10 de dezembro de 2014

Les trésors de Tintin. Dominique Maricq (Casterman/Moulinsart)


Este livro-objecto segue à risca a metáfora pretendida pelo título, e pode ser considerada como uma espécie de “arca de tesouros”. Fisicamente, é uma caixa no interior da qual se encontra um livro de capa cartonada e um envelope que carrega toda a espécie de documentos em papel em fac-símile (parece existir uma outra edição ligeiramente diferente na distribuição). Este é um objecto, portanto, que tanto servirá a estudiosos da banda desenhada em geral, como da franco-belga em particular, mas também, como é fácil de imaginar, os tintinófilos mais completistas e os fetichistas dos livros em geral. (Mais)
O livro é grande, e profusa e generosamente ilustrado, como não poderia deixar de ser, e apresenta-se como um estudo breve “genético” de cada um dos álbuns da série de Hergé por D. Maricq. Sendo este o principal arquivista em Moulinsart, compreende-se que o intuito deste projecto é apresentar uma história cronológica da obra de Hergé, mas em que o contributo principal passa por uma relação ou colação directa com os documentos que fazem essa mesma história. Isto é, é possível que, sob a luz das várias biografias existentes, a monumental Chronologie, e, obviamente, a longuíssima lista de livros mais ou menos de investigação dedicados ao autor e à obra (como aquele de Fresnault-Deruelle de que falámos há pouco), não existam aqui propriamente descobertas ou novidades, mas existirão, sem dúvida alguma, pequenas inflexões sobre esse conhecimento.

A estrutura do livro é bastante simples e convida àquela leitura rápida, de consulta, típica dos “coffee table books”. Existem quatro capítulos centrais, que compreendem blocos cronológicos mais ou menos distendidos (apenas o segundo, intitulado “o tempo das obras-primas”, se encerra entre os anos 1940-1944), e cada um deles apresenta secções separadas: ora “caixas” – a que chamam “zoom” - sobre relações pessoais, estratégias comerciais e de comunicação, outros títulos ou trabalhos de Hergé, curiosidades – ora parágrafos concentrados em torno de cada um dos títulos. A paginação ainda oferece uma espécie de “selos” onde vão sendo apresentadas todas as personagens que compõem o mythos de Tintim, já para não falar novamente da qualidade das imagens.

Naturalmente que o discurso não é propriamente crítico, se bem que seja discutível se há uma aberta defesa incondicional. Mas como não pode deixar de ser da natureza de um projecto da instituição que detém os direitos da personagem, e de um seu funcionário, mesmo quando se fazem concessões às críticas da obra inserida no seu tecido cultural, isso acontece precisamente nessa forma… uma concessão, e não propriamente uma entrega na argumentação. Seja como for, para que se discuta balizadamente os aspectos mais controversos – os aspectos dos autores e obras que influenciaram Hergé, a dimensão colonialista de Tintim no Congo, a questão da colaboração quando da ocupação alemã da Bélgica – será necessário um instrumentário textual mais alargado, que não tem lugar numa obra deste tipo, mais inclinada para o celebratório.

Não obstante, é precisamente no seu aspecto celebratório e até fetichista que este volume pode contribuir de forma decisiva a um estudo contextual da produção desta obra, até mesmo na sua dimensão de materialidade, tão fulcral nos tempos que correm mesmo no seio da crítica textual. Como dissemos, o conjunto apresenta um envelope no interior do qual se encontram 22 documentos fac-similados: uma carta do punho de Hergé, datada de 1934, ainda com o logotipo da sua empresa de publicidade e ilustração; algumas folhas mostrando os primeiríssimos esboços ou estruturação das páginas de Tintim (o doutor Müller em várias posições, uma página de Voo 714 para Sydney, outra de l’Alph-Art); materiais promocionais variados (um poster exclusivo para bibliotecas de 1947, um postal de boas festas de 1954 enviado a um grupo selecto, cromos-anúncio); materiais de produção (um caderno de apontamentos de ideias, desenhos rápidos, pormenores a usar mais tarde, uma prancha com um teste de cor, a ilustração da capa de O Segredo do Licorne, uma prancha inédita de Tintin e os Pícaros, apresentando separadamente a prancha de cores, e acetatos com a linha a preto e o texto); e ainda fac-símiles das publicações originais de alguns dos títulos (a edição de le petit XXe de 10 de Janeiro de 1929 onde surgem Tintim e Milou pela primeira vez, a do primeiro número da revista belga Tintin, datada de 26 de Setembro de 1946, com a magnífica capa abrindo O Templo do Sol, com a paginação em formato italiano no interior, e ainda a primeiríssima página d’O segredo do Espadão, de Jacobs, um teaser em papel  de 1950 anunciando a publicação de On a marché sur la lune na revista Tintin).

Como se imagina, alguns destes objectos são enormes (os posters e as ilustrações das capas), outros mínimos (o postal, o cromo), outros do tamanho usual de manipulação (as publicações), mas o mais importante é a possibilidade que nos dão precisamente de os manipular nos seus formatos, tamanhos e até mesmo texturas diversas (os papéis de cada documento é bastante variado). Dado não ser possível manipular os documentos originais, esta é uma forma de nos aproximar dessa dimensão o mais possível e poderá ajudar, em muito, um estudo genético, editorial, contextual da edição-publicação de Les aventures de Tintin. Se seguramente este volume fará as maravilhas dos tintinófilos, não é de somenos importância num seu uso mais conduzido no que diz respeito à sua abordagem crítica, histórica, etc.

Inegavelmente, este livro continuará a contribuir para a mitificação não só da personagem como do seu autor. Em muitos aspectos, por exemplo, continua aqui (tal como nos livros-encómio do autor pela Moulinsart, tal como no museu, etc.) o “isolamento” de Hergé, o que poderá criar a ideia de que antes de Hergé era o deserto, e após ele o dilúvio. É um tremendo desserviço à história contextualizada e séria da banda desenhada (belga e não só), mas estas dimensões “arquivistas” são importantes na medida em que se materializam e, assim, passam a estar disponíveis a outros usos, guiados por outros princípios. Dar-lhes uso, portanto, é responsabilidade dos leitores-utilizadores.

Nota final : agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

Sem comentários:

Enviar um comentário