14 de março de 2015

Ninguéns e Peido. Topedro (auto-edição)

O autor de Mores et al, A minha avó Conceição, Autobiografia sem factos, Epílogo, etc., continua o seu longo e estranho, fragmentado e aturado projecto de, e empregamos a palavra com algum receio, “autobiografia”. Em ocasiões anteriores, fomos tentando entender quais os elementos, textuais, paratextuais ou indirectos que têm contribuído para que os seus livros tragam factores de crise dessa categorização. A eles remetemos, para poder ler de imediato estes últimos dois volumes.  (Mais) 

Ninguéns, cujo subtítulo é misosofia (literalmente, “aversão à sabedoria”), segue o percurso de um dia de um funcionário de limpeza de uma qualquer câmara de uma pequena vila portuguesa. O pequeno-almoço com a irmã (?), o almoço com os colegas de trabalho. Depois dissolve-se num momento transcendental, com “visões” ou imagens simbólicas não totalmente claras na economia da “narrativa”. E, regando cada um desses momentos, diálogos intensos em torno da religião, da psicanálise freudiana e jungiana, da dialéctica marxista, numa camada densa de referências e argumentação séria.

Esta densidade de pensamento, de citações (de hegelianos, marxistas, Foucault, que detestava ser chamado de estruturalista, e outras correntes) continua em Peido, mas de uma maneira curiosíssima. Entramos de chofre numa descrição de uma situação qualquer que um homem faz a outro. Este não entende o que o primeiro quer dizer por “insultar” e inicia-se uma breve discussão em torno dessa palavra. Os seus contornos, efeitos, precisões, e papel numa conversa (anterior, não a presente, a qual é “sobre” aquela onde se passou o insulto). Depois recuamos no tempo (imaginamos nós, leitor singular, já que pode não ser isso o que ocorre) para uma jantarada onde os diálogos sobre a ontologia humana prosseguem. Mas apesar das ideias esgrimidas, sobre uma certa transcendência ao corpo físico, o tal primeiro homem sente a necessidade, absolutamente material, de soltar uma flatulência. O diálogo – nas verdade uma rede de frases soltas - continua, mas observamos o cão debaixo da mesa (simbolização da materialidade, animalidade, pré-consciência num substrato? Ou apenas um cão debaixo da mesa?). Finalmente, regressamos aos dois homens do início, trazendo uma bela inflexão sobre o papel do cu (e a sua expressão comunicacional, cf. Peter Sloterdijk recuperando o cinismo de Diógenes, o peido).

Em ambos os casos, vemos situações onde fosse como se se seguissem todos aqueles mecanismos absolutamente banais e comuns das conversas de café, como se costuma dizer, de uma opinião atirada ao calhas, numa converseta, mas todas as personagens estivessem munidas de instrumentos intelectuais usualmente reservados a uma curta nata da população. Não pensamos que o efeito seja o de um humor irrisório, por hipótese, à la Filosofia de Ponta, em que as referências empregues eram sólidas mas cujo objectivo era a sua automática dissolução no absurdo e, em rigor, cujo valor de citação era atomizado. O que é dito em Ninguéns e Peido é dito com propriedade, rectitude, segurança, intercalado com citações a cada segmento. Até certo ponto, recorda-nos o desequilíbrio aparente de O cavalo de Turim, de Béla Tarr, em que o “fundo” de uma família miserável serve de paisagem a discursos cuja preciosidade se apresenta como pequenas intensidades de sentido. Sem a austeridade de Tarr, claro, sendo outros os instrumentos expressivos do autor português, mas provocando o mesmo tipo de diálogo, parece-nos.

Ninguéns e Peido parecem não assumir jamais nenhum daqueles pequenos elementos narratológicos ou visuais (perspectivas “na primeira pessoa) que permitiriam incluí-los no tal projecto autobiográfico. A sua diferença material (tem o mesmo tamanho mas não a mesma orientação) também apelaria a uma consideração apartada. Mas tendo em conta algumas das características desse mesmo projecto, talvez consigamos “recuperar” (ou forçar?) estes dois volumes para uma certa continuidade.

