7 de junho de 2015

The Multiversity. Grant Morrison et al. (DC Comics)


Por ocasião das considerações tecidas sobre Supreme: Blue Rose e Batman: Earth One vol. 2, estabelecemos alguns pontos de ligação com esta série de Grant Morrison, a qual se associa igualmente a outras tantas questões debatidas cada vez que se fala de super-heróis, multiversos e as estruturas narrativas específicas dos grandes mundos ficcionais da banda desenhada norte-americana deste género. Durante um período, pensámos que poderíamos seguir o mesmo exercício que estamos a tentar elaborar com a leitura capítulo a capítulo de SandmanOverture, mas a leitura dos dois primeiros números fez-nos desistir dessa direcção, preferindo a leitura global, necessariamente fragmentada, como veremos. (Mais)

Quando falámos do trabalho académico de Karin Kukkonen, havíamos mencionado como a autora considerava que os mecanismos da metaficção (nos quais se incluem as noções variadas de multiverso), ao contrário do que ocorre na literatura e no cinema – pelo menos os mais convencionais e normativos -, não criam na banda desenhada distância mas antes pelo contrário uma plataforma de mais profunda imersão, no relacionamento cognitivo dos seus leitores. Como o havíamos dito em relação a Batman: Earth One, mas também em relação a outros trabalhos, a leitura destes títulos convida toujours déjà a uma re-leitura ou a uma leitura assombrada por leituras anteriores, comparações e cotejamentos entre vários textos, versões e tomadas. Mesmo assim, e ao contrário dos seus detractores “generalistas”, isto é, aquelas pessoas que pura e simplesmente por e tratar do género dos super-heróis o considerará abaixo da possibilidade de qualquer inventabilidade narrativa, composicional, gráfica, etc., estamos em crer que é possível ainda, mesmo que com dificuldade, propor novas formas de compreender e construir modos de contar neste género. Para sermos precisos, estamos a falar de inovações a nível formal, já que considerações do campo cultural nos levariam a diferentes abordagens. Serão necessariamente melhor ou equiparáveis a outros géneros ou territórios? É a pergunta errada. Já colocar a pergunta se é possível ler estes textos isoladamente de uma história maior, de uma compreensão alargada do território, é uma melhor pergunta, e o problema estará precisamente no facto de que não, não é. Ou é, mas será uma leitura muito incompleta (razão pela qual a existência de notas explicativas, como as da Comics Alliance, se torna não apenas útil mas obrigatória; contudo, sublinha uma vez mais que não se trata jamais de uma leitura individualizante e autónoma).

Apesar desta série ter sido já planeada há muito, de uma forma ou outra, e se associar a todas as “Crises” e “reboots” sucessivos da DC – afinal de contas, a existência de 52 universos paralelos no interior do Multi-Universo DC já vem de 2006 -, foi sendo protelada e atrasada, e ela veio a ser publicada durante o primeiro ano da nova configuração dessa editora (e, consequentemente, da nova estrutura diegética dos seus personagens e mundos), e não parece partilhar com o “Novo 52” os mesmos contornos. Isto é: ela faz e não faz parte do universo canónico central a um só tempo.  

Morrison já havia criado com Final Crisis uma espécie de apoteose da possibilidade de uma escrita fragmentada e multifacetada, absolutamente específica aos super-heróis, e que tem menos a ver com o burilar de uma história (linear ou não, concentrada, coesa), do que de uma gema que faz dispersar a luz, na mais completa das conquistas da ideia de “prismático” de D. Falconer. Final Crisis é uma espécie de experimentação sobre os limites do estilhaçamento da narrativa em várias frentes actanciais, e esperar que cada um desses fragmentos contribuam para uma ideia central, por mais fantasmática que ela seja. Ainda assim, todavia, esse outro projecto era relativamente centrípeto, na medida em que seguia um estilo de escrita similar de fio a pavio, apresentava algumas linhas de desenvolvimento central (o combate ultra-maniqueísta entre o Super-Homem e Mandrakk) e os artistas, que apesar de vários seguiam instrumentos estilísticos algo semelhantes entre si. The Multiversity é bem diferente.

