Este
livro não é mais do que um curto e simples exercício de uma
constelação de autores, mas que poderá servir de instrumento de
análise e/ou pedagógico em torno dos processos construtivos da
banda desenhada, mas sobretudo no que respeita aos resultados
expressivos. [O descritivo "experimental" deveria ter um ponto de interrogação à frente, assinalando uma dúvida] (Mais)
Uma
descrição “seca” é necessária. Este livro foi criado no seio
da associação On a marché sur la bulle, uma plataforma
não-lucrativa em Amiens, França, que organiza o Festival de banda
desenhada dessa cidade, coordena uma escola onde existem vários
tipos de cursos (num dos quais estivemos envolvidos), e toda uma
série de pequenas acções de colaboração com vários artistas,
desde os mais jovens e aprendizes a profissionais reconhecidos, com
um crescente catálogo em várias frentes (infanto-juvenil, para
jovens adultos, reportagem, etc.). Nesse sentido, a tiragem,
divulgação e comercialização não será provavelmente a mais
imediata por contraste a editoras mais centrais, mas os interessados
conseguirão, certamente, chegar a este objecto.
Como
fruto dessas colaborações – que passam pelo convite a
argumentistas e/ou artistas a fazer “master classes” nos seus
cursos - , os editores estenderam um convite muito especial a Fabien
Vehlmann. Este é um dos argumentistas mais activos neste momento em
França em termos de exposição e títulos de grande circulação
comercial (afinal, ele é o argumentista da série actual de Spirou,
mas também autor da série ), apesar de ter igualmente alguns
títulos menos categorizáveis, alguns dos quais tivemos oportunidade
de discutir, como Jolies Ténèbres e Le Diable Amoreux,
assim como Les derniers jours d'un immortel, um excelente
livro de ficção científica. Este convite, que estava associado
também ao de um grupo significativo de artistas de características
bem diversas em termos gráficos, traduzir-se-ia neste projecto,
Coïncidence.
Vehlmann
escreveu um argumento quase-completo de apenas uma página, mais uma
vinheta adicional. Este argumento foi enviado a vários artistas (17)
que a desenharam (apenas 12). Desde artistas de renome internacional
como os incontornáveis e inimitáveis Daniel Goossens e Lewis
Trondheim, Batem, que tem desenhado o Marsupilami, o norueguês
Jason, o mexicano Humberto Ramos, um dos artistas mais conhecidos do
Homem-Aranha, mas também outros artistas de banda desenhada ou
ilustração. Para sermos completos: Christian de Metter, Edith,
Kokor, Ralph Meyer, Michel Plessix, Kokor, todos franceses, e mais o
alemão von Bassewitz e o japonês Hikaru Takahashi. Françous Boucq
fez apenas a capa. [e o artista Babelut produziu uma sua versão,
publicada somente no seu blog, aqui].
O
que temos aqui, portanto, são doze versões de uma “mesma”
história. Basicamente, um homem tenta explicar à sua amiga, numa
esplanada algures França, como a existência de milhares de pessoas
na Terra leva necessariamente à coincidência de pensamentos, gestos
e comportamentos, que passa por fazer rodar uma colher no ar. Depois,
julgando que o corolário dessa ideia seria a convergência dessas
pessoas num mesmo espaço, corre em direcção à porta da igreja
principal, esperando lá encontrar os seus “sósias de movimento”.
A
vinheta adicional permite criar duas páginas finais, uma espécie de
epílogo, em que todas as personagens se colocam frente à igreja
mas, paradoxalmente, cada um em cidades francesas diferentes, porém,
encontrando-se no spread duplo do livro. A “coincidência”
tem portanto lugar no tempo e no espaço, ainda que este último seja
apenas o do livro, isto é, uma dimensão acima daquela
percepcionada pelas personagens, presas no seu universo de papel.
Este aspecto não é propriamente explorado em termos narrativos (à
la ficção científica), mas informa o mecanismo geral da história,
e até do seu humor global.