Gaston Bachelard, em A poética do espaço, escreve o seguinte: “No teatro do passado, que é a nossa memória (…) acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo, que no próprio passado, quando, em busca do tempo perdido, quer “suspender” o voo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. O espaço serve para isso”. Desconhecemos se o autor subscreveria esta leitura, ou se, bem pelo contrário, se inclinaria mais para uma leitura bergsoniana do tempo, e da questão da duração, inacessível à mensurabilidade científica. O que importa sublinhar no confronto daquela citação e nos objectos de Topedro é que cada um dos seus pequenos livros criam precisamente um pequeno espaço, uma espécie de paisagem portátil, fechada sobre si mesma, uma “fatia” da experiência e do tempo (um alvéolo em que o tempo se comprime numa “unidade narrativa”) que nos é oferecida.

Há todavia um problema nesta interpretação geral. É que ela poderá criar a ilusão de que estes livros, estes episódios ou capítulos, coordenar-se-iam uns com os outros de maneira a criar, num hipotético ponto final e agregação conjunta, uma “história maior”, por hipótese, a “biografia de António Pedro Pinto Ribeiro, autor”. Nesse sentido, a sua “obra” aproximar-se-ia de autores cujo projecto autobiográfico é mais ou menos coerente, uno ou que pelo menos contribui paulatinamente para uma imagem, mesmo que plurifacetada, unida (não “única”). Como sucede, em graus e até naturezas diferentes, Baudoin, Marco Mendes, Fabrice Neaud, Lynda Barry, Justin Green, Kominsky e Crumb, etc.

Mas não é de forma alguma o caso. Na verdade, mesmo após a leitura de tantos “capítulos”, desde O céu é meu, é meu o mar, o “homem” por detrás da função de autor, e que surge como protagonista mas sempre descentrado no interior das histórias, e mais descentrado ainda nestes dois títulos, continua uma figura algo elusiva. Não estamos perante um gesto de confissão, exposição, ou expressão aberta de um eu, mas de uma dança subtil de aproximação à boca da cena mas ficando-se sempre na sombra. Ou numa sombra. “A identidade é uma prótese de evidência em terreno incerto”, diz o protagonista de Ninguéns. Os livros então, não são “capítulos” de forma alguma. São apenas “fixações”, “próteses”, mas que na verdade não nos permitem dizer que há uma “estabilidade do ser”. As informações duras, banais, “factuais”, entre cada título, não são facilmente coordenáveis. Até que ponto estamos perante ficções?

A verdade é que não importa. Não se trata nem de um projecto que explore a autenticidade afectiva da autobiografia – que pode passar por estratégias poéticas, auto-ficcionais e até fantasmáticas-fantásticas (veja-se Justin Green ou David B.) – nem por algo que crie uma espécie de escândalo falseado – à la Judith Forest. É uma apresentação de um eu que se dissolve constantemente à medida que se apresenta, e até pelos voos, ora rasantes ora certeiros, pela filosofia esgrimida. O voo do tempo, afinal, consegue estar suspenso pois não permite um fio vermelho que o reúna sob uma bandeira. Ainda assim, há uma figura fantasmal que e mantém, e que continuaremos a chamar “autor”, “protagonista”, “Topedro”…

Nota final: como sempre, os nossos agradecimentos ao autor, pela oferta das suas publicações. 

2 comentários:

  1. "talvez consigamos “recuperar” (ou forçar?) estes dois volumes para uma certa continuidade."

    não, não é de modo nenhum forçada, a temática anti-"espiritual" é comum, e, se não é evidente isso reflecte talvez a escolha de soluções "...não totalmente claras na economia da “narrativa”...
    (por ex, não é "APESAR das ideias esgrimidas, sobre uma certa transcendência ao corpo físico... sente a necessidade, absolutamente material, de soltar uma flatulência" mas precisamente essas ideias que provocam a dita)

    o que conta não é a intenção do autor ou "se o autor subscreveria esta leitura, ou se, bem pelo contrário, se inclinaria mais para uma leitura bergsoniana do tempo" (apesar da "poética do espaço" ter sido uma leitura recente não a vejo reflectida aqui e as minhas referências "intuicionistas" andam mais pelo Espinosa)
    mas as leituras que se possam fazer, e as do Pedro Moura são sempre estimulantes,
    obrigado,
    um abraço,

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  2. Olá, Topedro,

    Obrigado pelas palavras.
    Compreendo que o "apesar" está a mais e rasga precisamente a relação que está presente nos eventos do livro. Sem querer que a comparação rompa o saco, nalguns aspectos estas relações entre os aparentes e contraditórios posicionamentos existenciais, contrapondo o intelecto e poético e a baixa e carnal resposta está presente também noutro cínico, o Miguel Carneiro. Uma via a estudar...

    Um abraço!
    pedro

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