Para terminarmos esta leva
de blocos dedicadas de forma algo superficial a vários dos volumes
académicos que têm surgido nos últimos tempo, este post
agrega seis títulos cuja característica comum é o facto de serem
colectivos, entre antologias de textos, a actas de conferências e
projectos oriundos de chamadas de artigos sob um qualquer domínio.
No entanto, fica já a promessa de que, graças a vários contacto e
colaborações planeadas, revisitaremos alguns destes títulos de
maneira mais cabal e ponderada. O tipo de foco desta pilha e,
arriscamo-nos a dizer, peso e importância, é variado, mas todos
eles, como sempre são prova acabada de que o edifício dos Estudos
de Banda Desenhada não é de forma alguma “incipiente”, “novo”
ou até mesmo “jovem”, como veremos. (Mais)
Comics as History,
Comics as Literature. Annessa Ann Babic, ed. (Farleigh
Dickinson University Press) Esse tipo de juízo para com a área
da abordagem académica da banda desenhada ainda se encontra cheia
desse tipo de obstáculos e escolhos, por vezes alimentados por ela
mesma. O pequeno texto descritivo deste volume, por exemplo, ainda
insiste na ideia de que existem “poucos recursos actualmente que
demonstrem os aspectos transdisciplinares da banda desenhada”, o
que é um terrível serviço para a bibliografia já existente. Claro
está que se pode dizer que é apenas o discurso publicitário, que
deve ser sempre hiperbólico para se vender a si mesmo, e a
introdução de Babic revisita alguns pontos significativos na
produção de livros de saber desta arte (se bem que com um bom
número de gralhas e descrições tão breves e impressionistas
desses livros que nos levantam demasiadas questões). Mas o que
importa é a colecção de ensaios, que procuram então revisitar
questões transdisciplinares em torno de vários textos, focando
sobretudo as grandes duas palavras-chave do título, dando assim
continuidade a projectos antes iniciados por Joseph Witek, Hilary
Chute, Mark McKinney, entre tantos outros.
Um dos aspectos
importantes deste volume é que, sendo anglófono, procura vasculhar
em territórios não-anglófonos também, tais como a banda desenhada
francesa infanto-juvenil clássica e/ou pedagógica (Pif Gadget,
Histoire de France, Astérix, etc.) e produções
mexicanas pedagógicas. Todavia, essa celebração não pode ser
exagerada , uma vez que o número de ensaios sobre títulos e/ou
autores americanos é ainda superior, de personagens como a Mulher
Maravilha e o seu papel quer na 2ª Guerra Mundial quer na afirmação
do(s) feminismo(s), a séries como Sin City, The Walking
Dead e Fantastic Four. E se há focos mais ou menos
específicos, desde a representação do 11 de Setembro sob a
perspectiva de experiências pessoais às negociações sobre a
homossexualidade no género dos super-heróis, existem alguns poucos
ensaios que tentam ser descritivos transhistóricos, quase
englobadores, como o de Lethbridge e College sobre as mudanças de
receptividade ao longo da história nos E.U.A.
Representing
Multiculturalism in Comics and Graphic Novels. Carolene
Ayaka e Ian Hague, eds. (Routledge) Possivelmente por estarmos a
contrastar um projecto editorial como a McFarland, mais comercial e
livre, e a Routledge, especificamente apta a um discurso académico,
o qual deve ser entendido menos como um espartilho normativo do que
uma exigência de rigor, encontramos aqui precisamente a atitude que
deveria reinar nestes gestos. Nascendo das conferência organizadas
pelo Comics Forum, os editores são claríssimos na sua introdução
sobre o diálogo desejado ebtre este seu volume e aqueles que com
eles podem ser coordenados, desde os projectos de Fredrick Luis Aldama, sobre os quais falámos aqui, e Transnational Perspectives
in Graphic Novels (que não abordámos criticamente, mas se
encontra na nossa biblioteca). Estamos, portanto, perante uma
colecção variada mas extremamente organizada, o que se espelha na
organização do livro.