No
entanto, aquilo que se depreende destas diferentes abordagens é que
as alterações ou diferenças, mesmo que mínimas, entre as
prestações gráficas leva a que esse “mesmo” não seja
totalmente absoluto. Digamos que se a sinopse narrativa é a mesma, o
resultado e até efeito é bem diverso. Claro que o gosto pessoal
poderá ter aqui um papel preponderante na decisão e juízo de valor
que levaria a uma hierarquia entre os trabalhos. Apenas a título de
exemplo, não obstante a certeza do profissionalismo de Humberto
Ramos, não deixa a sua versão de ser algo medíocre e pobre em
termos visuais, tal como a confusão de linhas, algo presunçosa, de
von Bassewitz. Autores como Batem e Plessix, dadas as características
dos seus traços genéricos de uma longa e velha tradição da bd
franco-belga, uma espécie de linha pós-Atome, leva a que incuta uma
ideia de humor seguro. Já Goossens, que opta por desenhar os
protagonistas como se de guerreiros bárbaros, à la Conan e Sonja se
tratassem (continuando porém num ambiente de esplanada francesa)
traz logo uma dimensão acrescida de absurdo que todos os outros
autores evitam ao representar as personagens de modo “normal”,
com excepção de Jason, que utiliza os seus típicas figuras
teriomórficas – mas com um estranho tom “neutro” -, e
Trondheim que usa um robô como protagonista. Neste dois últimos
casos, o “desvio” de significado é menor do que em Goossens, mas
não deixa de haver, ainda assim, um acréscimo semântico, se
podemos colocar as coisas nesses termos.
O
facto de Ramos colocar as falas em inglês e Takahashi em japonês
também traz uma outra dimensão.
Houvesse
oportunidade de providenciar micro-leituras, seria interessante notar
como a expressividade das personagens muda conforme os autores
escolhem ângulos, planos de aproximação das personagens, ou até
mesmo opções de mostrar ou não as pálpebras e irises, controlo
emocional ou melodramatismo (o robô de Trondheim não tem “rosto”,
mas há uma expressividade graças ao corpo e enquadramentos), e usar
ou não vinhetas/cenas “mudas”, de transição. Como dissemos,
existem resultados mais banais, outros mais surpreendentes, uns mais
cómicos e outros mesmo pobres, de exagerados que são. Mas, enquanto
exercício “escolar” ou meta-textual, todos eles se tornam
matéria interessante de desvendamento dos tais mecanismos
expressivos.
Uma
vez que estes resultados não preencheriam o espaço necessário de
um álbum, os editores resolveram acrescentar material adicional,
como estudos de cada artista (e do colorista), uma coluna
bio-bibliográfica e um questionário idêntico a todos eles, para
que se conheça um pouco mais os processos técnicos de trabalho e/ou
atitudes perante o projecto. Além disso, há ainda o próprio
argumento (impresso também numa folha separada, para que se possa
acompanhar a par e passo as “traduções” ou “cumprimentos”),
e um pequeno ensaio de Philippe Marcelé, em torno do projecto,
providenciando algumas dessas tais “micro-leituras” do que a
prestação gráfica molda de modo particular sobre o argumento.
É
evidente que existem outras experiências que importariam coligir
aqui para provocar uma comparação. Apenas a título de exemplo,
recordemos a história “Tatanka”, de Felipe Hérnandez Cava e
Raúl (publicado no livro Raúl (Fe de erratas) mas também
numa das Quadrado da Bedeteca de Lisboa), que é apresentada
em três versões cada vez mais abstractas, ou as adaptações do
Woyzeck de Büchner por Sylvain Victor, Yvan Alagbé e Olivier
Marboeuf (na Cheval sans tête no. 1, mas também numa outra
edição própria da Bedeteca). Claro que se abríssemos estas
considerações a ora trabalhos revistos pelos próprios artistas
(Nègres jaunes, de Algbé, John Difool avant l'Incal de
Janjetov) ora a experimentações de reduções, adaptações,
apropriações, etc., a questão tornar-se-ia ainda mais complexa.
Porém, esse exercício apenas funcionaria para continuar a sublinhar
a lição principal que é explorada por este simples livro: a de que
não existe nenhuma hipótese em contar a “mesma” história se os
instrumentos gráficos diferirem, mesmo que por desvios incrementais.
Dito
isto, a lição é cumprida.
Nota
final: agradecimentos aos editores, pela oferta.
A capa do Coincidence é muito, muito apetitosa.
ResponderEliminarCaro não aguento,
ResponderEliminarÉ, de facto, mas é pena não ter eco no interior.
Obrigado,
Pedro M