Há relativamente pouco tempo,
deparámo-nos com um livro infantil que discorria sobre a história
de Portugal. Numa frase, explicava-se como a conquista do norte de
Ceuta e outras das políticas expansionistas admitiriam o alcance do
mercado da “pimenta, canela, escravos, marfim e outros produtos”.
O que constitui matéria de discussão, e que deveria ser chocante, é
que, mesmo que do ponto e vista estritamente economicista – o qual
tem tomado conta incrementalmente de mais áreas da vida humana - a
palavra “escravos” não apenas se encontre sem quaisquer
qualificações naquele arrolar de “produtos” como numa posição
da ordem sem qualquer particularidade. Como se a desculpa de “o
tempo histórico” fosse desculpa para eliminar as diferenças entre
especiarias, derivados vegetais, minerais raros e… seres humanos. (Mais)
É quase natural (mas não sempre, e há
excepções iluminadoras) que a cultura popular, ou mesmo aquilo que
passa por “senso comum” vá um ou dois passos atrás em relação
a um pensamento mais arguto e informado. O estudo da absoluta
violência e crime que constituiu a escravatura associada às
expansões dos Impérios é matéria de longa exposição e debate
nas disciplinas da história e outras, já para não falar das
próprias populações que a sofreram na pele, mas as mais das vezes
ela surge como pano de fundo ou simplesmente “facto” nas
narrativas, semi- ou totalmente ficcionais, que vão alimentando o
imaginário popular. Mas se ela é um “facto” inegavelmente, não
pode ser vista como uma simples informação pertencente à
circulação económica de produtos. Se a escravatura é um facto
determinante no desenvolvimento dos meios de produção do
capitalismo e da história do trabalho, há uma dimensão humana
tremenda que deve ser permanentemente recordada. Para um cidadão
português, eticamente falando, se admitirmos que podemos sentir
orgulho nas conquistas culturais, sociais e os contactos humanos
proporcionados pela expansão do Império Português, também
deveríamos assumir responsabilidades pelos aspectos negativos,
cruéis, desumanos dessa mesma acção, cujas consequências ainda
hoje não deixam de fazer sentir as suas reverberações. E pouco
importa “distribuir a culpa”, ou procurar paliativos a essa
realidade – como o mito indelével de que seríamos o primeiro país
a abolir a escravatura e, por magia, ela terminasse, e
concomitantemente eliminasse a sua herança. Ao argumento de “não
pertenço a essa geração, logo não tenho culpa nem sou
responsável” deveria corresponder também a ideia de “não
pertenço a essa geração, logo não me sinto orgulhoso de algo que
não fiz nem cumpri”.
Cumbe é constituído por quatro
contos, todos eles tendo como protagonistas escravos negros das
plantações e dos engenhos de açúcar no Brasil. Alguns são
africanos tout court, outros já nascidos no Brasil, e pelo
menos num caso filhos de um branco que violara uma menina escrava.
Cada um desses contos foca dimensões diferentes da vida desses
escravos, até por explorar igualmente geometrias diferentes de
relações: um casal de apaixonados, que se dividem entre eles pelo
sonho da fuga e a preferência de ficar no conhecido; a horrível
“economia” dos bebés nascidos na escravatura; a traição entre
as fileiras dos escravos revoltosos que tentam fugir e construir os
quilombos, onde podem viver numa liberdade; a violência necessária
para essa libertação.
Aquilo que se torna a espinha dorsal,
de ferro mesmo, de Cumbe, é o modo como é a voz dos escravos
a que toma o lugar central. Existe, na verdade, muito pouco texto,
raras vezes surgem legendas recitativas, e estas pertencerão sempre
a uma das personagens. Mas a focalização, mesmo que por momentos
possa centrar-se num dos fazendeiros e donos de engenho portugueses
(brancos), quer reforçar sempre o papel e os gestos e a vida dos
escravos negros. É a vida deles, e sublinhe-se a ideia de vida,
no seu quotidiano, na sua dimensão humana, onírica, de esperança,
cultural, de angústias e amores, a que oferece a sua matéria
plástica a Cumbe.
