19 de dezembro de 2014

Revoir Paris, e outros títulos relacionados. Benoît Peeters e François Schuiten (Casterman)

Para ser rever algo, é porque já se viu isso antes. Apenas com experiência directa é que se podem criar tessituras posteriores de memórias. As reminiscências são sempre restos de algo que passou. O que acontece quando não vimos, não se experienciou, não se passou por algo em concreto? Como é que se pode rever, rememorar, recordar essa mesma coisa? Podemos ter memórias em nome de outro? Podemos criar (não re-criar) memórias utilizando os mais díspares elementos, reais e fictícios, imaginários e herdados? Essa é possivelmente a trama central da aventura de Kârinh, a protagonista de Revoir Paris. (Mais) 

Em 1982, na seminal revista (A Suivre), que tanto contribui para o aumento gradual da dimensão “literária” da banda desenhada franco-belga (e depois de outras esferas), deu-se início a uma série celebrada criada pelo escritor e investigador Benoît Peeters e o artista François Schuiten, amigos de infância, nos primeiros passos de ambos numa esfera mais profissional (se ambos haviam colaborado em publicações “escolares”, o artista havia já publicado livros com o seu irmão Luc e o seu companheiro Claude Renard, com quem fez, a nosso ver, o seu mais enigmático livro, Le Rail). Como se sabe, o cerne principal desta série é que, por entre as suas várias histórias e personagens, o protagonismo central, temático e efectivo, pertence à ideia da arquitectura: enquanto disciplina de trabalho, de organização dos espaços e de objectos de habitação, mas também como reflecos de modos de organização societal e política. Um mundo onde a reificação da arquitectura é o princípio organizador das suas sociedades, a esmagadora das quais plutocráticas, ao ponto que se poderiam estudar cada uma das cidades como cidades-Estado que tivessem sobrevivido até à época da modernidade (como muitas outras obras herdeiras de princípios ideológicos e estilísticos dos anos 1980, Les Cités Obscures espelha uma certa Mitteleuropa).

Se estritamente Revoir Paris não faz parte da série Les Cités Obscures, este novo volume pode ser visto como uma espécie de celebração, balanço do processo de construção e devolução da imaginação cultivada e veiculada até agora pelos autores em relação à cidade que eles vêm como central (Schuiten, recordemo-nos, é belga, e Peeters, parisiense, viveu em Bruxelas durante largos anos). A celebração atravessa vários domínios. Toda a série será alvo de uma nova reedição, em que se apresentarão alterações. Se cada edição sempre foi alvo de pequenas adições, substituições ou mesmo correcções, esta poderá vir a ser a edição definitiva, abrindo caminho para uma abordagem crítica (no seu estrito sentido de crítica literária, enquanto ciência da edição) da série. Por outro lado, o álbum deu origem a uma exposição, com o mesmo título, que tem lugar na Cité de l’architecture & du patrimoine, em Paris, a qual tivemos a oportunidade de visitar, e da qual falaremos adiante. Ela reúne, em parte, os materiais empregues pelos autores na sua senda de investigação e pesquisa sobre a construção da Paris real e imaginária ao longo de séculos. A exposição, por seu lado, dá origem a uma publicação, que tanto poderá ser vista como “catálogo”, como extensão dessas investigações, como volume-companheiro de Revoir Paris, o álbum. Finalmente, a ocasião viu também a edição de uma publicação enorme, Images François Schuiten, uma espécie de portfólio de ilustrações do artista, desde aquelas que serviram para ilustrar o romance inédito de Jules Verne, Paris au siècle XX, a estudos da estação de metro de Paris por ele concebida (Arts & Métiers), trabalhos soltos, assim como associados a uma visão da grande Paris.

Revoir Paris conta a história de uma hipotética sociedade futura, em que a exploração espacial está relacionada com uma certa fuga da Terra, como que abandonada à sua sorte, inevitavelmente ligada a toda uma série de desastres, dos ecológicos aos económicos. Acompanhamos uma jovem mulher, Kârinh, que acompanha uma missão de dignatários mais velhos de um mundo-colónia (que nunca vemos) chamado “Arche”, que parece ser regrado pelos mais rígidos preceitos (ao ponto de que todas as mulheres parecem ser obrigadas a ter dois filhos). Esta missão de regresso à Terra, onde ela nunca esteve, numa nave chamada “Tube”, tem como missão recuperar talvez uma certa verve para esse “pseudo-Paraíso”, nas suas próprias palavras. O foco, porém, não é jamais nem nessa sociedade nem nos elementos que a compõem: tudo está centrado na obsessão que Kârinh nutre pela Terra, em particular pela cidade de Paris, que deseja visitar, por estar de certa forma associada à sua origem (a mãe, de nome japonês, terá ali vivido e ficado grávida, apesar de ter dado à luz Kârinh já a caminho das estrelas, de modo trágico).