Final Crisis tentava criar uma narrativa através de um complexo novelo construído a partir de linhas desniveladas, interrompidas, mas ao mesmo tempo criando uma forma simétrica. Seven Soldiers of Victory, por seu lado, criava um edifício complicado que partia de um ponto para regressar a ele, mas em que os caminhos centrais de subdividiam em vários ramos autónomos. The Multiversity apresenta-se em blocos individuais e independentes entre si, mas permitindo aos leitores que compreendam cada número individual como pequenos blocos, em si mesmos universos completos, que exercerão uma tensão numa estrutura maior, a do multiverso, esse unido sob um tema comum: o ataque que lhe é feito por uma ameaça totalmente externa (isto é, que não pertence a nenhum desses universos/narrativas em particular, mas que vem de fora), a necessidade de unir esforços para responder à ameaça. Mesmo assim, Seven Solders of Victory, Final Crisis e The Multiversity pode ser lido como uma estranha trilogia de Morrison em que ele tenta variaçõs de um mesmo princípio de estruturações complexas com vários mundos ficcionais interseccionando-se. Seria muito apelativo fazer um estudo comparativo da sua estrutura formal.

E onde Final Crisis arregimentava toda a história da DC para criar uma espécie de Götterdämmerung destas personagens (eis uma ponta de associação eventual com Alan Moore, conforme adiante), The Multiversity tanto aproveita personagens existentes (a família Marvel, as personagens da Charlton, que serviriam de base para Watchmen, as da Quality, algumas da dita “idade de Ouro”), como apresenta versões daquelas já existentes (como os da Terra 8, versões pouco veladas das personagens principais da Marvel, já para não falar de todas as novas variações dos da própria DC) e outros conceitos relativamente novos, como o caso de Ultra Comics (nome de uma personagem singular, que corresponderia à da nossa própria Terra).

Na sequência da ideia de se criarem 52 universos compartimentados e que tiveram desenvolvimentos independentes uns dos outros, sem qualquer contacto, cada um destes números, apresentados como comic books individuais e numerados a “1”, corresponderiam à potencialidade de uma editora, ou uma história diferente de desenvolvimento da editora DC, distinta. Para além dos títulos em si, e as características particulares das personagens, o design das publicações, mas também o estilo das imagens e até o modo de escrita, é singular e separado. Apesar das inúmeras capas “variantes” de cada um dos títulos, basta olhar para as capas “oficiais” para perceber que Society of Super-heroes pretende homenagear o mais dramático dos pulps, The Just segue a estética da dita imprensa cor-de-rosa, Pax Americana pretende ser uma resposta directa a Watchmen e The Multiversity propriamente dito uma abordagem das sagas mais convencionais e épicas de super-heróis. Nesse aspecto, e por mais que o próprio Morrison não goste de o confessar ou escutar sequer, ele continua a trabalhar numa senda que havia sido estreada por Moore, se bem que este outro autor o tenha feito de formas por vezes apenas como elementos secundários das suas histórias, ou com intuitos humorísticos, ou numa mescla de nostalgia e metatextualidade. Ao nos recordarmos de 1963, o seu run de Supreme, as experiências ao longo de Tom Strong e Promethea (nos estilos das capas, formatos, etc.), encontraremos muitas das sementes que desabrocham no centro do palco de The Multiversity nem termos de mutações formais para veicular as narrativas correspondentes.

