Para
ser rever algo, é porque já se viu isso antes. Apenas com
experiência directa é que se podem criar tessituras posteriores de
memórias. As reminiscências são sempre restos de algo que passou.
O que acontece quando não vimos, não se experienciou, não se
passou por algo em concreto? Como é que se pode rever, rememorar,
recordar essa mesma coisa? Podemos ter memórias em nome de outro?
Podemos criar (não re-criar) memórias utilizando os mais
díspares elementos, reais e fictícios, imaginários e herdados?
Essa é possivelmente a trama central da aventura de Kârinh, a
protagonista de Revoir Paris. (Mais)
Em
1982, na seminal revista (A Suivre), que tanto contribui para
o aumento gradual da dimensão “literária” da banda desenhada
franco-belga (e depois de outras esferas), deu-se início a uma série
celebrada criada pelo escritor e investigador Benoît Peeters e o
artista François Schuiten, amigos de infância, nos primeiros passos
de ambos numa esfera mais profissional (se ambos haviam colaborado em
publicações “escolares”, o artista havia já publicado livros
com o seu irmão Luc e o seu companheiro Claude Renard, com quem fez,
a nosso ver, o seu mais enigmático livro, Le Rail). Como se
sabe, o cerne principal desta série é que, por entre as suas várias
histórias e personagens, o protagonismo central, temático e
efectivo, pertence à ideia da arquitectura: enquanto disciplina de
trabalho, de organização dos espaços e de objectos de habitação,
mas também como reflecos de modos de organização societal e
política. Um mundo onde a reificação da arquitectura é o
princípio organizador das suas sociedades, a esmagadora das quais
plutocráticas, ao ponto que se poderiam estudar cada uma das cidades
como cidades-Estado que tivessem sobrevivido até à época da
modernidade (como muitas outras obras herdeiras de princípios
ideológicos e estilísticos dos anos 1980, Les Cités Obscures
espelha uma certa Mitteleuropa).
Se
estritamente Revoir Paris não faz parte da série Les
Cités Obscures, este novo volume pode ser visto como uma espécie
de celebração, balanço do processo de construção e devolução
da imaginação cultivada e veiculada até agora pelos autores em
relação à cidade que eles vêm como central (Schuiten,
recordemo-nos, é belga, e Peeters, parisiense, viveu em Bruxelas
durante largos anos). A celebração atravessa vários domínios.
Toda a série será alvo de uma nova reedição, em que se
apresentarão alterações. Se cada edição sempre foi alvo de
pequenas adições, substituições ou mesmo correcções, esta
poderá vir a ser a edição definitiva, abrindo caminho para uma
abordagem crítica (no seu estrito sentido de crítica literária,
enquanto ciência da edição) da série. Por outro lado, o álbum
deu origem a uma exposição, com o mesmo título, que tem lugar na
Cité de l’architecture & du patrimoine, em Paris, a qual
tivemos a oportunidade de visitar, e da qual falaremos adiante. Ela
reúne, em parte, os materiais empregues pelos autores na sua senda
de investigação e pesquisa sobre a construção da Paris real e
imaginária ao longo de séculos. A exposição, por seu lado, dá
origem a uma publicação, que tanto poderá ser vista como
“catálogo”, como extensão dessas investigações, como
volume-companheiro de Revoir Paris, o álbum. Finalmente, a
ocasião viu também a edição de uma publicação enorme, Images
François Schuiten, uma espécie de portfólio de ilustrações
do artista, desde aquelas que serviram para ilustrar o romance
inédito de Jules Verne, Paris au siècle XX, a estudos da
estação de metro de Paris por ele concebida (Arts & Métiers),
trabalhos soltos, assim como associados a uma visão da grande Paris.
Revoir
Paris conta a história de uma hipotética sociedade futura, em
que a exploração espacial está relacionada com uma certa fuga da
Terra, como que abandonada à sua sorte, inevitavelmente ligada a
toda uma série de desastres, dos ecológicos aos económicos.
Acompanhamos uma jovem mulher, Kârinh, que acompanha uma missão de
dignatários mais velhos de um mundo-colónia (que nunca vemos)
chamado “Arche”, que parece ser regrado pelos mais rígidos
preceitos (ao ponto de que todas as mulheres parecem ser obrigadas a
ter dois filhos). Esta missão de regresso à Terra, onde ela nunca
esteve, numa nave chamada “Tube”, tem como missão recuperar
talvez uma certa verve para esse “pseudo-Paraíso”, nas suas
próprias palavras. O foco, porém, não é jamais nem nessa
sociedade nem nos elementos que a compõem: tudo está centrado na
obsessão que Kârinh nutre pela Terra, em particular pela cidade de
Paris, que deseja visitar, por estar de certa forma associada à sua
origem (a mãe, de nome japonês, terá ali vivido e ficado grávida,
apesar de ter dado à luz Kârinh já a caminho das estrelas, de modo
trágico).
