6 de junho de 2015

Sandman, Overture # 05. Neil Gaiman e J. H. Williams III (Vertigo)

De novo, remetemos os leitores às notas dos números 1, 2, 3 e 4 para o início deste exercício de leitura individual de cada comic book numa curta série, erguendo as breves notas sobre o capítulo presente sobre as dos anteriores.

Apesar de estarmos na recta final, a apenas um número da conclusão, e ditarem as regras normativas da banda desenhada mainstream que este deveria ser o momento ideal do conflito central, entre o herói e o vilão, ou neste caso entre a entidade protagonista, Sandman, e o seu oponente, o pretendido vórtice estelar, a verdade é que ele não tem lugar. Pelo contrário, este número, espelhando as experiências anteriores, desdobram a relação familiar da personificação dos sonhos com os seus progenitores. Se já havíamos conhecido o distraído pai, o Tempo, agora, mergulhados nas absolutas trevas, na absoluta ausência de luz e matéria de qualquer espécie, conhecemos a mãe, a Noite. Já nos tendo cruzado com ela e a sua acólita no número 2, agora temos o encontro directo e, em parte, a explicação da relação. Todavia, onde Kirby trataria estes temas de uma forma operática, bombástica, melodramática, cósmica, tonitruante, Gaiman explora-a da forma com que ele o costuma fazer: através da mais humana e comezinha das discussões. (Mais) 
Afinal de contas, ao contrário dos sistemas mitológicos mais afastados do nosso cadinho cultural, somos herdeiros das novelas gregas, em que os sentimentos mais baixos dos seres humanos pulsam nas veias dos deuses também, e os fazem vasculhar as vidas uns dos outros da maneira mais chã possível, cheia de dislates e defeitos. Não é muito diferente o que se passa aqui. Se nos abstrairmos das personalidades e eventuais capacidades demiúrgicas da Noite e do Sonho, o diálogo que ambos têm um com o outro poderia ter lugar em qualquer novela moderna passada num subúrbio, informado pelo mais cru dos realismos, e que pouca ou nenhuma redenção pretende criar para as mesmas personagens. Pelo contrário, é como se desejasse mesmo que nos apercebêssemos de que não é sequer possível começar a pensar na redenção delas, mesmo que não compreendamos totalmente onde residirá o “pecado original”. Mas não é isso o que pauta as discussões entre seres próximos, que se amam? A discussão tem-se e atinge níveis drásticos muitas vezes, mas ninguém saberia depois identificar a verdadeira razão, a não ser a eterna troca de acusações e jamais tomar responsabilidade pelos próprios actos.

De certa forma, isso até poderá ser um passo inovador: cria-se em Sandman, Overture, a ilusão de que estaríamos prestes a ver o embate de éons de forças para além da compreensão humana, e afinal vamo-nos deparar com meras pessoas a lavar a barrela neste palco que nos é oferecido. Todavia, se até se poderia argumentar que Gaiman é um dos autores mais responsáveis por trazer este tipo de linguagem e situações desarmantes para o coração do mainstream (recordemo-nos de que já existiria um discurso similar mas noutras paragens geográficas e outros géneros), hoje em dia a paisagem encontra-se particularmente diferente de nos anos 1990. Isto é, com Brian K. Vaughan, os irmãos Luna, Kieron Gillen, Kelly Sue DeConnick, Matt Fraction, e até Brian Michael Bendis, existem muitos outros autores capazes de mesclar o círculo “quotidiano” com enquadramentos fantásticos. E tendo em conta o grau “telenovelesco” e fresco de séries como Saga, ou os runs de certos super-heróis em que parece importar mais a vida emocional de todos os dias do que os conflitos super-heróicos (o Hawkeye de Fraction e Aja, a Ms. Marvel de G. W. Wilson et al., a She-Hulk de C. Soule, etc.), a concorrência impede de ver esta experiência como única, e até, de certa maneira, acaba por se tornar algo aborrecida.  

Conforme o que se esperava do desdobramento-e-variação dos últimos duas manifestações de Morfeus no universo entre o “nosso” Sandman e um avatar felino, os autores permitem-se, neste número, criar duas linhas de atenção. Enquanto Sandman tem o seu encontro com a mãe Noite (e tratar-se-á Dusk, “Crepúsculo” ou “Ocaso”, de uma manifestação primal da irmã Morte?; não o sendo, estabelecerá alguma relação mais directa com a restante família, discutida à mesa?) e depois com o irmão Destino, mostrando pela primeira vez algo que não estava de forma alguma previsto no seu livro (onde todas as coisas do universo se encontram escritas, uma herança, como sabe, do Aleph de Borges, presente igualmente noutras facetas desta série), o Sandman-gato vai fazendo outras acções que vão contribuindo, a seu modo, para a densificação da trama. Ele salva ou guarda a “Esperança” num local resguardado (tratar-se-á da “Caixa de Pandora”, em torno da qual se agregarão demónios e malfeitorias?), vai resgatando os últimos sobreviventes de vários mundos ou mesmo universos que vão sendo consumidos, e que poderão vir a ter um papel explicado mais tarde: poderão ser a origem de alguns novos habitantes do reino de Sonho, ou origens de novas ideias na vigília, etc. É também uma oportunidade para o artista experimentar a sua capacidade de inventabilidade gráfica, física e técnica.

Neste último aspecto não temos nada a acrescentar do que já foi dito antes. Se a sua escolha em cumprir composições visualmente espectaculares, “decorativas” na tipologia de Peeters, se mantem, elas não trazem propriamente crises no protocolo de leitura das pranchas, nem se encontram numa simbiose tão perfeita como havia explorado em Promethea. Dito isto, naturalmente, estamos perante experiências gráficas dignas de atenção, e que em nada revelam uma forma simplista de apresentar os fluxos complexos entre os vários planos de existência e de diegeses. É particularmente marcante o contraste entre a parte passada no plano da Noite, com reminiscência de Beardsley, até ao pormenores das comidas eroticamente sugestivas, e a “caixa” orgânica e brilhante onde a Esperança é guardada, interrompida aqui e ali pelo Livro de Destino como moldura das vinhetas e com elementos de cada um desses territórios incutindo-se nos outros.

Este capítulo é o que menos dendrites estabelece com o resto da história conhecida de Sandman, assim como com o Universo DC em geral, se bem que as navegações cósmicas que nos são permitidas fazer possam levar os leitores a fazerem associações. Não é de forma alguma clara a ligação directa aos conflitos interestelares que vemos, com a excepção da identificação aos anteriores  agressores vistos nos primeiros números. Se temos neste número um regresso à Noite, muitos dos outros pontos visitados, e as personagens citadas – que desconfiávamos serem apenas uma forma de dar aos leitores o que querem sob a forma de cameos, mas não de um decisivo elo narrativo – não aparecem. O último número fará compreender finalmente que tipo de novelo Gaiman deseja criar com Overture.


Dito isto, acreditamos que o papel desta abertura não o é propriamente, isto é, uma abertura à saga conhecida: tratar-se-á antes, a um só tempo, de um vinco e desdobramento das histórias e personagens que já conhecíamos, que não alterará a forma de compreendermos as histórias ou sequer mergulharmos mais fundo na eventual psicologia das personagens, mas pelo menos na extensão – sobretudo imagética, gráfica, física – do universo narrativo iniciado há já mais de vinte e cinco anos. 

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