Este está dividido em cinco partes,
“Histórias e Contextos”, “Representando a Diferença”,
“Monstruosidade e Alteridade”, “Desafiando Ideias-Feitas” e
“Estudos de Caso”. Além disso, considerando a distribuição dos
seus quinze ensaios, com 5 deles sobre banda desenhada anglófona
(dois dos quais britânica, e dois dos quais de identidades
não-saxónicas) e os restantes sobre outras paragens (Roménia,
Japão, África do Sul, França, Irão, Espanha, Israel, Canadá), e
sempre procurando-se discussões transnacionais ou transculturais,
compreender-se-á que o seu escopo é verdadeiramente alargado,
cumprindo algo que o volume anterior apenas se arroga, mas não
obedece. Isto não deve ser de modo algum surpreendente, de resto,
uma vez que a questão “multicultural” é de facto o cerne de
todos os ensaios: Ana Merino, por exemplo, debate a maneira como os
muçulmanos eram representados em na bd clássica espanhola (El
guerrero de antifaz), e Mihaela Precup também bebe de bd “do
regime” para compreender as formas de representação da alteridade
religioso-étnica. Existem vários estudos comparatistas, e outros
que tentam compreender como uma identidade “alternativa” se
constrói no interior de um território que procura outras “normas”,
tal como o caso dos latinos, asiático-americanos, mulheres judaicas,
etc., nos Estados Unidos e, abrindo a discussão, o caso bicudíssimo
da representação racial/étnica em Robert Crumb...
Comic Book
Geographies. Jason Dittmer, ed. (Franz Steiner Verlag) Tal
como o volume de Babic, este tem início com uma frase problemática,
ao chamar a área dos Estudos de Banda Desenhada “nascent”, isto
é, emergentes, novos, etc. Mais uma vez, essa frase serve para
“quebrar o gelo” e dar início a um diálogo, que na verdade está
assente em bases bem sustentadas e conhecedoras da bibliografia
existente, citando-se logo à partida uma frase quase programática
de Charles Hatfield, quando este invectiva esta área a procurar “uma
base conceptual estável que de forma alguma deve ser intercambiável
com a disciplinaridade convencional”. De facto, a natureza, como se
costuma dizer nos circuitos filosóficos, “sempre já”
interdisciplinar, convida a que se beba de várias áreas para poder
avançar as leituras de textos específicos a esta arte, mas Dittmer
considera que a sua maior parte estão ancoradas em demasia em um
número relativamente limitado de disciplinas (estudos literários,
estudos culturais, etc.). Dittmer não deixa de ter razão, mas
esquecer os encontros que existem envolvendo antropologia, medicina,
mediologia, sociologia, estudos políticos, etc., não deixa de ser
uma atitude menos completa. Seja como for, o objecto preciso deste
volume é aproximar o estudo desta arte ao da disciplina da
geografia, a qual deve ser entendida como uma área do saber
interessada em noções como a da organização do espaço, a
topologia, e depois as intersecções delas com as de representação
política, temporalidade, psicogeografia, corporalidade e género, e
questões de estruturas específicas e técnicas da banda desenhada.
Novamente há uma maior
concentração em textos anglófonos, mas há uma preocupação
particular em olhar tanto para “locais” concretos, como Portland,
ou espaços mais alargados, a que se poderiam chamar de conceptuais,
como os pós-coloniais ou os da memória. Alguns procuraram essas
interrogações para depois devolver questões sobre estruturas mais
propriamente literárias, outros para procurar aí pasto de
considerações político-sociais e, finalmente, algumas que se
revelarão particularmente vincadas sobre a “Teoria da Banda
Desenhada”. Dividido em três partes, “Representação e
performance de Local/Espaço”, “Corpos Políticos”, “Espaço
e Teoria da Banda Desenhada”, com três capítulos cada,
compreender-se-á de forma rápida essa distribuição de saberes.
O último ensaio, de
Marcus A. Doel, por exemplo, intitula-se, e traduzo livremente,
“Então, alguma teoria de banda desenhada por cortesia de Chris
Ware e Gilles Deleuze, entre outros, Ou, uma explicação porque a
banda desenhada não é uma arte sequencial”, apresenta-se desde
logo sob uma forma electrificante e que tenta avançar uma nova forma
de descrição estrutural e conceptual da banda desenhada, discutindo
a linearidade e representação (supostas) do tempo na banda
desenhada, a diagramatização da experiência, etc. e merece uma
resposta ou consideração tão alargada quando o resto do livro, mas
que suspenderemos aqui.
Seja como for, se já
havíamos falado de volumes dedicados às relações entre
arquitectura e banda desenhada, há aqui uma irmanação possível,
ainda que esta questão da “geografia” procure escapar a uma
simples abordagem de objectos concretos no espaço e se dedique mesmo
a categorias a priori da realidade humana e desta forma
artística em particular.
Graphic Details.
Sarah Lightman, ed. (McFarland)
A inclusão das capas
nestes posts
permitirão aos leitores lerem, onde pertinente, os subtítulos
que melhor descrevem a matéria de cada livro. Este em particular é
uma espécie de volume-companheiro de uma exposição que se encontra
ainda em circulação internacional, com o trabalho de 18 autoras, a
esmagadora maioria das quais judaico-americanas, que trabalham, de
uma forma ou outra, no género autobiográfico, ou mais
especificamente, no género “confessional” indicado, abrindo uma
discussão particular para questões de representação do corpo, da
sexualidade, das relações familiares, do trauma, etc.
