Apesar
de Peeters ser um autor conhecido pelos leitores portugueses
particularmente pelo seu autobiográfico Comprimidos Azuis,
que ocupa um lugar de destaque ainda que numa paisagem extremamente
diversificada e cheia de obras maiores, ele é também um autor que
se dedica a géneros aparentemente mais convencionais, como o da
ficção científica ou o policial, para depois estudar no seu
interior pequenos desenvolvimentos mais próximos da condição
humana. Não pensamos ter de corrigir uma imagem que havíamos
imaginado quando falámos de Lupus, a sua anterior saga de fc,
uma vez que Peeters, mesmo tendo conquistado uma maior exposição e
atenção crítica, precisamente pelo desenvolvimento que se tem
esforçado para atingir, tanto a níveis das estruturas
formais-narrativas como na prestação do seu desenho, cada vez mais
desenvolto e solto (à la Blutch, se bem que não esteja tão próximo
da urgência deste último, e esteja mais preocupado na fabricação
de objectos), não nos parece ter ultrapassado a ideia de um domínio
absoluto dos instrumentos da banda desenhada, mas sem que haja
propriamente uma sua refundição. Trabalho magistral, no pleno
sentido técnico da palavra, de controlo, conhecimento, domínio e
fabricação. (Mais)
Âama
foi uma longa história coesa publicada ao longo de quatro tomos, de
84 pranchas cada um (excepto o último, de 100), entre 2011 e 2014, e
tal como ocorreu com Lupus, é possível que venha a ser
reunido num só volume. Os títulos de cada tomo foram L'odeur de
la poussière chaude, La multitude invisible, Le désert
des miroirs, e Tu seras merveilleuse, ma fille.
Diferentemente de Lupus e principalmente de Pachyderme,
e apesar de tudo, da sua estrutura intricada, o “tema”, por assim
dizer, desta história é simples e directo: o amor de um pai por uma
filha.
Se
em alguns aspectos, as comparações continuadas entre Âama e
toda uma série de ficção científica de banda desenhada de um
cariz poético, estranho, oblíquo, algo onírico, sobretudo a saga
d’O Incal, faz sentido, em termos mais estritamente
temáticos (científicos?) estará perto da premissa de um Galáxias
como grãos de areia, de Brian Aldiss, com a sua promessa do novo
passo da humanidade na escala da evolução. No caso presente, da sua
reformulação através das conquistas possíveis (e que não são
assim tão fictícias como isso) pela tecnologia computacional e
pós-biológica. Âama tem uma intriga intricada (perdoe-se o
semi-pleonasmo) que mistura uma trama de investigação policial,
investigação industrial, aspectos científicos, as consequências
sociais desses avanços e, mais centralmente, um drama familiar. Este
centra-se na figura de Verloc, um homem que se agarra romanticamente
a objectos arqueológicos que já nenhum préstimo têm na sociedade
actual (a saber, livros), tentando viver disso, a crise que atravessa
a sua vida familiar com a mulher que dele se separa, levando a filha,
e o reencontro com o irmão mais novo, Conrad. Este, trabalhando para
uma companhia privada, tem de estudar o que se passa num planeta,
chamado Ona(ji), onde parece ter-se perdido o contacto com uma equipa
de cientistas, que estuda o titular “Âama”, um projecto que
envolve pico-robots que reescrevem a vida biológica, e estudam novas
formas de acelerar os processos naturais biológicos evolutivos.
Assim, de uma forma velada, dá-se início ao próximo passo da
evolução da própria espécie humana.
Neste
futuro hipotético, em que todas as pessoas já têm integrados nos
seus corpos vários processos tecnológicos, Verloc e a sua mulher
decidem ter uma filha à moda antiga, sem quaisquer tipos de
intervenções tecnológicas. Lilja, infelizmente, nasce surda, o que
lança a crise no seio da família, mas também as desculpas para
várias redes de manipulação das personagens.
Dessa
forma, todos os elementos conspiram para que Verloc se encontre na
superfície de Ona(ji), aparentemente por acaso, mas encontrando aí
a razão última da sua missão, e que implicará uma espécie de
fusão, através da filha, que afinal se encontra aí, com o âmago
de Âama. Mas antes dessa finalíssima apoteose, há toda uma rede de
personagens que se vai complicando, tornando cada vez mais intricada
a geometria das interacções.
