4 de maio de 2015

Três títulos. Francisco Sousa Lobo (várias editoras)


Como já havíamos discutido a propósito dos seus trabalhos anteriores, Francisco Sousa Lobo parece ser um daqueles autores que, como Baudoin e Marco Mendes, entre outros, transforma todo e qualquer passo do seu percurso em pequenas partes de um todo perfeitamente integrável. Para repetirmos as mesmas ideias anteriormente esboçadas, não se trata somente de agregar os trabalhos num conceito quantitativo como “obra”, muito menos o de reduzir cada título a “episódios” de uma “série”, etc. É compreender que existe um pulso e uma intensidade em continuidade em cada trabalho, seja ele um livro (e seja que género formal for, “novela”, “romance”, “autobiografia”, “ensaio”), revista ou curta numa antologia. No caso de Lobo, aquilo se verifica é uma exploração em torno de questões de identidade, sobretudo uma identidade em crise por assaltos de ordem psicológica, muitas vezes clínica, e que se endereça às questões levantadas pelo projecto do momento. (Mais) 

Estes três títulos que trazemos à leitura conjunta são todos frutos, se não de encomendas somente, a interpelações directas com circunstâncias externas, digamos assim, ao movimento de criação autónoma. O que queremos dizer com isto é que, paralelamente aos trabalhos que o autor vai produzindo e preparando por si mesmo, surgem-lhe de quando em vez momentos em que é convidado a produzir trabalho para se integrar num contexto maior, mas Lobo aproveita-os para regressar ao cerne das suas próprias questões, inflectindo-as à luz desses pedidos.

O andar de cima [Ar.Co/Chili Com Carne] é fruto de uma colaboração entre a escola Ar.Co e a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova: a propósito da conferência “A Modulação da Tomada de Decisão: Pode o cérebro ser influenciado?”, reunindo especialistas e outros participantes para discutirem as fronteiras do cognitivismo, neurologia, dimensões sociais, etc. associadas ao órgão mais “misterioso” (de acordo com as palavras dos organizadores) do corpo humano. Pode-se mesmo compreender os momentos em que o autor integra os apontamentos da assistência das conferências. I Like Your Art Much [auto-edição, adquirível através da Chili Com Carne, presumimos] é uma mescla entre carta aberta e ensaio em torno da obra do artista português Hugo Canoilas, que trabalha actualmente no Reino Unido, e lançado numa sua exposição deste ano. Inclui apontamentos e representações das obras de Canoilas e conversas com o artista. “O problema Francisco” [Fundação Calouste Gulbenkian] é um ensaio autobiográfico publicado por ocasião do programa Próximo Futuro deste ano, que serve de balanço e auto-apresentação, no jornal respectivo, e que nasceu pela circunstância de um painel dedicado à banda desenhada, no ciclo “Outras Literaturas”, a decorrer daqui a uns dias, e co-organizado por nós.


A leitura concomitante destes três trabalhos, todos eles curtos (respectivamente de 20, 37 e 14 pranchas), revelará muitos pontos de passagem, coincidências e até mesmo repetições temáticas ipsis verbis (como a metáfora do banco de três pernas para descrever a arte contemporânea, ou a forma como a operação da decisão, no centro de Andar, vai ter presença em Your Art), e mesmo as claríssimas diferenças narratológicas – O andar de cima segue uma personagem ficcional, ainda que fale na primeira pessoa, I like Your Art Much segue as regras clássicas da autobiografia, procurando a coincidência entre autor, protagonista e narrador, “O problema Francisco” parece tratar-se de uma autobiografia mas usa a terceira pessoa do singular para provocar um simultâneo desdobramento e distância – acabam por criar um vórtice (regressaremos a este ponto adiante) de força centrípeta. Não que estejamos “sempre a ler a mesma coisa”, mas sentimo-nos regressar às mesmas forças.

É muito raro que haja autores de banda desenhada que conheçam bem o mundo das artes plásticas sem um posicionamento irónico e anedótico, e muito menos aqueles que possuem os instrumentos críticos necessários para, em primeiríssimo lugar, um diálogo sapiente e equilibrado, e em seguida, uma distância que lhes assegure um discurso sustentado e interpelante. As mais das vezes – é o que sucede com The Sculptor, de Scott McCloud, que leremos em breve - o mundo as artes visuais é visto com desconfiança e até inveja, reduzido a meia-dúzia de anedotas e perfis de cartão que em pouco correspondem à realidade do mundo mais musculado dessas disciplinas, para depois jogar contra eles uma mão-cheia de platitudes sobre “domínio técnico”, “ser-se genuíno”, “honestidade”, e por aí fora. A estratégia é quase sempre a mesma: contra a suposta pretensão intelectual e vazia das artes visuais (a imagem da “nudez do rei” é uma recorrente forma de ataque), ergue-se a honestidade e desempoeirada atitude da banda desenhada. O problema é que essa é a primeira atitude pobre e patética do mundo da banda desenhada, a pedir desculpas de forma arrogante contra um mundo que desejaria compreender e penetrar, e orgulhando-se da sua falta de educação e maneiras. Como é que se pode compreender o que é um dito “pseudo-intelectual” se não se é desde logo um “intelectual”? Como é que se sabe que determinada composição, objecto de arte, discurso tecido em seu torno, etc., é “falso” ou “vazio”, se não se oferece sequer um qualquer passo em relação à “verdade” ou ao “cheio” desses mesmos territórios?