Graças a um complexo e quase-mágico processo que mistura tecnologias avançadas e drogas de alguma espécie, Kârinh consegue “mergulhar” virtualmente numa Paris projectada a partir de imagens colhidas em várias fontes, e que são a matéria central do devaneio de Revoir Paris. Esse “mergulho” permite que as pessoas no interior dessas visões – reais, como se se tratasse de uma viagem ao passado?, uma vida virtual, como um mundo digital inteligente?, de que se trata? - vejam e interajam, inclusive fisicamente, com a protagonista. E como se imagina essa interacção vai aumentando de intensidade e valor de auto-descoberta para Kârinh. No entanto, essa aproximação é interrompida com a chegada real à Terra, ao porto de Havre, a sua viagem à Paris que existe mesmo no futuro mas não parece coincidir com as suas visões anteriores. É no limiar da sua entrada em Paris que o volume se interrompe, deixando-nos suspensos para o segundo e final tomo.

As tais fontes a que nos referimos são exactamente a que os próprios autores usaram para a recriação das suas imagens fantasiosas. Em termos de produção, é muito complexo fazer uma cartografia linear: haverá materiais que sempre estiveram nas mentes dos autores durante a série, outros que foram explorados especificamente pelo artista, outros pelo escritor, outros por ambos para este passo preciso. Mas todos eles têm direito à cidadania gráfica nos mesmos termos, o que permite a mistura entre todos eles, sejam fruto de devaneios jocosos, como as imagens que Grandville (sobretudo em Un autre monde, de que falámos aqui) e Robida criaram, de projectos, ora utópicos ora alternativos, jamais desenvolvidos (por Charles Imbert, Jacques Lambert, Corbusier, Paul Maymont, Jean Nouvel, do próprio Schuiten – recordemos que o seu irmão Luc é mesmo arquitecto, ainda que “conceptual” - e as suas associações à arquitectura não são apenas superficiais e ao nível do desenho -, passando ainda pelos vários projectos concorrentes para o Centre Georges Pompidou, etc.), ora passando mesmo por episódios da história da urbanização moderna da cidade (começando necessariamente pelos planos de policiamento de Haussmann). Na imagem que aqui mostramos, por exemplo, Kârinh aproxima-se “virtualmente” de uma Paris na qual se vêem as torres imaginadas por Jacques Lambert nos anos 1920 e um aerodromo projectado por André Lurçat no início da década seguinte.

Como ainda não visitámos esta Paris, a real que Kârinh alcança no final do volume, e sabemos que não se trata da Pâhry que pertence efectivamente ao mundo diegético mais ou menos coerente da série-mãe, não podemos entender ainda quais serão as características que ela apresentará no seu seio, mas tudo nos leva a crer que possa reflectir pelo menos em parte a natureza palimpséstica e por camadas que Kâhrin foi construindo ao longo da sua viagem no Tube. Devemos imaginar a tessitura de Revoir Paris, ou melhor dizendo, da cidade-ideia (cidade-ideal?) projectada na mente alterada da protagonista como sendo feita de vários materiais, alguns dos quais pesados com a concretude da realidade histórica, outros com as qualidades féericas da imaginação, o devaneio, o esboço de boutade visual, ou mesmo com a intensidade de possibilidade utópica, esse gigantesco paradoxo.

A exposição na Cité apresenta precisamente os materiais consultados, distribuídos numa sala gigantesca, alternando desenhos originais de Schuiten (deste novo livro mas também de trabalhos anteriores) com planos, mapas, quadros, ilustrações, publicações, revistas, livros, documentos de trabalho, de todas aquelas linhas de força indicadas acima. Não existindo separações entre o espaço global, existem como que “cantos” que distribuem “núcleos temáticos”, por vezes concentrando os aspectos mais históricos, técnicos e políticos da história efectiva da cidade, por outras apresentando antes as facetas mais imaginativas, obedeçam elas a preocupações verdadeiramente urbanísticas (controlo de trânsito, população, expansão económica, distribuição de bens, etc.) ou às tresloucadas imaginações dos autores que imaginam os futuros mais multiformes possíveis... No centro, “interrompendo” a sala, as prateleiras inclinadas com a arte original. Os complementos a esta exposição apareciam sob a forma de um mundo virtual da Paris re-imaginada por Schuiten e uma equipa de projectistas, painéis finais com entrevistas em vídeo das mais diversas personalidades (arquitectos, sociólogos, filósofos, etc.) sobre as suas ideias pessoais de Paris. Como não pode deixar de ser, esta era uma excelente forma de não apenas ver algum do trabalho original do artista, mas compreender também o mundo virtual, de cruzamento entre imaginários e fundos documentais, habitado pelos dois autores na sua série principal, e projectos laterais. Ao mesmo tempo, portanto, vemos aqui uma homenagem dos autores à cidade de Paris. Como dois espelhos virados um para o outro, cada uma das facetas se reflecte na outra, e permite a uma repetição e diferença quase infinda de várias potencialidades de interpretação.