O livro em si reúne desde
ensaios históricos que tentam identificar a emergência do
território e do trabalho mais ou menos concertado destes autoras
(algumas das quais, como Kominsky-Crumb e Trina Robbins, iniciadoras
do movimento feminista no seio dos underground comix do anos
1970) , até ligações a um território artístico mais alargado
(por via da obra de Charlotte Salomon, por exemplo) e passando por
olhares mais disciplinares.
Enquanto complemento, mas
absolutamente importante e tornando este volume numa referência
fortíssima, estão as sete entrevistas com algumas autoras,
entrevistas que são relativamente curtas mas incisivas e dirigidas
nas suas perguntas, tornando tudo muito coeso. E,
finalmente,encontramos no final do volume perfis de todas as autoras
da exposição, com breves anotações, bibliografias e um parágrafo
descritivo, e exemplos das suas páginas, mais próximo da ideia de
catálogo, mas ponto de partida para uma procura mais aconselhada e
conduzida de todas elas.
Se nos permitem uma nota
paralela à da leitura dos ensaios (já de si extremamente
incompleta), é sempre fonte de surpresa, negativa, sem dúvida, a
falta de elegância das capas desta editora, sobretudo por estarmos a
falar de uma arte visual. Não é que as restantes sejam todas
perfeitas, ou melhor (como o volume editado por Bibic), mas aqui não
há qualquer justificação para a feiúra.
Hybridations.
Laurent Gerbier (Presses Universitaires François-Rabelais) Apesar
de falarmos mais de livros anglófonos, tal não significa que não
haja uma produção constante e de qualidade noutros idiomas. Os
leitores do LEBD seguramente que perdoarão a nossa ignorância a
línguas como o alemão, no qual se tem produzido alguma coisa (e em
algumas semanas esperamos dar conta de um volume com ensaios em
alemão e inglês), ou a falta de acesso, distracção ou pura
ignorância ao que tenha saído em Espanha, Itália ou outros países.
Neste cômputo momentâneo, todavia, este é único volume de origem
francesa de que falaremos, colectivo.
Como se depreende do
sub-título, e se associar ao livro de Fiévre de que falámos
anteriormente, a amplitude das relações de texto e imagem
abrir-se-ão para além da banda desenhada, mas esta continua a ser
um foco bastante importante, até mesmo nesta colecção,
Icono-Textes, que já havíamos visitado antes.
O conceito da “hibridação”
é o imo de todos os ensaios, se bem que ele possa ser entendido de
modos relativamente distintos por cada autor, que conforme a natureza
dos textos estudados ou dos instrumentos teóricos empregues ou
métodos de análise aplicados chegarão a direcções diferentes.
Partindo de noções aristotélicas, e tentando que não caia a noção
num entendimento moralizante (de algo que não é “puro” nem
“perfeito”, logo mal-estruturado), Gernier chegará à sua
reapropriação pelo pós-modernismo, com Lyotard et al., num sentido
de “questionamento” de estruturas, identidades e purezas
culturais.
Encontraremos aqui textos
de Thierry Groensteen e de Thierry Smolderen (publicado antes em
inglês no livro de que falaremos adiante) sobre as noções deles
mesmos de “hibridação gráfica”, mas que, apesar da
coincidência de nomes, partem de pressupostos ligeiramente
diferentes, e que haviam sido expostos (e esgrimidos) nos seus
livros, respectivos, Bande dessinée et narration e Naissances de la banda dessinée. Os artigos destes autores são genéricos,
mas se o segundo revisita a produção do século XIX, o primeiro
volta a focar autores contemporâneos, e é fulcral que se leiam
ambos em conjunto para compreender a profundidade e rigor dessa
discussão. Um outro artigo, de Anthony Rageul, discute a banda
desenhada na web, mas todos os outros artigos discutem outras
disciplinas artísticas. Encontraremos a poesia ilustrada de William
Blake, a obra de animação e não só de Émile Cohl, a obra
artística de Alison Knowles, as ilustrações de Peter Sis, mas
também a escrita multímoda de Balzac, ainda que acompanhada pelas
vinhetas de Bertall (Petites misères de la vie conjugale).
Mas a colagem é alvo de alguns ensaios (como um de
Fresnault-Deruelle), assim como revistas de vanguarda, adaptações
de filmes a fotonovelas (cinéroman) e documentários na web e, o
mais surpreendente, as partes narrativas, com imagens, da revista
White Dwarf, dedicadas ao universo diegético associado ao
jogo de estratégia de miniaturas Warhammer.
