9 de janeiro de 2015

Coïncidence. Fabien Vehlmann et al. (On a marché sur la bulle)

Este livro não é mais do que um curto e simples exercício de uma constelação de autores, mas que poderá servir de instrumento de análise e/ou pedagógico em torno dos processos construtivos da banda desenhada, mas sobretudo no que respeita aos resultados expressivos. [O descritivo "experimental" deveria ter um ponto de interrogação à frente, assinalando uma dúvida] (Mais)
Uma descrição “seca” é necessária. Este livro foi criado no seio da associação On a marché sur la bulle, uma plataforma não-lucrativa em Amiens, França, que organiza o Festival de banda desenhada dessa cidade, coordena uma escola onde existem vários tipos de cursos (num dos quais estivemos envolvidos), e toda uma série de pequenas acções de colaboração com vários artistas, desde os mais jovens e aprendizes a profissionais reconhecidos, com um crescente catálogo em várias frentes (infanto-juvenil, para jovens adultos, reportagem, etc.). Nesse sentido, a tiragem, divulgação e comercialização não será provavelmente a mais imediata por contraste a editoras mais centrais, mas os interessados conseguirão, certamente, chegar a este objecto.

Como fruto dessas colaborações – que passam pelo convite a argumentistas e/ou artistas a fazer “master classes” nos seus cursos - , os editores estenderam um convite muito especial a Fabien Vehlmann. Este é um dos argumentistas mais activos neste momento em França em termos de exposição e títulos de grande circulação comercial (afinal, ele é o argumentista da série actual de Spirou, mas também autor da série ), apesar de ter igualmente alguns títulos menos categorizáveis, alguns dos quais tivemos oportunidade de discutir, como Jolies Ténèbres e Le Diable Amoreux, assim como Les derniers jours d'un immortel, um excelente livro de ficção científica. Este convite, que estava associado também ao de um grupo significativo de artistas de características bem diversas em termos gráficos, traduzir-se-ia neste projecto, Coïncidence.

Vehlmann escreveu um argumento quase-completo de apenas uma página, mais uma vinheta adicional. Este argumento foi enviado a vários artistas (17) que a desenharam (apenas 12). Desde artistas de renome internacional como os incontornáveis e inimitáveis Daniel Goossens e Lewis Trondheim, Batem, que tem desenhado o Marsupilami, o norueguês Jason, o mexicano Humberto Ramos, um dos artistas mais conhecidos do Homem-Aranha, mas também outros artistas de banda desenhada ou ilustração. Para sermos completos: Christian de Metter, Edith, Kokor, Ralph Meyer, Michel Plessix, Kokor, todos franceses, e mais o alemão von Bassewitz e o japonês Hikaru Takahashi. Françous Boucq fez apenas a capa. [e o artista Babelut produziu uma sua versão, publicada somente no seu blog, aqui].

O que temos aqui, portanto, são doze versões de uma “mesma” história. Basicamente, um homem tenta explicar à sua amiga, numa esplanada algures França, como a existência de milhares de pessoas na Terra leva necessariamente à coincidência de pensamentos, gestos e comportamentos, que passa por fazer rodar uma colher no ar. Depois, julgando que o corolário dessa ideia seria a convergência dessas pessoas num mesmo espaço, corre em direcção à porta da igreja principal, esperando lá encontrar os seus “sósias de movimento”.

A vinheta adicional permite criar duas páginas finais, uma espécie de epílogo, em que todas as personagens se colocam frente à igreja mas, paradoxalmente, cada um em cidades francesas diferentes, porém, encontrando-se no spread duplo do livro. A “coincidência” tem portanto lugar no tempo e no espaço, ainda que este último seja apenas o do livro, isto é, uma dimensão acima daquela percepcionada pelas personagens, presas no seu universo de papel. Este aspecto não é propriamente explorado em termos narrativos (à la ficção científica), mas informa o mecanismo geral da história, e até do seu humor global.

