21 de dezembro de 2014

Sandman, Overture # 04. Neil Gaiman e J. H. Williams III (Vertigo)

Remetendo os leitores ao que dissemos sobre os números anteriores desta série (1, 2 e 3), escusamo-nos de repetir muitas das ideias e noções que ainda têm lugar neste quarto número, à medida que fazemos este exercício de leitura capitular. (Mais)

Encontramo-nos agora no âmago da trama daquela história que pretende ainda revelar segredos desta personagem, recuando ao seu mais recuado passado, quase mesmo à sua “origem” – como se se tratasse de um número, ainda que não tipificado, de Secret Origins, ou Year One… -, ainda que não se abstenham os autores de também relevar implicações do “presente”, sob a forma do avatar-Daniel de Morfeus. Aliás, esta convivência de “presentes narrativos” que têm complexas relações com o presente cronológico do conhecimento dos leitores é por demais uma das facetas mais buriladas por Gaiman, precisamente numa compreensão de que uma “mitologia” se cria não apenas na constante construção linear progressiva, mas na sua densificação retrospectiva, ma criação de elementos laterais, nos desenvolvimentos interrompidos ou somente indicados, de maneira a que a sua completação, virtual, conceptual, seja feita “fora dos textos”.

Esta desarrumação temporal é, aliás, a ideia principal que preside a este número, que vem recuperar o fim prometido do número 2 e do número 3. Se no primeiro caso, os Sandman (o humano e o felino) haviam prometido um encontro com o pai, que não teve lugar logo a seguir, no segundo viam a inexorável aproximação das estrelas, de cujas portas da cidade se preparavam para franquear. Ora são esses encontros que têm lugar neste número, mas qual é a precedência de uma sobre a outra? Qual a ordem entre eles? Qual a causa, qual a consequência? Os autores tentam construir os elementos da narrativa – as legendas narradas pelo protagonista, os vários caminhos coloridos debuxados por entre molduras “flutuantes”, etc. – para que possamos entender que o encontro com o pai de Sandman, como sendo uma rememoração de Morfeus, antes deste, o seu avatar, e a jovem companheira humana, Hope, entrarem na cidade das estrelas, onde terá lugar o conflito central deste número.

A identidade dos progenitores dos Eternos, ou melhor dizendo, os Infindos, apesar de ter estado sempre prometida e até levemente manifestada, tem aqui uma meia-revelação, quando conhecemos o pai, o Tempo. No entanto, para meio-entendedor, e mesmo imaginando-se que a identidade da mãe por ser revelada em passos futuros, ela é desde logo adivinhada pelas palavras do protagonista (e algumas escolhas judiciosas das imagens) no início deste número, e faz logo demonstrar a influência em sistemas mitológicos da Antiguidade, em que os elos de relação da família moderna não têm lugar em princípios tão elementares, aqui entendidos mesmo como matérias pré-categoriais, essenciais, primordiais. Todavia, esta inscrição num Tempo livre e não-linear faz todo o sentido num mundo de histórias múltiplas e concorrenciais. Nesse sentido, a “recuperação” e “integração” que Gaiman faz operar de Sandman no maior universo diegético da DC (pré-, pós- e ao lado das Crises, já na série original mas também neste corrente título) tem todo o seu perfeito sentido neste sendeiros de tempos cruzados, passíveis de serem trilhados de acordo com as mais diversas opções, sem que esses paradoxos ou contradições sejam impeditivos do percurso.

A outra grande linha neste número é o encontro com as estrelas, numa cidade que lhes pertence. A um só tempo este episódio recorda-nos e afasta-nos de “The Heart of a Star”, o conto desenhado por Miguelanxo Prado (de que falámos há pouco tempo) na antologia Endless Nights. Recorda-nos pois mais uma vez (ou será este episódio anterior ao encontro já lido?) estas personificações das estrelas – Sto-Oa, uma outra chamada “Eye of the Lonely” (uma referências obscura, mas talvez clara quando decifrada) e possivelmente Rao, a estrela de Krypton -, mas ao mesmo tempo afasta-se do ambiente anteriormente retratado. Se nesse conto havíamos visto um encontro de celebração, ameno, amistoso, mas que terminara em conflito aberto e desengano amoroso, aqui mantém-se sempre uma tensão hostil que termina com o aprisionamento de Morfeus (e suspense para o próximo número).
Gaiman continua, portanto, a jogar com as duas grandes linhas possíveis: revelar segredos e desvendar novos domínios, tornar claro aspectos mais obscuros da biografia da sua personagem e expandir as suas associações, olhar para o “passado” e abrir outro “futuro”. Mantendo-se a ideia, lá está, de linhas temporais paralelas, exploradas explicitamente pelas palavras do protagonista, e que não deixam, como sempre, de serem um meta-comentário à arte de criar histórias.

Se nos recordarmos do cerne emotivo da saga The Sandman, a do seu “crescimento”, “amadurecimento” ou mesmo “dulcificação” emocional, entendemos também nos eventos mais ou menos expressos em Overture as razões da sua irascibilidade, cinismo, distância, frieza que o haviam caracterizado ao longo de éons. Para já, ainda que num exercício extremamente limitado à psicologia humana, dir-se-ia que quem sai aos seus não degenera. No entanto, se havíamos observado, no prelúdio de The Doll’s House, a trágica história de amor entre a rainha Nada e Morfeus, e em “The Heart of a Star” o inevitável desfecho do seu enleio com Killalla (também seria interessante notar como na esmagadora maioria dos avatares e versões destas personagens, se mantém porém o binómio normativo dos géneros, e sua heterossexualidade), quer dizer, se tinha havido espaço para desenvolver todos os elementos que tornavam compreensível as flutuações de intensidades que contribuiriam para a crescente desilusão de Morfeus em relação às questões do amor (estivesse ou não a/o seu/sua irmã/o Desejo envolvida/a), não se passa o mesmo agora. The Doll’s House também já havia indiciado que tinha existido um “vórtex onírico” antes, e é precisamente isso o que testemunhamos agora, onde uma mescla de curiosidade, apaixonamento e desenlace cruel imposto pelos ossos do ofício de entidade dos sonhos é literalmente despachado em duas páginas, numa narração dentro da narração.

A arte de Williams III continua nos seus efeitos mais espectaculares (com a excepção das pranchas 1 e 24, que abrem e fecham o comic book, todas são spreads/double splash), mas também naquela economia em que uma análise mais cuidada revelará estar mais próximo do delírio, do entressonho, de forma livre e apaixonada até, do que num absoluto controlo de semiótica. Além disso, estratégias de citação mantêm-se. Há sobretudo dois (ou três) estilos aqui explorados, um reminiscente de alguma arte psicadélica dos anos 1960 (à la Glaser e Edelmann), para o encontro com o pai (e que o autor já havia explorado em Promethea), outro mais pictoral, onde as personagens que representam as estrelas não têm contornos a linha preta, e finalmente o “estilo chão”, usado quer nas restantes personagens quer nas histórias dentro da história maior. A cidadã das estrelas também parece citar, brevissimamente, aquela “logotectura” (termo de Alan Moore) nos títulos de The Spirit, de Will Eisner. Um estudo entre precisamente Promethea e Sandman. Overture poderia revelar as diferenças que um “mesmo” desenho atinge quando integrado em projectos narrativos bem diversos, o primeiro mais programático e sistémico, este mais exploratório das possibilidades, validando todas elas.

Continua…

Nota final: imagens, mais uma vez, de versão digital. 

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