É tempo de
celebrarmos o nascimento de Jesus, o Cristo. Com essa celebração, também se
pensa na família, esse gigantesco pilar da sociedade moderna, verdadeiro berço
da construção do indivíduo, cadinho dos valores identitários de uma cultura.
Celebram-se os laços férreos que unem os membros da família, a espessura do
sangue que lateja de emoção. E outras tretas do género, representadas o melhor
possível por essa invenção agora posta em causa, o presépio. (Mais)
Posto em causa de
duas maneiras. Por um lado, em 2012, o Papa Bento XVI havia declarado que a
vaca e ao burro não deveriam ter lugar na cena da Natividade, uma vez que se
baseariam num “mito”... como se tudo o que dissesse respeito ao Presépio,
possivelmente idealizado por São Francisco de Assis, portanto numa data tardia
e avançada na expansão europeia do Cristianismo, não tivesse desde logo um ou
mais fundamentos mitémicos. Até se poderia ir mesmo mais longe nesta questão,
como se pode imaginar. A outra forma de pôr em causa é aquela que é
providenciada pelo humor cáustico desta colecção de tiras de José Pinto
Carneiro e Álvaro (Santos).
Produzidas entre
2011 e 2012, estas tiras estão ainda hoje disponíveis no site do artista, e a
sua edição em papel levou à angariação do prémio do Festival da Amadora na
categoria de tiras humorísticas. Em termos estruturais, cada página corresponde
a um gag, uma curtíssima anedota, mas a sua coordenação leva a que se
criem duas ou três linhas narrativas de continuidade, ou pelo menos que
contribuem para um texto maior. E se essas piadas todas criam situações ora
mais absurdas, ora mais virulentas, ora mais tontas, e os graus de humor
flutuem de acordo com esses contornos, o propósito geral é mantido num rumo, a
saber, a de criar uma fortíssima sátira em relação aos princípios hipócritas
que pautam os “valores de pater familiae” preconizados pela Igreja Católica (e outras),
que ainda são o substrato religioso-cultural principal no nosso país. Afinal, e
como demonstra de imediato a primeira tira, como é que podemos encontrar ali o
berço desses valores se a figura paternal... não é o pai?
É claro que com
toda a complexidade dos dogmas religiosos, e as convenções ou explicações
filosóficas do Cristianismo, entender-se-á de uma forma ou de outra a correcção
e necessidade destes princípios mitológicos. A vida ou pensamento da(s)
divindade(s) não se pode pautar por meras preocupações ou elementos humanos, ao
rés-da-terra. Todavia, é precisamente a sua transformação em princípios
literais, ou provocar desvios absurdos – a antropomorfização dos animais, a
mistura entre elementos históricos e da contemporaneidade, da suposta
circunstância antropológica de uma família judaico-aramaica e a situação de
famílias pobres das nossas sociedades -, que tornam No presépio... o
chorrilho de situações cómicas, hilariantes, que pretender ser.
Afinal de contas,
pôr em causa os tais pilares da família deveria mesmo ser o chamamento
espiritual dos autores, não apenas de banda desenhada, claro está, mas tendo em
conta o papel que este meio teve durante décadas de instrumento de propaganda
de determinados valores de heteronormatividade, faz-lhe bem escapar desse
papel. Havíamos já falado de um livro de Bastien Vivès, mas muitos outros se poderiam
arrolar. No presépio... continua nessa tradição, mas abordando de forma
directa aquela configuração que é sempre apresentada como a “família ideal” e
estranhamento espelhando, por antecipação, aquela construção do
tardo-capitalismo que seria conhecida por “família nuclear”. Esta última é uma
invenção societal estado-unidense, e que seria importada para outros locais,
como entre nós, mesmo sabendo-se que a adaptação a esse modelo nasce mais de
limitações económicas do que de uma plena inscrição nos mesmos valores
preconizados pelo modelo original. Famílias existem muitas, em termos de
configurações, e todos sabemos que por vezes esses laços são antes fruto de
tensões e até de terríveis crimes, que não têm lugar noutro tipo de elos (acima
de todos, os da amizade, visto com razão pelos gregos como o mais alto modo de
associação entre os homens e mulheres). Se há pessoas que empregam frases tais
como “não se devem renegar as raízes” como uma espécie de orgulho bacoco pelas
circunstâncias sociais em que nasceram, como se fosse nobre relembrar os demais
da lama em que se nasceu, há outros que terão a fortuna de se tornar melhores
seres humanos do que o berço que os viu nascer – isto quer em termos meramente
económicos, claro está, mas também no que diz respeito à cultura, aos limites
sociais, humanos, etc.