A série é então composta por nove títulos individuais. Dois são The Multiversity (números 1 e 2) que funcionam como os “book ends” da série (como já havia o autor feito em Seven Soldiers), a sua introdução e a sua conclusão, a apresentação do problema e a sua resolução, a premissa e o corolário, de uma forma clara, descomplicada, maniqueísta, se quiserem, mas por isso mesmo justa ao seu propósito. E de uma maneira “compressa”, no sentido – já experimentado em Final Crisis – de um estilo de exposição sumário e rápido, mesmo que haja um número superior de páginas do que o standard dos comic books. Um deles, apresentado a meio da série, era um guia, e que além de histórias curtas apresentava uma série de páginas que serviam de apresentação sucinta de cada um dos 52 universos, desde a Terra 0, a do universo oficial, a Terra 1, da série Earth One, e por aí fora até à terra 51, correspondente de certa forma ao universo de Kamandi, de Jack Kirby. Por razões de simetria interna, e arcanos desígnios na fabricação da estrutura – veja-se o mapa e as explicações do seu designer, Rian Hughes -, alguns desses universos ou são desabitados ou “ocultos”. Alguns destes universos já tinham uma existência ficcional anterior: a Terra 3, que o próprio Morrison havia já trabalhado no seu run da Liga da Justiça, a Terra 5, que concentra as história do Capitão Marvel inventado por Parker e Beck, como imitação-versão do Super-homem, a Terra 22, da série Kingdom Come, e muitas delas emergindo de títulos da Elseworlds, de alternativas de Byrne ou Cooke ou de Just Imagine… de Stan Lee, etc. Outros são versões originais das personagens da DC, e que prometeriam um desenvolvimento intrigante: a Terra 13, onde todas as personagens são versões demoníacas e fantasmáticas, a 34 que por não ter surgido em quase mais lado nenhum, apresenta uma aparência suficientemente tonta, ou a 36, reminiscente da leveza de um Alex Toth na Hannah Barbera.

Se algumas destas personagens têm um papel preponderante na série, passando-se a aventura de um ou outro comic book nesses universos, outros cruzando-se nas páginas dos dois The Multiversity, outros ainda surgem somente como referência no Guidebook. A potencialidade de virem a ser desdobrados no futuro ainda está em aberto, alguns já concretizados de resto, mas outros provavelmente que jamais serão explorados para além destas páginas. Uma das formas de navegar cada um dos outros seis comic books individuais para compreender a sua posição neste multiverso é olhar para a espinha da publicação, e ver qual dos números correspondentes está acentuado. Esses seis títulos, então, ou se concentram num só universo ou mostram cruzamentos intensos em dois deles.

Cada uma destas leituras, portanto, convida a uma posição diferente em relação a cada história, já que cada um deles utiliza instrumentos diferentes. A escolha dos artistas parece-nos ser extremamente acertada, uma vez que cada uma das experiências leva a uma compreensão de um enquadramento diferente. Recordando o trabalho que teve em Tom Strong, Chris Spouse providencia em Society of Super-Heroes: Conquerors from the Counter-World uma sensação absolutamente acabada de pulp, tal como prometiam as histórias do anos 1930 e 1940. Bem Oliver, em #earthme, segue um estilo semi-fotográfico que encaixa que nem uma luva na história destes belos jovens ensimesmados, cuja vida parece uma mistura entre as novelas das Kardashian e criaturas quejandas e a potência dos super-heróis. De uma forma relativamente expectável, é Frank Quitely quem fica com a responsabilidade de Pax Americana: In Which We Burn, que tenta seguir, com as personagens originais da Charlton, a estrutura recursiva e cheia de “entraçamentos” (a técnica complexa descrita teoricamente por Th. Groensteen de uma banda desenhada que obriga a uma leitura total através dos seus vários elementos formais) que havia feito a glória de Watchmen, mas ao mesmo tempo responde a essa outra obra maior do género. Cameron Stewart, outro colaborador de Morrison nas suas abordagens mais “leves” (sempre com um âmago macabro), providencia a singeleza e cor luminosa necessária à aventura de Thunderworld Adventures: Captain Marvel… and the day that never was! A operática, nacionalista e over-the-top Mastermen: Splendour Falls, está nas mãos de Jim Lee, que sublinha dessa maneira a mais profunda e ancorada inscrição no mainstream daquela casa. Doug Mahnke, que havia trabalhado em Final Crisis, tem um equilíbrio entre o naturalismo, o estilizado, o empedernido e o dramático que serve bem a Ultra Comics Lives!, para mostrar como num universo desprovido de acesso a estas criaturas fantásticas (o nosso), apenas a existência de uma tecnologia de papel barato (ou não tão barato) e quadricromia poderia inventá-las. Claro, o uso de Ivan Reis et. Al, Marcus To e Paulo Siqueira para as partes correspondentes (os dois book ends e as histórias no Guidebook) também trazem características próprias.