No entanto, aquilo que se depreende destas diferentes abordagens é que as alterações ou diferenças, mesmo que mínimas, entre as prestações gráficas leva a que esse “mesmo” não seja totalmente absoluto. Digamos que se a sinopse narrativa é a mesma, o resultado e até efeito é bem diverso. Claro que o gosto pessoal poderá ter aqui um papel preponderante na decisão e juízo de valor que levaria a uma hierarquia entre os trabalhos. Apenas a título de exemplo, não obstante a certeza do profissionalismo de Humberto Ramos, não deixa a sua versão de ser algo medíocre e pobre em termos visuais, tal como a confusão de linhas, algo presunçosa, de von Bassewitz. Autores como Batem e Plessix, dadas as características dos seus traços genéricos de uma longa e velha tradição da bd franco-belga, uma espécie de linha pós-Atome, leva a que incuta uma ideia de humor seguro. Já Goossens, que opta por desenhar os protagonistas como se de guerreiros bárbaros, à la Conan e Sonja se tratassem (continuando porém num ambiente de esplanada francesa) traz logo uma dimensão acrescida de absurdo que todos os outros autores evitam ao representar as personagens de modo “normal”, com excepção de Jason, que utiliza os seus típicas figuras teriomórficas – mas com um estranho tom “neutro” -, e Trondheim que usa um robô como protagonista. Neste dois últimos casos, o “desvio” de significado é menor do que em Goossens, mas não deixa de haver, ainda assim, um acréscimo semântico, se podemos colocar as coisas nesses termos.

O facto de Ramos colocar as falas em inglês e Takahashi em japonês também traz uma outra dimensão.

Houvesse oportunidade de providenciar micro-leituras, seria interessante notar como a expressividade das personagens muda conforme os autores escolhem ângulos, planos de aproximação das personagens, ou até mesmo opções de mostrar ou não as pálpebras e irises, controlo emocional ou melodramatismo (o robô de Trondheim não tem “rosto”, mas há uma expressividade graças ao corpo e enquadramentos), e usar ou não vinhetas/cenas “mudas”, de transição. Como dissemos, existem resultados mais banais, outros mais surpreendentes, uns mais cómicos e outros mesmo pobres, de exagerados que são. Mas, enquanto exercício “escolar” ou meta-textual, todos eles se tornam matéria interessante de desvendamento dos tais mecanismos expressivos.

Uma vez que estes resultados não preencheriam o espaço necessário de um álbum, os editores resolveram acrescentar material adicional, como estudos de cada artista (e do colorista), uma coluna bio-bibliográfica e um questionário idêntico a todos eles, para que se conheça um pouco mais os processos técnicos de trabalho e/ou atitudes perante o projecto. Além disso, há ainda o próprio argumento (impresso também numa folha separada, para que se possa acompanhar a par e passo as “traduções” ou “cumprimentos”), e um pequeno ensaio de Philippe Marcelé, em torno do projecto, providenciando algumas dessas tais “micro-leituras” do que a prestação gráfica molda de modo particular sobre o argumento.

É evidente que existem outras experiências que importariam coligir aqui para provocar uma comparação. Apenas a título de exemplo, recordemos a história “Tatanka”, de Felipe Hérnandez Cava e Raúl (publicado no livro Raúl (Fe de erratas) mas também numa das Quadrado da Bedeteca de Lisboa), que é apresentada em três versões cada vez mais abstractas, ou as adaptações do Woyzeck de Büchner por Sylvain Victor, Yvan Alagbé e Olivier Marboeuf (na Cheval sans tête no. 1, mas também numa outra edição própria da Bedeteca). Claro que se abríssemos estas considerações a ora trabalhos revistos pelos próprios artistas (Nègres jaunes, de Algbé, John Difool avant l'Incal de Janjetov) ora a experimentações de reduções, adaptações, apropriações, etc., a questão tornar-se-ia ainda mais complexa. Porém, esse exercício apenas funcionaria para continuar a sublinhar a lição principal que é explorada por este simples livro: a de que não existe nenhuma hipótese em contar a “mesma” história se os instrumentos gráficos diferirem, mesmo que por desvios incrementais.

Dito isto, a lição é cumprida.
Nota final: agradecimentos aos editores, pela oferta.  

2 comentários:

  1. A capa do Coincidence é muito, muito apetitosa.

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  2. Caro não aguento,
    É, de facto, mas é pena não ter eco no interior.
    Obrigado,
    Pedro M

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