16 de março de 2015

QCDA # 2000. AAVV (Chili Com Carne)

Esta antologia da Chili Com Carne dá continuidade ao seu trabalho de criação de oportunidades a novos artistas, através de projectos em que não apenas as condições económicas e de distribuição são mais elevadas do que aquelas permitidas pelos fanzines – nos quais eles usualmente trabalham – mas também desafiando-os através de padrões materiais inusitados. Formatos, possibilidades de um jogo de cor, princípios temáticos, etc. (recordemos como o concurso anual da CCC, os “500 paus”, possibilitam projectos em qualquer dos formatos das colecções já existentes, sendo esta uma delas). Porém, acima de tudo está a liberdade de responderem a esses mesmos desafios como bem entenderem, desde que se criem trabalhos que, de uma forma ou de outra, desafiem ideias empedernidas da banda desenhada. (Mais) 

Esta é a segunda experiência intitulada QDCA, tendo sido a primeira antologia uma agregação de quatro jovens artistas (Afonso Ferreira, Zé Burnay, André Pereira e Rudolfo), cujas afinidades com estas novas quatro autoras são variadas, desde os canais de trabalho e distribuição, aos modos de expressão e materialização. Mas se os quatro primeiros “chavalos do Apocalipse” tinham, ou têm, preocupações mais ou menos actualizadas numa espécie de humor balizado em géneros, e espartilhadas por princípios narrativos, claros, as autoras agora reunidas, a saber, Sílvia Rodrigues, Amanda Baeza, Sofia Neto e Hetamoé, vão bem mais longe na sua prestação de liberdade.

Cada uma das autoras tem quatro páginas A3 para criar a sua “peça”, constituídas por dois spreads (a mesma “fórmula” do QDCA # 1000), mas todas elas optam, como se esperará da experiência de cada uma, por estratégias de estruturas e expressivas diferentes. Sílvia Rodrigues vai dividindo a página nas vinhetas que necessita para construir a sua história, habitada pela sua protagonista, desenhada com um traço a grafite, em figuras relativamente toscas e distorcidas. O rosto e o corpo não tem uma consistência constante, mas distorce-se nos momentos de maior expressividade, como se se espalhasse no tecido do tempo-espaço que ocupa, uma forma de tornar mais clara e nítida essa mesma expressividade. Sendo uma história vaga em torno de uma mulher cuja backstory não nos é apresentada completamente, essa ambiguidade apenas reforça a sua presença enquanto forma de emoções e sentimentos semi-apresentados.    

Amanda Baeza, com o seu fortíssimo sentido de estilização, apresenta pranchas, no primeiro spread, com um grau rígido de pranchas regulares, uma grelha de 4 x 4 vinhetas, em que algumas delas são subdivididas em unidades menores, em posicionamentos ortogonais, ou distribuídas “flutuando” no interior da maior; na segunda, trata-se de um verdadeiro spread, como se se tivesse “rasgado” um véu para revelar o que havia estado escondido. Tendo em conta que os “eventos”, diálogos e até citações textuais de um dos fundadores dos Estudos Culturais, John Fiske, criam uma espécie de aventura de um casal (à la Joana e João, ou todas as duplas da bd clássica) num mundo tão onírico como politizado, essas estruturas e vários níveis “existenciais” tornam esta peça num mistério de significados extremamente interpelante e até incómodo.

Sofia Neto, por sua vez, apresenta o que parece ser a estrutura mais convencional de banda desenhada deste volume, numa história igualmente ajustada a expectativas mais normalizadas, até por se basear (aparentemente) numa famosa personagem mítica grega. Os desenhos de Neto também têm uma legibilidade limpa, por assim dizer, próxima de linguagens modernas e adaptáveis a mesclar géneros históricos (ficção científica, fantástico, terror, etc.) e meios mais livres de explorar essas narrativas (fragmentação, ausência de causalidade, incompletude, etc.). Podendo ser lida como um exercício metatextual não apenas sobre a própria história que estamos a ler como o mecanismo de prazer de todas as leituras (sobretudo as recorrentes), “Cassandra” é desde logo uma brilhante prestação.

Finalmente, Hetamoé (que também toma conta da capa) parece ser a autora que mais tira partido do enorme formato das páginas A3 para “espalhar” – quase sem estrutura, mas ela está lá – as suas vinhetas, misturando legendas e elementos “decorativos” (que bebem de toda uma complexa cultura da mangá shouju) no que parecem ser momentos fora do tempo. Os seus temas de sempre, a solidão que resulta de desencontros amorosos, uma certa desilusão na expressão pessoal, o desejo e a forma como ele constitui o próprio sujeito, etc. são as matérias moldadas, criando uma história feita mais de impressões fantasmáticas e holísticas do que a organização de acontecimentos e uma personalidade “clara”.

Não queremos dizer que as outras três autores não usam o espaço que lhes é devido, mas tão-somente que, tal como ocorrera no sétimo número de Kramer’s Ergot [v. secção de comentário] , as potencialidades deste formato não são procuradas com especificidades estruturais. Se as histórias de Neto, Rodrigues e Baeza surgissem noutro formato mais normalizado (“formatos betinhos”, na ideação da Chili Com Carne), não haveria decerto grandes distorções. Compare-se, por exemplo, com a forma como se tira partido (ou não) de um pequeno formato, como é o caso de Crumbs ou a nova antologia Kus (sobre cujo número “português” falaremos muito em breve).

Mas como grande projecto, estas peças das quatro autoras preenchem toda a sua superfície e profundidade.
Nota final: imagens retiradas do blog da editora e do das autoras.

2 comentários:

  1. Julgo que o último número do Kramer's Ergot foi o oitavo, num formato mais convencional que a desproporcional sétima edição da antologia.

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  2. Caro Ricardo,
    É verdade, com a pressa de fazer o link para o texto anterior, enganei-me (e dei azo ao mito de que o K.E. 7 tinha "dado cabo" da editora). Vou já corrigir.
    Obrigado!
    Pedro

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