A
estrutura da narrativa é algo estranha, o que complica a ideia
unidireccional da intriga (que não deixa de existir). Começamos num
momento de crise avançada, piorada pela amnésia do protagonista, e
é em retrospectiva, através da leitura do seu próprio diário de
viagem que lhe é entregue por um gorila robot, Churchill, que
descobrimos o que acontecera até esse ponto inicial, sendo esse
relato do passado que preenche o corpo central dos livros. Os
elementos todos, portanto, se numa primeira fase parecem desarrumados
e excessivos, mais tarde ou mais cedo encaixar-se-ão numa ontologia
cuidada e coerente. Não estamos perante um projecto tão livre
quanto o Pentothal de Pazienza, tampouco a Garagem de
Moebius, mas juntamente com Les derniers jours d'un immortel,
Distance Mover, Celeste, King City, Prophet , os trabalhos a solo de André Pereira ou com/dos seus colegas do Círculo, e outros títulos, Âama fará parte de uma tendência, se
assim for possível pensá-lo, de “weird sci fi”. O que a
fantasia da exploração desabrida biológica desta história permite
é o abandono do autor suíço na fabricação das formas vegetais,
animais, e mesmo minerais (ou deveria colocar o prefixo “pseudo”
nessas descrições?) que habitam a colónia visitada por Verloc e o
seu irmão, permitindo assim a algumas descrições soberbas das
paisagens e do percurso de viagem. Poder-se-ia dizer, nesse sentido,
que o objectivo é menos de ficção científica propriamente dita –
imaginar desenvolvimentos tecnológicos e os impactos
sócio-económicos e políticos que isso implicará, apesar de haver
grande explorações nesse sentido – do que um questionamento
ontológico sobre a vida, o seu destino e o espaço das emoções
nesse cômputo.
Todavia,
desenganem-se os leitores que pensarem estarmos perante uma novela de
flutuações e ambientes somente. Peeters é um autor que prefere
apresentar esses momentos integrados, ou subsumidos, a uma estrutura
convencional, cheia de momentos de acção, desenvolvimento de
relações entre as personagens, reviravoltas e surpresas, etc. Como
nos projectos anteriores, a legibilidade é total, desde o nível do
desenho à composição das páginas, se bem que haja curtos
episódios, passagens e transições em que se procuram
“desarrumações” expressivas precisamente para transmitir esses
desvios ontológicos. Nesse sentido, aliás, Peeters está muito
próximo de Grant Morrison, que tira partido do mesmo tipo de
destruturação aparente da construção planar da banda desenhada
para dar conta de travessias entre planos existenciais diferenciados.
E, à medida que avançamos, os delírios e transformações
internas, sobretudo a transfiguração final, passam por formas mais
libertas da clássica ortogonalidade desta disciplina.
Âama
é, a vários níveis, um excelente exemplo deste regresso à ficção
científica dos anos 1970 que temos verificado na banda desenhada
(falaremos em breve de um pequeno projecto de Ricardo Cabral que
mergulha de cabeça nestas águas), sobretudo, em que se procuram
construir mundos complexos em todas as camadas da existência humana.
Não deixa de ser algo linear, apesar da concatenação de
informações e linhas de desenvolvimento, e apesar do cerne estar na
relação entre pai e filha, não se procuram melodramatismos de
qualquer espécie. Bem vistas as coisas, até se pode dizer que mesmo
no meio da espectacularidade se mantém um tom calmo de fio a pavio.
Mas
é nessa acalmia que a tempestade visual se produz, convidando o
leitor a lê-la, também lentamente.
ResponderEliminarcomo leitor assíduo do peteers desde de
" brandon B. " tenho que confessar que achei a leitura do remix Otomo/Moebius do quarto volume bastante penosa...
Caro Joemesk,
ResponderEliminarComo havia dito em várias circunstâncias, não penso que o F. P. seja um autor brilhante, totalmente inovador, etc., mas tampouco penso que essa é a melhor maneira de criar expectativas em relação a novos livros. Esta revisitação não é livre de problemas, e o quarto volume parece acelerar e reduzir pela "magia" do ex machina algumas promessas mais ao nível das relações familiares que haviam sido prometidas anteriormente, mas não é uma desgraça total, a meu ver. Mas compreendo as limitações, que podem desencorajar a leitura.
Obrigado.
Pedro M.