Marcelo D’Salete cruza neste livro o
seu interesse pela cultura negra e a História do Brasil. Mereceria
uma melhor abordagem, compreender o que significa a cultura negra no
Brasil, ontem e hoje, a forma como a sua formação tem a ver com uma
adaptação de uma cultura violentamente desenraizada dos seus locais
de origem, em si mesmos diversos, ricos, complexos, e transplantados
para um forçado e súbito convívio noutro local, e sob um diálogo
desigual com, pelo menos (no início dessa história), duas outras
culturas, a dos colonizadores brancos portugueses e a dos povos
autóctones (ausentes em Cumbe). Mas não temos os
conhecimentos para tal. Apenas se compreende, pela leitura deste
livro, e pela sua colação aos seus anteriores, igualmente feitos de
relatos curtos que vão convergindo numa ideia central, NoiteLuz
e Encruzilhada, que D’Salete não cria discursos inflamados
nem panfletários, mas colocando personagens negras nas histórias,
desloca um forma de atenção que muitas vezes, em relação a esta
população, passa pela ausência. Aqui, ganham corpo e voz.
Cumbe é mesmo matizado por
toda uma série de elementos dessas culturas africanas, tirando
partido dos grafismos dos povos, as suas lendas, as suas danças, os
seus mitos e crenças, e as suas línguas. Não é por acaso que a
primeira cena do primeiro conto abre com um dos ideogramas quiocos
(um povo de Angola) e a última história termine com a presença do
Quibungo, uma espécie de monstro com uma boca terrível nas costas
por onde engole as pessoas, e que parece ter ganho forma definitiva
já no Brasil. Não é que se pretenda criar uma oposição clara
entre uma cultura própria e com fundamentos da escrita (mesmo que
ideogramática) e a oralidade posterior dos povos desenraizados numa
nova terra, mas há um claro deslocamento de uma inscrição num
espaço próprio para a fuga pela fantasia. Quase todas as histórias,
aliás, têm um ou outro momento fantasioso, em que os sonhos, as
ilusões, alucinações ou lendas ganham um corpo físico, de tinta
no papel, com um direito à cidadania idêntico ao das restantes
personagens e eventos (algo que noutro local chamamos de “ink
ghosts”, “fantasmas de tinta”). E essa seria uma dimensão
curiosa de analisar, com cuidado e balizada por outros estudos, sobre
as características da cultura negra aventada acima.
O título do livro é uma palavra
congo-angola (yaka) que demonstra desde logo a força da polissemia
dessas línguas africanas, uma vertente que se tornaria ainda mais
pujante com os contactos com o português e outras línguas (é
inegável que a norma brasileira tem uma plasticidade bem mais
vincada, nem sempre por vezes apreciada por uma perspectiva mais
normativa, naturalmente). No glossário final, preparado pelo autor,
o editor, e Allan da Rosa, escritor dedicado a várias vertentes da
Educação Popular e com um particular interesse pelas culturas de
origem africana (e que também assina o breve posfácio), indica-se
que “[cumbe] tem também os sentidos de sol diz, luz, fogo e força
trançada ao poder dos reis e à forma de elaborar e compreender a
vida e a história”. Desta maneira, o seu emprego enquanto sinónimo
de quilombo, título de um dos contos e título do livro inteiro,
pretenderá criar uma imagem apresentada num conjunto global, em que
todos os seus elementos individuais, não se subsumindo nem sumindo,
arvoram uma força compacta. O glossário e a bibliografia final
convida a uma pesquisa continuada, noutras fontes, mas em si mesmos
estes contos são já um modo de compreender a forma como a
respiração antiga das línguas bantu, como o kimbudo, o umbundu, o
bacongo, etc. enfim, dos povos que habitavam os espaços que viriam a
ser conhecidos mais tarde por Congo e Angola (exercendo-se desde logo
uma imposição de categorias externas , impostas sobre os povos
locais, agregando onde não existiam alianças, dividindo onde
existiam famílias) sobreviveria. Como se depois de se terem desfeito
os novelos pela violência do colonialismo, a deslocação das
pessoas e a escravidão, estas procurassem uma resistência
reutilizando os fios para tecer novos panos.