Este longo desvio deve-se ao facto de que Francisco Sousa Lobo tem criado no seu trabalho contínuo, aturado e produtivo um diálogo constante com esse outro mundo, mesmo quando de forma oblíqua. E não se trata somente através das referências semi-veladas e autobiográficas da sua formação académica (arquitectura, artes visuais) ou do seu “consumo cultural”, mas através de uma exploração dos instrumentos da banda desenhada para criar questões e diálogos fortes com esse outro campo social. I Like Your Art Much, em primeira instância uma carta aberta ao artista Hugo Canoilas em banda desenhada, é apenas o corolário visível e explícito desse trabalho. [Devemos aqui acrescentar que o autor criou duas páginas, intituladas "A Private View", sobre o seu próprio trbaalho mas num diálogo com Canoilas, na Art Review de Maio do ano passado] Endereçada a Canoilas, este livro não é apenas um diálogo entre amigos, que colhe mesmo de um projecto de gravação das suas conversas e em torno de uma sua exposição (com os galeristas, espectadores, amigos comuns, etc.), logo posto de lado, para canalizar-se numa interrogação sobre o papel da arte no mundo contemporâneo e a sua ontologia própria. Procurando menos as questões sociológicas, os jogos económico-políticos ou até mesmo tentando tipologias formais e disciplinares, Lobo parte de um conceito, que lhe é caro: o da “crise”.

A crise não se encontra aqui no seu mais habitual significado. A crise é, para o autor, um ponto de suspensão do tempo, uma sensação eterna de duração, na curva da decisão. Isto é dito verbalmente. Tratar-se-á da duração bergsoniana? Lobo diz que é aí que a arte encontra o seu tempo. No que diz respeito à prática da banda desenhada, à sua estrutura formal, é simples descobrir onde se encontra essa suspensão: no intervalo entre as vinhetas. Entre uma vinheta e a seguinte encontra-se aquilo que teóricos chamaram de intervalo intericónico (Groensteen), ou mais prosaicamente, a “sarjeta” (McCloud) onde depois ocorreria o fenómeno da Gestalt conhecido por “fechamento” (closure). Existem variadíssimas tentativas de teorizar através de várias disciplinas os mecanismos desse intervalo. Nós próprios tentámos, noutro lugar, compreender o que chamáramos de Ponto Nulo, menos através de uma ideia de completação pela informação oferecida pelas vinhetas, do que agregar todas as potencialidades advindas do processo de leitura às “pequenas percepções” de Leibniz, à ideia de que existem átomos livres que apenas na sua “aterrissagem” nos elementos concretos da próxima vinheta encontra uma decisão, tal qual o autor parece seguir. Hugo Canoilas, no blurb do livro que se desenvolve em torno da sua obra e da amizade com o autor, fala das alianças mas também de falha [gap] “entre palavra e desenho”, assim como “entre a realidade a ficção” e entre os corpos dele mesmo e do autor da banda desenhada. Esta última arte contém mais elementos do que “a palava e o desenho”, sabemo-lo, acima de mais, a própria estruturação de toda a matéria disponível. É nos seus intervalos que penetra o trabalho de interpretação (discordamos de Canoilas quando este fala de “projecção”, que se aproxima da ideia de “identificação”, julgamos nós; a “interpretação” é um conceito que mantém a distância necessária, e não cria a ilusão da sua eliminação que se promete nesses outros termos) do leitor. É aí que se provoca a crise, e Francisco Sousa Lobo cria momentos de metalinguagem quando fala dos processos da banda desenhada (ou outras dimensões, sociais e políticas) na sua banda desenhada. Matéria visível pelas marcas “deixadas” do próprio processo, sem “limpeza”.