Regressando ao livro de banda desenhada, porém, não queremos de salientar algumas das suas características menos conseguidas, e que se prendem com questões de representação, beleza e organização narrativa, à vez. Sem querer cair numa acusação directa e simplista de “misoginia”, não deixa de ser sintomático destes autores o protagonismo dado a figura femininas, quase sempre jovens, e muitas vezes em trajes menores, numa clara, ainda que talvez insciente, estratégia de sexualização da mesma. Além do mais, o abandono desta mesma personagem num contexto de outras personagens geriátricas, tal como sucede no título a solo de Schuiten, La Douce, que padece dos mesmos problemas, dá-lhe quase um ambiente vampírico nessa relação, talvez. A personalidade de Kârinh não é suficientemente desenvolvida, podendo ser confundida com qualquer das outras personagens da série, que desmaiam lânguidas em contínua busca de um objecto que se lhes escapa, e cujo poder de agência e decisão é diluído pelas circunstâncias.

Schuiten é considerado, não sem alguma razão, como um dos grandes nomes da cultura imaginativa da banda desenhada contemporânea. Porém, a sua prestação no que diz respeito às figuras humanas continua aqui sendo feita no interior dos seus problemáticos limites, a saber, a falta quase total de expressividade dos rostos (por alguma razão, o autor recorre bastas vezes àqueles atalhos gráficos de raios e linhas, em torno da cabeça, para dar conta de uma emoção mais forte). Veja-se esta sequência de 3 vinhetas da mãe da protagonista. Não há coesão do rosto entre elas, como se se tratasse de pessoas diferentes. O argumento de que existe sempre uma flutuação necessária nestas transformações não seria suficiente para a sua defesa, já que Schuiten cultiva particularmente um efeito de gravura que pretende dar uma ideia de naturalismo quase exacto. Esse é outro aspecto que enfraquece a decisão da(s) personagem(s).

Finalmente, em termos estritamente narrativos, os autores continuam a trabalhar alguns aspectos com menor felicidade. Se bem a que a elipse seja um dos elementos-charneira da banda desenhada, existem sequências que nos fazem imaginar menos um trabalho de oclusão para aumentar a veemência da sua protelada reveleção do que alguma inépcia mesmo na manipulação dos elementos diegéticos. Isto ocorre em vários momentos, se bem que seja discutível se será mesmo necessário vermos imagens da colónia, da nave espacial em que viajam, de conhecer melhor as outras personagens, etc. Apenas a título de exemplo, veja-se a página final. Podemos imaginar que, estando a acção representada “cortada” para preparar a expectativa em relação ao segundo volume, os autores desejavam criar um cliffhanger (e literal, já que a protagonista se encontra numa espécie de cápsula flutuando, qual funicular ou algo similar, sobre os tectos da Paris do livro). No entanto, não é inteligível qual o evento que tanto surpreende Kârinh, apesar do seu imenso ponto de exclamação. Este é digno de um Hergé em termos formais, já que narrativamente o pai de Tintin jamais apresentaria algo de tão incompleto e, diremos mesmo mais, inepto! Para se criar alguma expectativa, é necessário também fornecer alguma informação que crie essa mesma noção: que se passa na cápsula? Quem são as vozes que falam com ela? Que razão há para ter parado o seu processo, se nada até agora fazia prever isso? Claro que se pode dizer que o segundo volume terá as respostas, mas a verdade é que estas mesmas perguntas por nós formuladas nem sequer são claramente esboçadas no primeiro volume... Mas esperemos então por ele, para compreender que desenvolvimentos permitirão nessa busca de sentido.

Nota final: agradecimentos à Casterman, pela oferta de todas as publicações.

2 comentários:

  1. Olá Pedro, já os tenho na Dr. Kartoon, mas confesso que ainda não li, nem o livro nem o catálogo.
    Espero conseguir ver a exposição a seguir a Angoulême. se ainda lá estiver. A presença da personagem feminina jovem e da sua ligação com u m homem mais velho, não é algo que venha apenas do La Douce. está presente em vários álbuns das Cidades Obscuras, desde A Febre de Urbicanda, passando por Brusel.
    Abraço

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  2. Olá, João.
    Boa. Do ponto de vista comercial, imagino que venda bem e espero isso para a tua loja. Quanto à questão das personagens femininas, tens toda a razão, mas como já havia exposto largamente sobre essa questão no texto sobre "La Douce", abstive-me de me alongar agora.
    Obrigado e Bom Natal! Um abraço aos compinchas da Dr. Kartoon.
    Pedro

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