Esta antologia da Chili Com Carne dá continuidade ao seu
trabalho de criação de oportunidades a novos artistas, através de projectos em
que não apenas as condições económicas e de distribuição são mais elevadas do
que aquelas permitidas pelos fanzines – nos quais eles usualmente trabalham –
mas também desafiando-os através de padrões materiais inusitados. Formatos,
possibilidades de um jogo de cor, princípios temáticos, etc. (recordemos como o
concurso anual da CCC, os “500 paus”, possibilitam projectos em qualquer dos
formatos das colecções já existentes, sendo esta uma delas). Porém, acima de
tudo está a liberdade de responderem a esses mesmos desafios como bem
entenderem, desde que se criem trabalhos que, de uma forma ou de outra,
desafiem ideias empedernidas da banda desenhada. (Mais)
Esta é a segunda experiência intitulada QDCA, tendo sido a primeira antologia uma agregação de quatro
jovens artistas (Afonso Ferreira, Zé Burnay, André Pereira e Rudolfo), cujas
afinidades com estas novas quatro autoras são variadas, desde os canais de
trabalho e distribuição, aos modos de expressão e materialização. Mas se os
quatro primeiros “chavalos do Apocalipse” tinham, ou têm, preocupações mais ou
menos actualizadas numa espécie de humor balizado em géneros, e espartilhadas
por princípios narrativos, claros, as autoras agora reunidas, a saber, Sílvia
Rodrigues, Amanda Baeza, Sofia Neto e Hetamoé, vão bem mais longe na sua
prestação de liberdade.
Cada uma das autoras tem quatro páginas A3 para criar a sua
“peça”, constituídas por dois spreads
(a mesma “fórmula” do QDCA # 1000),
mas todas elas optam, como se esperará da experiência de cada uma, por
estratégias de estruturas e expressivas diferentes. Sílvia Rodrigues vai
dividindo a página nas vinhetas que necessita para construir a sua história,
habitada pela sua protagonista, desenhada com um traço a grafite, em figuras
relativamente toscas e distorcidas. O rosto e o corpo não tem uma consistência
constante, mas distorce-se nos momentos de maior expressividade, como se se
espalhasse no tecido do tempo-espaço que ocupa, uma forma de tornar mais clara
e nítida essa mesma expressividade. Sendo uma história vaga em torno de uma
mulher cuja backstory não nos é
apresentada completamente, essa ambiguidade apenas reforça a sua presença
enquanto forma de emoções e sentimentos semi-apresentados.
Amanda Baeza, com o seu fortíssimo sentido de estilização,
apresenta pranchas, no primeiro spread,
com um grau rígido de pranchas regulares, uma grelha de 4 x 4 vinhetas, em que
algumas delas são subdivididas em unidades menores, em posicionamentos
ortogonais, ou distribuídas “flutuando” no interior da maior; na segunda,
trata-se de um verdadeiro spread,
como se se tivesse “rasgado” um véu para revelar o que havia estado escondido.
Tendo em conta que os “eventos”, diálogos e até citações textuais de um dos
fundadores dos Estudos Culturais, John Fiske, criam uma espécie de aventura de
um casal (à la Joana e João, ou todas as duplas da bd clássica) num mundo tão
onírico como politizado, essas estruturas e vários níveis “existenciais” tornam
esta peça num mistério de significados extremamente interpelante e até
incómodo.
Sofia Neto, por sua vez, apresenta o que parece ser a
estrutura mais convencional de banda desenhada deste volume, numa história
igualmente ajustada a expectativas mais normalizadas, até por se basear
(aparentemente) numa famosa personagem mítica grega. Os desenhos de Neto também
têm uma legibilidade limpa, por assim dizer, próxima de linguagens modernas e
adaptáveis a mesclar géneros históricos (ficção científica, fantástico, terror,
etc.) e meios mais livres de explorar essas narrativas (fragmentação, ausência
de causalidade, incompletude, etc.). Podendo ser lida como um exercício metatextual
não apenas sobre a própria história que estamos a ler como o mecanismo de
prazer de todas as leituras (sobretudo as recorrentes), “Cassandra” é desde logo
uma brilhante prestação.
Finalmente, Hetamoé (que também toma conta da capa) parece ser
a autora que mais tira partido do enorme formato das páginas A3 para “espalhar”
– quase sem estrutura, mas ela está lá – as suas vinhetas, misturando legendas
e elementos “decorativos” (que bebem de toda uma complexa cultura da mangá shouju) no que parecem ser momentos
fora do tempo. Os seus temas de sempre, a solidão que resulta de desencontros
amorosos, uma certa desilusão na expressão pessoal, o desejo e a forma como ele
constitui o próprio sujeito, etc. são as matérias moldadas, criando uma
história feita mais de impressões fantasmáticas e holísticas do que a
organização de acontecimentos e uma personalidade “clara”.
Não queremos dizer que as outras três autores não usam o
espaço que lhes é devido, mas tão-somente que, tal como ocorrera no sétimo número de Kramer’s Ergot [v. secção de comentário] , as
potencialidades deste formato não são procuradas com especificidades
estruturais. Se as histórias de Neto, Rodrigues e Baeza surgissem noutro
formato mais normalizado (“formatos betinhos”, na ideação da Chili Com Carne),
não haveria decerto grandes distorções. Compare-se, por exemplo, com a forma
como se tira partido (ou não) de um pequeno formato, como é o caso de Crumbs ou a nova antologia Kus (sobre cujo número “português”
falaremos muito em breve).
Mas como grande projecto, estas peças das quatro autoras
preenchem toda a sua superfície e profundidade.
Nota final: imagens retiradas do blog da editora e do das autoras.
Julgo que o último número do Kramer's Ergot foi o oitavo, num formato mais convencional que a desproporcional sétima edição da antologia.
ResponderEliminarCaro Ricardo,
ResponderEliminarÉ verdade, com a pressa de fazer o link para o texto anterior, enganei-me (e dei azo ao mito de que o K.E. 7 tinha "dado cabo" da editora). Vou já corrigir.
Obrigado!
Pedro