De um ponto de vista estruturalmente
restrito, no que diz respeito à fabricação da banda desenhada, a
surpresa de Cumbe está na sua tranquilidade. Apesar de tudo,
com um “tema” mais contundente e politicamente anguloso, a
intensidade emocional é profunda, mas expressa de modos indirectos.
O autor evita, portanto, qualquer tipo de melodrama ou, pior, um
aproveitamento sentimentalóide de um passado para arvorar-se numa
qualquer posição de “privilégio da vítima”. Não há sinal
de identificação do autor e das suas personagens, se bem que não
se possa negar que haja o vivo interesse, repetimos, em explorar a
dita cultura negra, falada na primeira pessoa – o que aponta desde
logo que é um facto inolvidável, uma vez que um autor branco
tem a “liberdade” de falar de tudo o que quer, sem cair jamais
numa constrita “cultura branca”.
Não queremos dizer que não existem
aqui momentos da mais profunda crueldade, do mais sentido amor, que
se expressa mesmo no extremo do morticínio, do ódio mais produtivo,
da raiva mais destruidora. Todos esses sentimentos estão aqui, são
expressos, ditos, mostrados. D’Salete não faz com que as suas
personagens os profiram dramaticamente, porém, mas numa pequena
expressão do rosto, que ele molda de forma subtil (repare-se nas
várias estratégias de representação dos olhos, por exemplo), num
gesto, no modo como são colocados no plano da imagem, graças a
escolhas de perspectiva, de posicionamento, de coordenação das
vinhetas na página. Se nos dois livros anteriores, passados no
tecido urbano, viviam de tensões permanentemente presentes nos
embates entre tantas pessoas, aqui os espaços são mais alargados, a
luz do dia mais solarenga, a escuridão da noite menos ininterrupta.
Há páginas onde o branco da página toma conta de tudo (sobretudo
nas partes de “fantasia”, que curiosamente recordam algumas cenas
de Mignola [como aquela presente neste parágrafo]), e outras onde a estilização, sobretudo da natureza [veja-se a primeira, após a capa, acima],
quase transforma os relatos numa dimensão mágica, de conto
infantil, popular, oral. Todavia, mesmo perante histórias de vidas
tão sofridas, há uma espécie de dignidade, de silêncio - que o autor emprega recorrentemente - mesmo no
meio da voz, de acalmia mesmo no centro do tumulto, que perpassa por
todas elas.
Os instrumentos do artista continuam a
ser os mesmos: desenho a linha, sempre fina e ligeiramente trémula,
talvez uma caneta, e depois a aplicação de grandes manchas negras
com pincel, sem preocupações de preenchimento preciso, mas bem pelo
contrário permitindo que os pingos, as extremidades secas, o arrasto
do pincel, isto é, os excessos não-representativos contribuam para
a expressividade da matéria visual. E nesse trabalho há como que um
subtil aclaramento em relação aos anteriores, como se, no meio de
toda as penas e mágoas infligidas sobre estes corpos, de seres
humanos, e não meros produtos dos processos históricos, o sol de
Cumbe brilhasse apesar de tudo.
Nota final: agradecimentos ao autor,
pelo envio do livro.
Salve. Já havia ouvido falar da obra. Ontem, no CCBBSP - Presença africana no Brasil, tive oportunidade de breve contato com ela, nas mãos do sr. Claudinei Roberto Silva, coordenador do evento. Tomei a liberdade de pesquisar e postar informações relacionadas ao livro Cumbe, em nosso blog, o Cabeças Falantes. Espero estar ajudando a multiplicar...
ResponderEliminarSalve. Já havia ouvido falar da obra. Ontem, no CCBBSP - Presença africana no Brasil, tive oportunidade de breve contato com ela, nas mãos do sr. Claudinei Roberto Silva, coordenador do evento. Tomei a liberdade de pesquisar e postar informações relacionadas ao livro Cumbe, em nosso blog, o Cabeças Falantes. Espero estar ajudando a multiplicar...
ResponderEliminarSaravá. O que importa é espalhar a notícia!
ResponderEliminarObrigado,
pedro