Este
texto é, a um só tempo, uma breve leitura de um projecto de Ricardo
Cabral, e um momento de publicidade. Uma vez que se trata de um
projecto feito no seio do curso de auto-edição da Oficina do Cego,
a que pertencemos, é necessário compreender que há um ou dois
gramas de proximidade ao contexto de produção sobre o qual
exerceremos um poder de “venda”. (Mais)
O
curso de auto-edição da Oficina do Cego propõe aos formandos uma
aprendizagem que atravessa várias fases, de exposição a conceitos,
projectos existentes, uma breve história da cultura do livro e do
objecto impresso, assim como a uma série de disciplinas práticas
que são possíveis de fazer no espaço oficinal: serigrafia,
linogravura, tipografia, encadernação e por aí fora. O princípio
condutor, porém, é operado pelos próprios formandos, que
procurarão navegar essas águas com os seus próprios propósitos,
talentos e direcções. No caso presente, Ricardo Cabral criou um
pequeno livro de banda desenhada impresso a serigrafia, a preto, com
uma capa impressa também a serigrafia a duas cores, com badanas, mas
que é na verdade um poster desdobrável, o título feito a partir de
linogravura, e utilizando papéis distintos para a capa, miolo e
guardas, criando assim várias texturas tácteis que poderão ter um
lugar na apreciação, leitura e até mesmo interpretação semântica
de Terrea.
É
no seu “interior” que nos concentraremos. As imagens que Cabral
criou para esta pequena narrativa de 31 pranchas (de um formato
próximo ao A5), criadas por meios digitais mas sem que se perca a
urgência e fluidez manual, como o autor já nos habituou, bebe de
uma pesquisa que tem perseguido desde o poster do FIBDA de 2013 e que
têm estado presentes nalguns dos elementos que tem publicado no The Lisbon Studio Mag.
Há,
sem dúvida, uma narrativa em Terrea, mas é bem possível que
a sua “escrita” tenha obedecido antes a pulsões do próprio
desenho, a uma navegação de ritmos internos pedida pela pesquisa
visual, e menos por um qualquer desejo de absoluta lógica literária.
Temos vários grupos distintos de personagens recorrentes, a que
poderíamos chamar de “ser semi-divino”, ou “Silver Surfer”,
os “viajantes” que atravessam a paisagem do planeta visitado a
cavalo, e o “guia” ou “xamã”, que poderá recordar-nos de um
xamã aborígene australiano, apesar de Cabral misturar vários
elementos de uma forma fantástica (no sentido de fantasiosa). Aliás,
as estruturas que ocupam spreads completos, e também
influenciam a imagem geral da capa, encavalitam elementos tais como
máscaras à la dança topeng (Indonésia) ou Tsam (Mongólia), que
costumam ter características de demónios muito dramáticos e
expressivos, um rosto de mulher tranquilo, mamas, alguns mamilos dos
quais parecem olhos negros, caveiras, garras e presas, e toda uma
série de objectos soltos, como pedras, excrescências vegetais ou
talvez uma espécie de variação de energia à la Jack Kirby. Dessa
maneira, Cabral pretenderá criar um espaço que suscite várias
referências alternativas. Como se desejasse que o leitor começasse
a fazer associações mas jamais se decidisse por um só quadro.
A
ausência de matéria verbal, apesar de haver claramente momentos de
comunicação directa e até mesmo oral entre as personagens, aumenta
a ambiência onírica dos trajectos das várias personagens. Nesse
outro sentido, e indo também ao encontro do tratamento gráfico e
temático de Terrea, este pequeno projecto do autor
associar-se-á a um imaginário nostálgico pela banda desenhada de
ficção científica de contornos cósmicos de um Druillet ou
Moebius, integrando-se num conjunto de autores actuais, um pouco por
todo o mundo, que têm re-explorado esses territórios. Afinal, temos
aqui cenas de energia espiritual partindo dos “terceiros olhos”,
temos travessias do cosmos ou pelas paisagens do planeta em
fragmentos de cristal, temos pirâmides invertidas e de cores
complementares praticamente tocando-se nos vértices, temos florestas
de “parlamentos” elementares, rituais à luz e calor de fogueiras
onde provavelmente se tecem poemas musicados intemporais, aparições
de seres diáfanos e fantasmagóricos, talvez de grande poder, e uma
visita derradeira a uma cidade aparentemente abandonada mas visitada
por uma estrutura imensa. Le tueur du monde e Sur l'étoile,
de Moebius, são as obras que mais parecem estar ecoadas em Terrea,
mas menos do que uma influência ou homenagem, tratar-se-ão de
tendências e e tocar as mesmas linhas de fuga e desenvolvimentos
temáticos.
Se
se trata de um primeiro passo num projecto maior, ou se se tratam
todos estes de elementos que o autor vai criando algo livremente, e
talvez se possa vir a coalescer em algo maior, só o tempo o dirá,
mas os princípios estão lá.
Por favor, escrevam com o novo português!!
ResponderEliminarEscreverem com a velha ortografia até causa estranheza. Simplifiquem. Não custa nada!
ResponderEliminarCaro anónimo,
ResponderEliminarEste não é o lugar para dar início a uma conversa e argumentação extremamente complexa e que tem tido lugar em locais mais apropriados e competentes. Este blog é escrito apenas por uma pessoa, eu mesmo (fora alguns posts onde há convidados).
Pela sua expressão "velha ortografia", só poderei imaginar que se trate de alguém extremamente jovem, habituado a este português de secretaria, se bem que esta não é uma questão de geração. Trata-se antes de uma consciência profunda das idiossincrasias específicas e históricas da minha língua, e não querer compactuar com um acordo que é muito triste em termos intelectuais. O tempo o dirá, e é possível que seja um "velho do Restelo" (jamais imaginaria!), mas manterei essa posição, com as excepções onde sou obrigado a ela por razões de potência.
Custa, e muito. E caro amigo ou amiga, não tem nada a ver com "simplificação".
Bem-haja,
Pedro Moura