Graças
a um complexo e quase-mágico processo que mistura tecnologias
avançadas e drogas de alguma espécie, Kârinh consegue “mergulhar”
virtualmente numa Paris projectada a partir de imagens colhidas em
várias fontes, e que são a matéria central do devaneio de Revoir
Paris. Esse “mergulho” permite que as pessoas no interior
dessas visões – reais, como se se tratasse de uma viagem ao
passado?, uma vida virtual, como um mundo digital inteligente?, de
que se trata? - vejam e interajam, inclusive fisicamente, com a
protagonista. E como se imagina essa interacção vai aumentando de
intensidade e valor de auto-descoberta para Kârinh. No entanto, essa
aproximação é interrompida com a chegada real à Terra, ao porto
de Havre, a sua viagem à Paris que existe mesmo no futuro mas não
parece coincidir com as suas visões anteriores. É no limiar da sua
entrada em Paris que o volume se interrompe, deixando-nos suspensos
para o segundo e final tomo.
As
tais fontes a que nos referimos são exactamente a que os próprios
autores usaram para a recriação das suas imagens fantasiosas. Em
termos de produção, é muito complexo fazer uma cartografia linear:
haverá materiais que sempre estiveram nas mentes dos autores durante
a série, outros que foram explorados especificamente pelo artista,
outros pelo escritor, outros por ambos para este passo preciso. Mas
todos eles têm direito à cidadania gráfica nos mesmos termos, o
que permite a mistura entre todos eles, sejam fruto de devaneios
jocosos, como as imagens que Grandville (sobretudo em Un autre
monde, de que falámos aqui) e Robida criaram, de projectos, ora
utópicos ora alternativos, jamais desenvolvidos (por Charles Imbert,
Jacques Lambert, Corbusier, Paul Maymont, Jean Nouvel, do próprio
Schuiten – recordemos que o seu irmão Luc é mesmo arquitecto,
ainda que “conceptual” - e as suas associações à arquitectura
não são apenas superficiais e ao nível do desenho -, passando
ainda pelos vários projectos concorrentes para o Centre Georges
Pompidou, etc.), ora passando mesmo por episódios da história da
urbanização moderna da cidade (começando necessariamente pelos
planos de policiamento de Haussmann). Na imagem que aqui mostramos,
por exemplo, Kârinh aproxima-se “virtualmente” de uma Paris na
qual se vêem as torres imaginadas por Jacques Lambert nos anos 1920
e um aerodromo projectado por André Lurçat no início da década
seguinte.
Como
ainda não visitámos esta Paris, a real que Kârinh alcança
no final do volume, e sabemos que não se trata da Pâhry que
pertence efectivamente ao mundo diegético mais ou menos coerente da
série-mãe, não podemos entender ainda quais serão as
características que ela apresentará no seu seio, mas tudo nos leva
a crer que possa reflectir pelo menos em parte a natureza
palimpséstica e por camadas que Kâhrin foi construindo ao longo da
sua viagem no Tube. Devemos imaginar a tessitura de Revoir Paris,
ou melhor dizendo, da cidade-ideia (cidade-ideal?) projectada na
mente alterada da protagonista como sendo feita de vários
materiais, alguns dos quais pesados com a concretude da realidade
histórica, outros com as qualidades féericas da imaginação, o
devaneio, o esboço de boutade visual, ou mesmo com a
intensidade de possibilidade utópica, esse gigantesco paradoxo.
A
exposição na Cité apresenta precisamente os materiais consultados,
distribuídos numa sala gigantesca, alternando desenhos originais de
Schuiten (deste novo livro mas também de trabalhos anteriores) com
planos, mapas, quadros, ilustrações, publicações, revistas,
livros, documentos de trabalho, de todas aquelas linhas de força
indicadas acima. Não existindo separações entre o espaço global,
existem como que “cantos” que distribuem “núcleos temáticos”,
por vezes concentrando os aspectos mais históricos, técnicos e
políticos da história efectiva da cidade, por outras apresentando
antes as facetas mais imaginativas, obedeçam elas a preocupações
verdadeiramente urbanísticas (controlo de trânsito, população,
expansão económica, distribuição de bens, etc.) ou às
tresloucadas imaginações dos autores que imaginam os futuros mais
multiformes possíveis... No centro, “interrompendo” a sala, as
prateleiras inclinadas com a arte original. Os complementos a esta
exposição apareciam sob a forma de um mundo virtual da Paris
re-imaginada por Schuiten e uma equipa de projectistas, painéis
finais com entrevistas em vídeo das mais diversas personalidades
(arquitectos, sociólogos, filósofos, etc.) sobre as suas ideias
pessoais de Paris. Como não pode deixar de ser, esta era uma
excelente forma de não apenas ver algum do trabalho original do
artista, mas compreender também o mundo virtual, de cruzamento entre
imaginários e fundos documentais, habitado pelos dois autores na sua
série principal, e projectos laterais. Ao mesmo tempo, portanto,
vemos aqui uma homenagem dos autores à cidade de Paris. Como dois
espelhos virados um para o outro, cada uma das facetas se reflecte na
outra, e permite a uma repetição e diferença quase infinda de
várias potencialidades de interpretação.
