
auto-conhecimento também poderá ter um excesso? Será esse excesso
aquele atingido por Mogli? Eis uma possível interpretação de um
exercício visual, narrativo, estrutural mas também filosófico, na
banda desenhada, magnífico da parte deste autor.
Nota final: imagens retiradas do blog da editora.
não é risografia!
ResponderEliminare pedias imagens para o post..
hasta
M
Pensava que me tinhas respondido que sim, mas provavelmente fiz mal a pergunta. Está corrigido. Se puderes enviar imagens melhores, substituo estas. Obrigado!
ResponderEliminarp
essas específicas ou outras quaisquer?
ResponderEliminarComo te der mais jeito, obrigado, mas pelo menos a capa e aquelas onde a simetria é mais evidente...
ResponderEliminarPedro
http://gentebruta.blogspot.pt/#!/2014/08/026-o-espelho-de-mogli.html
ResponderEliminarentão e que tal se fosses aqui sacar invés de fazer esses scans terríveis?
jísuz!
M
Já está, obrigado!
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