Esta Maria,
vaidosa, concupiscente, algo breijeira, este José, irascível, frustrado e dado
aos prazeres simples da vida, este burro, algo anarca, desconsolado e indómito,
esta vaca, pouco dócil mas ao mesmo tempo indiferente às grandes comoções que a
rodeiam, e este menino Jesus, cuja única função parece ser, à la Sammy Sneeze
(de McCay), interromper a acção com o seu tonitruante choro ou outros atropelos
típicos de recém-nascido, compõem uma família nada digna de ocupar os átrios
das igrejas.
Não sendo a
primeira vez que os autores colaboraram (o “Homem-Voador” é outra tira,
apresentada no blog Moda Foca e no blog do artista, mas mais virado para o humor em torno dos
super-heróis), No presépio... é a colaboração mais longa, coesa e de
certa forma encerrada (se bem que, para além do livro em si, existem vários
“anúncios” ou “tiras-notícias” metatextuais que continuam a expandir o mesmo
universo diegético). José Pinto Carneiro, que desdobra o seu labor literário
nas mais variadas formas, desde o romance policial humorístico (é possível que
tenha sido O estranho caso da boazona que me entrou pelo escritório adentro
o seu romance de maior sucesso crítico) a guiões de séries de televisão,
incorre aqui num exercício de blasfémias a metro, não apenas sob a forma da
própria premissa do livro, mas a cada frase, evento ou citação cultural (que
tem espaço para citar desde as cargas policiais portugueses a Quentin
Tarantino). O desenho de Álvaro é apresentado na sua tipificada forma simplificada
e efectiva, e onde a organização dos ritmos é, como sempre, exímia. Se bem que
o artista prefira, a maior parte das vezes, apresentar uma figuração sumária, o
que lhe permite não apenas uma certa rapidez de execução mas uma espécie de
“suficiência” na representação desejada, isso não significa que não haja
momentos onde procura ora momentos de maior precisão de rostos (sobretudo
naqueles que citam alguém real), ora uma capacidade vincada em mostrar as mais
diversas expressões dos seus personagens, ora ainda em criar cenas de maior
pormenor, como as cenas de grandes espaços identificáveis. É também verdade que
em muitos casos o autor utiliza aqueles recursos tipificados do estereótipo,
sobretudo no que diz respeito aos “Outros” étnicos – os Reis Magos, o próprio
José -, mas isso faz parte deste tipo de humor corrosivo que não observa regras
de decoro social ou limitações policiadas pelo “bom gosto” e o “bom senso”. De
forma que a representação do Papa Bento XVI como uma espécie de Yoda espera,
estamos em crer, ofender tanto os Católicos Apostólicos Romanos como os
Warsies. Esperemos também que consiga ambos fitos.
Nota final: imagens colhidas dos sites dos autores.
As cores, os cinzas, os gradiantes, as sombras e ademais tratamento de photoshop assim como a escolha da font: está a reter o estilo do Álvaro. Trocava tudo por um preto e branco mais espesso, crosshatch para texturas e lettering manual.
ResponderEliminarOlá.
ResponderEliminarTens toda a razão. Não entrei nessa discussão, mas eu também acho que a permanente assinatura em caracteres mecânicos, a assinatura à mão e a data, etc., são algo "ruidosos" para o desenho do Álvaro, que funciona melhor quando está isolado de maneira minimal. Mas também compreendo que existem formas mais rápidas de trabalhar e pôr material à mão de semear, a espalhar a palavra do Senhor.
A propósito, "...Previously" # 1 já está na meia, ao pé da chaminé. Obrigado!
Pedro