Regressando
ao livro de banda desenhada, porém, não queremos de salientar
algumas das suas características menos conseguidas, e que se prendem
com questões de representação, beleza e organização narrativa, à
vez. Sem querer cair numa acusação directa e simplista de
“misoginia”, não deixa de ser sintomático destes autores o
protagonismo dado a figura femininas, quase sempre jovens, e muitas
vezes em trajes menores, numa clara, ainda que talvez insciente,
estratégia de sexualização da mesma. Além do mais, o abandono
desta mesma personagem num contexto de outras personagens
geriátricas, tal como sucede no título a solo de Schuiten, La Douce, que padece dos mesmos problemas, dá-lhe quase um ambiente
vampírico nessa relação, talvez. A personalidade de Kârinh não é
suficientemente desenvolvida, podendo ser confundida com qualquer das
outras personagens da série, que desmaiam lânguidas em contínua
busca de um objecto que se lhes escapa, e cujo poder de agência e
decisão é diluído pelas circunstâncias.
Schuiten
é considerado, não sem alguma razão, como um dos grandes nomes da
cultura imaginativa da banda desenhada contemporânea. Porém, a sua
prestação no que diz respeito às figuras humanas continua aqui
sendo feita no interior dos seus problemáticos limites, a saber, a
falta quase total de expressividade dos rostos (por alguma razão, o
autor recorre bastas vezes àqueles atalhos gráficos de raios e
linhas, em torno da cabeça, para dar conta de uma emoção mais
forte). Veja-se esta sequência de 3 vinhetas da mãe da
protagonista. Não há coesão do rosto entre elas, como se se
tratasse de pessoas diferentes. O argumento de que existe sempre uma
flutuação necessária nestas transformações não seria suficiente
para a sua defesa, já que Schuiten cultiva particularmente um efeito
de gravura que pretende dar uma ideia de naturalismo quase exacto.
Esse é outro aspecto que enfraquece a decisão da(s) personagem(s).
Finalmente,
em termos estritamente narrativos, os autores continuam a trabalhar
alguns aspectos com menor felicidade. Se bem a que a elipse seja um
dos elementos-charneira da banda desenhada, existem sequências que
nos fazem imaginar menos um trabalho de oclusão para aumentar a
veemência da sua protelada reveleção do que alguma inépcia mesmo
na manipulação dos elementos diegéticos. Isto ocorre em vários
momentos, se bem que seja discutível se será mesmo necessário
vermos imagens da colónia, da nave espacial em que viajam, de
conhecer melhor as outras personagens, etc. Apenas a título de
exemplo, veja-se a página final. Podemos imaginar que, estando a
acção representada “cortada” para preparar a expectativa em
relação ao segundo volume, os autores desejavam criar um
cliffhanger (e literal, já que a protagonista se encontra
numa espécie de cápsula flutuando, qual funicular ou algo similar,
sobre os tectos da Paris do livro). No entanto, não é inteligível
qual o evento que tanto surpreende Kârinh, apesar do seu imenso
ponto de exclamação. Este é digno de um Hergé em termos formais,
já que narrativamente o pai de Tintin jamais apresentaria
algo de tão incompleto e, diremos mesmo mais, inepto! Para se criar
alguma expectativa, é necessário também fornecer alguma informação
que crie essa mesma noção: que se passa na cápsula? Quem são as
vozes que falam com ela? Que razão há para ter parado o seu
processo, se nada até agora fazia prever isso? Claro que se pode
dizer que o segundo volume terá as respostas, mas a verdade é que
estas mesmas perguntas por nós formuladas nem sequer são claramente
esboçadas no primeiro volume... Mas esperemos então por ele, para
compreender que desenvolvimentos permitirão nessa busca de sentido.
Nota
final: agradecimentos à Casterman, pela oferta de todas as
publicações.
Olá Pedro, já os tenho na Dr. Kartoon, mas confesso que ainda não li, nem o livro nem o catálogo.
ResponderEliminarEspero conseguir ver a exposição a seguir a Angoulême. se ainda lá estiver. A presença da personagem feminina jovem e da sua ligação com u m homem mais velho, não é algo que venha apenas do La Douce. está presente em vários álbuns das Cidades Obscuras, desde A Febre de Urbicanda, passando por Brusel.
Abraço
Olá, João.
ResponderEliminarBoa. Do ponto de vista comercial, imagino que venda bem e espero isso para a tua loja. Quanto à questão das personagens femininas, tens toda a razão, mas como já havia exposto largamente sobre essa questão no texto sobre "La Douce", abstive-me de me alongar agora.
Obrigado e Bom Natal! Um abraço aos compinchas da Dr. Kartoon.
Pedro