Conforme se entenderá, a
noção de hibridação aqui servirá para identificar negociações
e tensões entre mais do que uma (aparente) forma de expressão
autónoma e semioticamente pura, e nas quais surgirão produções de
significado que não se preveriam antes, nessa suposta autonomia.
Essas negociações encaminharão os autores para os questionamentos
identificados por Gerbier, desde a iconoclastia intrínseca às
práticas artisticas até ao carácter lúdico prometido,
procurando-se identificar mesmo formas emergentes de expressão e
criação, revelando-se como o estudo interdisciplinar poderá
sempre, sempre, informar áreas contíguas.
The French Comics
Theory Reader. Ann Miller e Bart Beaty, eds. (Leuven
University Press) Quando abordámos o livro sobre Joann Sfar,
demos a entender desde logo a existência de um volume anterior, que
dera início a esta colecção. Esse volume é, decididamente, um dos
mais importantes livros a ter saído o ano anterior e que poderá vir
a tornar-se um daqueles instrumentos obrigatórios nas primeiras
abordagens de Estudos da Banda Desenhada, se não mesmo à sua
revisitação perene. Prometido desde longa data (e que possivelmente
encontrará um volume “rival” num projecto de Neil Cohn, a sair
no futuro), este volume reúne entre capas um conjunto de textos
publicados entre os anos de 1969 e 2013, já que alguns eram inéditos
à data (como o de Smolderen, v. acima), dos mais variados autores
francófonos (franceses e belgas, entre os quais os flamengos
Lefèbvre e Baetens), alguns dos quais se viriam a tornar referências
obrigatórias ou pelo menos fundadoras de noções e conceitos que se
revelariam fulcrais na construção teórica consequente.
Façamos uma
descrição estrutural. Os editores e tradutores, Ann Miller e Bart
Beaty, já de si importantíssimas referências neste universo de
estudos, providenciam introduções diversas, desde a geral a todo o
volume, contextualizando a emergência da riquíssimo panorama de
estudos intelectuais em torno da banda desenhada no espaço
francófono, e depois a cada secção, especificando melhor a
importância de cada capítulo, autor, noção. Existem quatro
secções, a primeira dedicada a “origens e definições”, muitas
vezes as grandes vexatae quaestiones
que se comportam como verdadeiros escolhos ao avanço dos estudos,
mas ainda assim centrais para explicitar o ponto de partida de
quaisquer desenvolvimentos, a segunda a “abordagens formais no
estudo da banda desenhada”, o terceiro sobre “crítica francesa
de banda desenhada” e a última intitulada “Lendo a indústria
francesa da bd”. Foram seleccionados 25 textos, mas são menos
autores, alguns dos quais se repetem, como é de esperar. Sem desejar
criar qualquer tipo de hierarquia entre eles, existem alguns que são
referências ainda actuais e obrigatórias, como Thierry Smolderen,
Thierry Groensteen, Jacques Samson, Jan Baetens, Pascal Lefèvre,
Harry Morgan, Benoît Peeters, outros que se encontram numa posição
de referências específicas e históricas que importa jamais perder
de vista, como Gérard Blanchard, Pierre Fresnault-Deruelle, Pierre
Sterckx, Michel Serres e Luc Boltanski, e outros ainda que são
grandes contribuidores para novas direcções (Pascal Ory, Erwin
Dejasse, Philippe Capart). Dependendo da posição ideológica e
disciplinar, encontraremos aqui nomes que são fundamentais de
seguir, e outros que importa antes ler para criticar e nos afastar
deles (Francis Lacassin, Serge Tisseron, sem detrimento aos
contributos importantes para o campo, entre os quais uma questão de
“expansão e abertura”, previstos nos textos escolhidos).
Alguns dos textos
aqui presentes são mesmo “fundadores”, digamos assim, da área,
e há páginas da mais acesa e arguta das leituras críticas, não
estivesse Bruno Lecigne, Jean-Pierre Tamine e Harry Morgan aqui
representandos com textos de leitura analítica (o último,
curiosamente, com Manuel Hirtz, em torno de Jack Kirby,
demonstrando-se que a francofonia não é impeditiva de um escopo
alargado).
Seguramente que se
voltará a este volume neste mesmo espaço em breve, com outras
perspectiva mais arreigada e completa, mas também é sem grandes
dúvidas que se encontrará neste volume um ponto de regresso
constante aos investigadores futuros, sobretudo aqueles que não lêem
francês, deixando de haver uma desculpa para a falta de acesso a
estes escritos e esperando-se que o diálogo internacional, a nível
teórico, possa finalmente ter lugar efectivo.
Nota final:
agradecimentos às respectivas editoras, pelas ofertas dos livros.
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