Todavia, não é apenas a nível do desenho que encontramos essas prestações de diversidade. Já falámos sobre a formatação de cada revista, #earthme imitando revistas de mexericos, Pax Americana seguindo alguma elegância das “graphic novels”, Mastermen ostentando, mais, arvorando o seu maniqueísmo heráldico, The Multiversity a sua patente qualidade épica-cósmica, etc. Mas é a própria linguagem de Morrison que procura formações distintas. Com a aventura de Thunderworld, o escritor procura uma linguagem leve, diálogos divertidos e trocados durante os momentos de acção, a qual é apresentada de forma linear e concentrada. Em Pax Americana, cada frase pode ou deve ser lida quer no seu sentido linguístico-metafórico mas igualmente no seu valor literal, como é traduzido a par e passo pelas imagens, numa estrutura complexa, cronologicamente invertida e com desvios metalépticos que obrigam a uma certa distância. Em Mastermen, há uma voz mínima exterior e posterior à acção, que vai tecendo a ética clara de moralidade superior face ao “mal”. Em #earthme tudo quase se reduz a diálogos, quase inconsequentes. Os dois números de The Multiversity abandonam-se na linguagem ultra-tonitruante de acção em alta octanagem, com momentos de exposição bombástica em que se tenta “explicitar” a estrutura da trama… Podia-se mesmo dizer que a cada um dos “capítulos”, Morrison elabora complexos pastiches de estilos reconhecidos da história dos super-heróis: da dita Idade de Ouro, da época de propaganda, do Kirby de Kamandi e das óperassiderais, do Moore de Watchmen, etc. Reparem-se nas duas páginas de Ultra Comics que, em quatro vinhetas, fazem um historial quase completo das “fases” de transformação dos super-heróis – “sistemas behavioristas”, reza o texto -, desde o enquadramento às poses, o tratamento de cor e a linguagem empregue: a “inocência” dos primeiros anos, o psicadelismo dos anos 1950-1960, as “crises” dos anos 1980 e o “grim and gritty” dos anos 1990. Enfim, isto é algo que, correndo o risco de sermos repetitivos, não é propriamente uma invenção do próprio Morrison mesmo no território exclusivo dos super-heróis (mais uma vez apontaríamos Moore nessa posição), mas mesmo assim permitindo-lhe criar um projecto algo inovador e exigente no seio do género.