Uma outra camada de diálogo entre os trabalhos de Canoilas e Lobo poderia ser escavada através do conceito de “moldura”, tal qual tem sido pensado transdisciplinarmente, sobretudo no seu sentido dúplice de criar um espaço liminar entre a obra de arte (a ficção, a construção, a representação) e o mundo fenoménico (a realidade, a vida, etc.) - aqui seguindo-se ideias que remontam a Georg Simmel – e também nos termos de criar um enquadramento cognitivo preparando a interpretação do leitor, espectador, utilizador, etc. Hugo Canoilas, antropofágico universal por razões de geração e inclinação, cria algumas obras que abandona nas ruas. Objectos, portanto, sem qualquer espécie de moldura (pedestal, porta de galeria ou museu, data de vernissage, cartografia cultural); Lobo comenta-as falando de como a cultura existe para nos popular do esforço do pensamento, e como a beleza, sobretudo aquela súbita de objectos abandonados à sua sorte e à deriva da intempestiva interpretação de quem os encontrar, obriga ao regresso a essa tarefa. No fundo, isto é profundamente benjaminiano, para quem a obra de arte é um objecto que nos devolve o olhar que lhe dedicamos. Lobo isola estas ideias através de imagens centradas em objectos singulares, alguns “traduções” das obras de Canoilas, noutros casos intervenções interpretativas suas, noutros casos, talvez, metáforas íntimas que aumentam o grau de estranheza e distância. A banda desenhada é por excelência uma arte de emolduramentos sucessivos, e é curioso notar como este autor, que repete tanto redes rectilíneas e ortogonais na composição das suas páginas, explora descentramentos a outros níveis, como veremos. 

Em dois destes títulos, o autor cita a ideia da crise tríplice da arte: crise da forma, de conteúdo e da relação entre uma e outra. Talvez seja uma maneira demasiado arrumada de ver as questões (pois também se poderia falar de crise institucional, política, financeira, educativa, mediática, etc.), mas ela é eficaz de modo suficientemente para criar uma estrutura não-simétrica, periclitante e em desequilíbrio permanente. Tal qual o banquinho de três pés, objecto que pode ser lido de forma literal e extremamente dramática se for associada a uma outra dimensão, quiçá autobiográfica, apresentada na história curta do jornal de Próximo Futuro.

Francisco Sousa Lobo tem explorado essa crise sistematicamente para procurar também os intervalos que se instalarão na sua própria tarefa de criador e, tendo em conta o estranho e descentrado projecto autobiográfico, a sua própria vida. Em todas as escalas da sua vida pessoal descobertas ou citadas (a infância, a vida familiar, académica, profissional, cultural, a dimensão psicológica, religiosa, criativa) instalam-se momentos de dúvida, por vezes em que cada uma dessas escalas é jogada contra a outra, por outras vezes no seio de uma delas. Daí a máquina orientar-se para o problema baptizado, de modo explícito, na curta do jornal de Próximo Futuro: “O problema Francisco”. Eis um excelente título para toda a obra do autor (tal como independentemente do trabalho que Marco Mendes venha a criar se agregará num “Diário Rasgado” ou o de Baudoin num “Elogio da Poeira”, a cada autor o seu próprio “Poema Contínuo”).

Esse problema é o centro invisível e sistematicamente desviado, mas que por isso mesmo incute o movimento da sua obra. É por essa razão que falámos de “vórtice” acima, e encontraremos nestas histórias formas visuais que a mimam, imitam ou à qual se tentam aproximar: os círculos concêntricos que se encontram quase no centro de I Like Your Art Much (e numa série de outras referências, centrais ou oblíquas, do livro), o ponto negro e auréolas que nimbam o protagonista de O andar de cima, e os variadíssimos jogos de simetria e concentralidade em “O problema Francisco” (formas centralizadas, redes de losangos, auréolas, “X”, etc., quase sempre sublinhados pelos jogos de cor limitada [O andar de cima é impresso a uma cor, diferente das imagens em grayscale aqui empregues]). Se podemos encontrar graus distintos de pormenorização do desenho no interior de um mesmo título, a assinatura do estilo é suave, optando ora por formas minimais ora por intensas e quase hipergráficas tramas obsessivas que aumentam a intensidade e expressão, ou mesmo nervosismo, das personagens. Em termos compositivos, “O problema Francisco” e O andar de cima são mais regulares, ao passo que I Like Your Art Much é menos confinando a uma maneira, procurando, talvez, na sua diversidade de organização interna das imagens, uma homogenia e ritmo próximo da natureza cambiável da arte do próprio Canoilas.

Essas formas prometem uma força centrífuga, diametralmente oposta à centripetidade dos esforços do autor. É no paradoxo desses movimentos que encontramos a “crise”. No modo como colocam sempre tudo descentrado, inclusive a própria centralidade do “eu” dos protagonistas, em que a agência não é roubada, mas é esmagada por se tornar centro da atenção de outros: a ideia revisitada do “síndrome de Truman”, que faz as personagens viver episódios esquizofrénicos nos quais acreditam que todo o mundo comenta e observa a sua vida. Exemplos simétricos desses descentramentos é a ideia de que Deus derrota a arte, mas a da arte a de Deus. Pudera que o anjo da História de Walter Benjamin, de olhos postos nas ruínas do passado mas incapaz de regressar para as fazer regressar ao estado prístino original, seja uma imagem citada, ainda que em forma quase de nota fugaz.

Não será com estas bandas desenhadas que o autor conseguirá restaurar as próprias ruínas a que tem direito, seguramente. Cartografando-as, todavia, é possível que consiga redimir essa mesma entropia.

Nota final: agradecimentos ao artista, pela oferta das publicações, envio das imagens, e à equipa do Próximo Futuro pelo desafio e trabalho.

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