Se
bem que seja possível estarmos a reduzir a produção de Hunt
Emerson a pouca coisa, diríamos que este autor tem como seus
principais territórios temáticos o humor desabrido e o erotismo,
ainda que este último, seja sob a forma da série Firkin, the Cat
ou as adaptações literárias (sendo Lady Chatterley's Lover o
primeiro e de maior reconhecimento), esteja muito formado por uma
abordagem igualmente humorística. E, também sendo possível
estarmos a incorrer numa redução injusta, é Calculus Cat a sua
personagem mais famosa, icónica e que terá surgido em mais locais,
tendo começado numa publicação americana, na verdade. (Mais)
A
Knockabout é uma editora de tamanho médio britânica, que teve no
seu catálogo alguns volumes de relativo sucesso, sobretudo as
antologias do final dos anos 1980 e inícios da de 1990, e que reúnem
pequenos trabalhos, mas muitas vezes significativos a vários níveis,
dos muitos autores que esse país produziu como sucessos à escala
planetária. É caso de Seven Deadly Sins, Outrageous Tales
from the Old Testament e 7 Ages of Woman. É aparente o
“regresso” à produção, graças a convénios com editoras
americanas, à sua associação com Alan Moore (como foi o caso da
revista Dodgem Logic e Unearthing) ou a projectos de
outros autores de prestígio internacional, os quais permitem
precisamente estas outras revisitações à pessoal e idiossincrática
“prata da casa”. Ora, já tendo sido alvo de colectâneas
anteriores, este novo volume não apenas reúne todo o material a
partir de 1979, como algumas histórias que jamais haviam sido
publicadas, e
ainda uma colecção de homenagens.
Emerson
tem um estilo muito vivo, dinâmico e “abonecado”, capaz de
instilar muitos pormenores de caracterização às personagens, ou
cenários extremamente detalhados, e de justa observação do mundo
real. Calculus, todavia, é uma série que vive de uma
abordagem de estilização quase absoluta, simplificação das
formas, e uma redução de todos os objectos a um conjunto mínimo de
traços que sirvam para a sua função diegética. De resto, essa
parece-nos ser uma estratégia apropriada para um conjunto de
anedotas curtas que vivem de certa forma da repetição de um tema, à
la Krazy Kat [por alguma razão estarão sempre a atirar-lhe pedras à cabeça] e às tiras de jornal do primeiro quartel do
século XX: uma mesma mecânica entre um número pequeno de
personagens, e estudar as variações possíveis. No caso, a situação
de partida costuma ser sempre a mesma. Calculus regressa a casa
depois de um cansativo, senão merdoso dia de trabalho, deseja
encontrar no seu aparelho de televisão um escape simples através de
material que o distraia da angústia diária, mas é bombardeado pela
sua própria personalidade, personificada numa espécie de pivot
embutido no aparelho que prefere esmagá-lo com promessas de
publicidade inútil e fastidiosa. Sobretudo do produto Skweeky Weets,
saibam esses cereais ao que souberem...
A
partir dessa premissa, tudo é possível: discutir com a televisão,
claro, mas também tentar desligá-la, tentar apanhar programas a
horas inusitadas, vê-la noutros lugares, arranjar companheiros,
dormir, escolher outros hobbies, e Calculus chega mesmo a
tentar escapar dos anúncios comprando um leitor de VHS, depois de
DVDs, ir para o cinema, não pagar a licença de televisão, e por aí
fora.
Uma
vez que o estilo de Emerson opta por essa abordagem mais simplificada
(visível sobretudo no protagonista, já que bastas vezes o autor o
contrasta com fundos pormenorizados e com um aturado trabalho de
tramas), e tendo em conta que encontraremos aqui revisitações que
duraram anos, não é de estranhar encontrar nestas páginas alguma
variedade em termos de grafismos, traços, composição, havendo
mesmo algumas páginas que, se testemunham um certo “anos 80” da
New Wave britânica-americana, ainda hoje têm um seu grau de
interesse. Seja como for, a presença da mão de Emerson é
particularmente visível, pelas palavras desenhadas (os seus ubíquos
“o”s de pontinho no interior), e é quase um jogo tentar
compreender as diferenças entre os movimentos de Calculus, que quase
parece ser carimbado ao longo das páginas, de modular que é.
Tematicamente,
e atentando que Emerson é companheiro da veia underground
britânica e norte-americana, é estranho pensar que esta série
nascera como uma crítica à cultura televisiva (ou “cultura
basura”) daquelas décadas e naquele país. Enquanto meio de
comunicação social e de massas, ele hoje não é mais do que isso,
um meio, capaz de transmitir desde as mais abjectas das propriedades
humanas como capaz de tecer alguns pontos de fuga de interesse
cultural, seja ele estético, político, social, etc. Imaginamos nós
que dependerá muito do posicionamento dos leitores, acreditando que
possa haver uma coincidência, mínima porém, entre aqueles que pura
e simplesmente desprezam a televisão independentemente do seu
conteúdo como aqueles que a vêem nos seus canais mais usuais pouco
importando uma posição crítica em relação à programação.
Mas
uma vez que o tipo de humor e críticas tecidas por Calculus Cat
(não a própria personagem, que a deseja como consolo, mas a obra de
Emerson) não deixa de ser algo ambivalente, superficial e vago,
perguntamo-nos se se pode dizer que há mesmo aqui uma “crítica”.
Esse foi também resultado da cultura underground, muitas
vezes: um desejo vago de querer estipular uma posição ideológica,
mas cujos argumentos nem sempre eram particularmente bem estruturados
ou expressos.
Talvez
seja apenas uma colecção de humor em torno de uma situação
particular, de um conjunto de telespectadores, sobretudos os tais
acríticos, aqueles que discutirão o que se passa em “Casa dos
Segredos”, que pautam o talento musical por concursos, que se
informam politicamente pelos “soundbites” dos telejornais e se
educam cinematograficamente pelos filmes de Domingo, tornando-se
surdos, cegos e mudos perante quase toda a outra produção...
inclusive a desta mesma disciplina que Emerson cultiva a seu modo.
Funcionando
como volume de balanço e até homenagem, este livro contem ainda uma
colecção de pin-ups do protagonista (desenhadas por vários
autores, de Gilbert Shelton a Kevin O'Neill, Dave McKean e Max), mas
é dúbio se o torna mais atractivo.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Eu sou amigo do Hunt Emerson e posso dizer com orgulho que devo ter a maior colecção de originais (pranchas e capas de livros), a obra dele é enorme, sugiro que vejam a última adaptação que ele fez do Inferno de Dante. Além disso devo dizer que é uma excelente pessoa e ultra acessível.
ResponderEliminarCaro João,
ResponderEliminarAgradeço as palavras e reitero o entusiasmo pela versão do "Inferno", que se integra na mais pura da tradição do cartoon caricatural britânico.
Obrigado,
Pedro Moura