Se insistimos nesta estranha filiação do autor noutro autor, uma filiação que, como se sabe, tem alimentado uma espécie de feudo contínuo e até à pouco tempo silencioso da parte de Moore, é porque existem razões relativamente claras também em The Multiversity para encontrar razões dessa “rivalidade” (que a nosso ver, não é, já que Morrison tenta atingir um nível com um patente esforço onde Moore chegara antes com maior panache, brio e produtividade). Repare-se nas três entidades iniciais que surgem como os “devoradores” do Multiverso, e as quais podem ser lidas como substanciações de conceitos afectos à banda desenhada na qual Morrison trabalha: a “Gentry” pode ser lida como o processo generalizado de “gentrificação”, isto é, de melhoria superficial e “comodificação” de produtos que, até ao momento, não faziam parte dos bens centralizados num capitalismo global. Ele próprios o dizem: “Tornamos este[s] mundo[s] viáveis para a nossa espécie prosperar”. Esta dimensão não deixa de ser estranha, uma vez que estas personagens e criações pertencem a uma companhia privada, integrada por sua vez num gigante mediático, logo é desde logo constituinte desse mesmo capitalismo. Será que Morrison tenta aqui apresentar a ideia de que seria possível imaginar algo de mais “inocente” ou “genuíno” no interior de uma maquinaria deste tipo? Mas reparemos nas criaturas singulares dessa força invasora, devoradora ou aglutinadora como o capitalismo o é: Dame Merciless, Hellmachine, Lord Broken, Demogorgunn e Intellectron. Lord Broken, por exemplo, é uma casa, gótica, cheia de olhos. Poderíamos intentar um exercício de interpretação selvagem, e encontrar aí a hipótese de todas aquelas versões que “quebraram” os heróis para as suas versões mais atormentadas, inclusive mesmo a ideia da Vertigo, como uma casa separada da DC (até ao ponto de nos recordar as Houses of Mystery e of Secrets)? Não seria de todo displicente, considerando como The New 52 absorveu precisamente as personagens que lhe pertenciam que ali estavam entregues há anos. Demogorgunn é um corpo feito de centenas de outros corpos (humanos): poderíamos ver nisso o eterno e consumidor ciclo de substituição dos autores envolvidos nestes títulos, os quais, independentemente dos fãs ou da recepção crítica que possam ter, serão sempre permutáveis entre si, dada a importância maximal das marcas registadas das personagens? Será a ideia de Intellectron uma consideração algo derisória de um desejo de, de facto, trazer algum tipo de profundidade ética, cultural e até literária e artística para este género em particular? Ou, como vemos nas páginas de Ultra Comics, das formas de descrição académicas que explicam os mecanismos desta forma de expressão, criando uma distância que Morrison considerará redutoras e desviantes do prazer? Será Hellmachine a tradução da ideia da destruição maciça de histórias alternativas e imaginárias (como se costumam chamar todas as versões não-canonicas ou não-continuidade da DC) em nome de uma controlada centralidade, que Morrison já por várias revelou não gostar? Será a Dame Merciless uma deadline?

Se for esse o caso, estamos em crer que Morrison demonstra que afinal o seu trabalho não é de forma alguma o de transformar pode dentro a indústria, ou elevar estas ficções a um ponto distinto daquele formato até agora, mas antes confirmar a sua valoração e função culturais, ainda que de um modo intensificado. Dito isto, todavia, e por um lado, este tipo de interpretação é algo vão, uma vez que não pode ser provado em absoluto, mesmo que o autor as confirmasse ou apresentasse uma outra justificação explícita. Por outro, isso não é importante, pelo menos em Morrison, uma vez que neste autor, o objectivo destas personagens é menos o de funcionarem como símbolos do que máquinas pensantes ou, com Deleuze e Guattari, desejantes: são parte imanente dos objectos sociais com que lidamos e que são parte constituinte e alimentadora do próprio desejo.

No seu livro Grant Morrison. Combining the Worlds of Contemporary Comics, recordemo-nos como Marc Singer discutia o facto de que Morrison considerava as suas “ficções” enquanto representações não-mediadas, hipóstases, que garantiriam um efeito real na nossa experiência. Um posicionamento que o próprio Morrison iria expor, de forma menos ou mais clara, em Supergods. A personagem Ultra Comics, por exemplo, é apenas o corolário dessa ideia. Alan Moore debate em vários dos seus escritos (e na banda desenhada, inclusive, como é o caso de The League of Extraordinary Gentlemen) do chamado “Ideaspace”, um plano da realidade alguns graus acima do nosso onde todos os nossos conceitos e produtos da imaginação têm não apenas uma existência material palpável como conjunta, e ao qual acedemos através das várias disciplinas artísticas (ou outras). Nesse sentido, Moore é algo platónico ou transcendental. Morrison, por outro lado, compreende que as ideias são imanentes à própria existência ontológica do ser humano, e que é uma questão de grau – uma “magia”, por hipótese – que a tornamos palpável, ou melhor, é transformando a nossa própria consciência dessa tangibilidade, acesso e poder que transformamos a (nossa) realidade. Ultra Comics é então a tradução ficcional (ou estaremos a reduzir o projecto?) da possibilidade de dar corpo material a essas ideias: trata-se de um super-herói criado na “nossa” terra, sintetizando toda a cultura do comic book, inclusive os seus aspectos mais materiais, num corpo tangível e animado através de uma tecnologia incrível. Animal Man, The Filth e outros trabalhos anteriores já tinham explorado esta ideia de uma possível travessia de níveis encaixados, mas esta incorporação num super-herói de todas as esperanças (nutridas pelas fantasias de super-heróis) é, parece-nos, nova.

A relação entre esses níveis também traz uma navegação complexa, já que encontramos estas personagens a lerem, no interior das suas diegeses, os próprios comic books a que teremos ou temos acesso. Se é Ultra Comics o exemplo que mais vezes surge, outros também concorrem, e nas histórias no interior de Guidebook as personagens têm acesso ao próprio Guidebook. E as considerações que cada personagem faz sobre o entendimento desses mesmos comic books serem mensagens de universos paralelos, sistemas de comunicação e complicação, são também um guia para compreender as ideias mais estranhas e complexas do autor, sobre a arquitectura do seu multiverso e, por conseguinte, a relação que esses mundos ficcionais estabelecem igualmente com o nosso mundo “real”.


Regressando a Singer, “”Morrison apresenta mundos múltiplos que operam em escalas narrativas e ontológicas variáveis”. Uma descrição absolutamente exacta da “pilha móvel” de The Multiversity. Dizemos “pilha móvel” pois a metáfora que poderá melhor servir a descrição das relações entre cada universo é a mesma que tem sido empregue em algumas das áreas da física mais contemporânea, nomeadamente, a “teoria das cordas”, e que outros escritores, como Warren Ellis, têm empregue nos seus escritos (uma história em Guidebook mostra uma estrutura muito similar àquela proposta em Planetary, que surgiu em duas versões). A ideia de que cada universo separado existe num plano vibracional diferente, tal como uma corda de violino existe fisicamente mais ao vibrar de modos diferentes produz sons distintos (notas). A questão é que Morrison não cria entre estes universos uma hierarquia simples, onde um seria mais real que outro, o que levaria a uma complexa rede de níveis hipotextuais (à la 1001 Noites, de histórias dentro da história), mas uma complexíssima e intricada configuração não-euclidiana que não tem nem princípio nem fim, nem alto nem baixo, mas cadeias de interrelacionamento e entradas e saídas infinitas e em qualquer direcção. Por isso, ao lermos cada uma das revistas nos apercebemos que, neste universo, aqueloutro é uma ficção, existente precisamente nos comic books desse mundo diegético, como vimos. Mas no segundo universo, “ficção” para o anterior, a relação inverte-se, ou complica-se. A conclusão, portanto – e que corresponde à “nossa” verdade -, é que todos os universos são ficcionais, ou pelo menos contêm contornos que são alimentados pelos outros, num eterno processo de autofagia produtiva. Mas de certa forma, não é mesmo isso que se trata no caso particular da banda desenhada de super-heróis norte-americanos, desde o momento 0? Afinal, Batman é uma “versão” negra do Super-homem, o Capitão Marvel uma sua imitação, e o próprio Super-homem não é mais do que um grau exponencial de várias outras personagens fantásticas já existentes anteriormente na banda desenhada... The Multiversity então, surge como o complexo mecanismo de espelhos permanente móveis, e que, com pequenos cálculos e giros de pequenos ângulos, vão criando cada vez mais a ideia de um potencial infinito.  

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