But I
just found out that my house is in flames é uma colecção de
desenhos criados por André Catarino, numa publicação criada pelos
esforços colectivos de Isabel Baraona, a Célula & Membrana, a
associação a9)))) e ainda, aparentemente, com o apoio da plataforma
Façam Fanzines e Cuspam Martelos, já que Catarino tem sido
participante activo do fanzine Preto no Branco. O objecto em
si pede por uma descrição física, já que, como veremos, ela é
importante para a sua leitura global. A publicação apresenta-se com
as folhas feitas no que se chama French fold, um modo de
colocar as páginas em cadernos dobrados “para dentro”, não
permitindo ver o seu interior. De certa forma, isto poderá recordar
a prática hoje desusada de ter livros com cadernos por aparar, e que
levava os leitores a terem de ser eles mesmos a irem abrindo as
páginas. Mas neste caso a dobragem e “falta” de corte é
propositada, criando uma espécie de fólio fechado, e obrigando o
leitor a ter de cortar todas as páginas para revelar o interior.
Desta maneira, formam-se assim dois objectos, de certa maneira: a
publicação antes do leitor cortar as páginas, e a publicação
depois dessa acção; uma publicação apenas com as páginas
“externas” e depois uma outra com o dobro, incluindo aquelas que
antes eram “internas”. Esse corte, que pode ser mais ou menos
preciso, mais ou menos elegante, deixará marcas individuais nas
páginas que depois jogarão com o que se apresenta.
Como Thomas
A. Bredehoft escreve em The Visible Text, nenhum acto de
leitura é “transparente”, mas existirão exemplos particulares
que são mais eficazes do que outros na fabricação de um “modo
complexo de interpretar o visível”. Não queremos afirmar que
Catarino opere sobre o invisível, mas há nessa breve, momentânea
ou passageira ocultação do interior um qualquer jogo que multiplica
as expectativas e, logo, as capacidades e possibilidades
interpretativas. Mesmo que essa multiplicação seja ela também
momentânea, já que apenas na indeterminação ela se faça, e após
o desvendamento, haja uma queda no concreto.
A relação
mais importante aqui está, obviamente, na fabricação do sentido.
Os desenhos não existem aqui com o propósito de ilustrarem um
texto, ou sequer uma noção o conceito previamente apresentado. Os
desenhos em si são o texto, ou pelo menos a matéria bruta,
concreta, decisiva que, coordenados entre si, constituem o texto a
ler. Há aqui uma escolha específica por criar uma cadeia de
significados pelo título na capa, a ordem do livro, a sua forma, as
fotografias das tábuas, os desenhos no interior e os próprios
gestos a que o leitor se vê obrigado para a eles aceder. A
tridimensionalidade do livro está garantida logo à partida. Não se
trata de um mero veículo a transportar conteúdo. A manipulação
(corte, etc.) é leitura.
Até certo
ponto, esse intervalo entre uma coisa e outra, a indeterminação
antes de cortar as páginas virgens e a concretude consequente é
espelhado igualmente no jogo diferenciado das duas metades do título.
Repare-se como a primeira metade da frase é escrita em letras
maiúsculas, e a segunda em minúsculas. A oração em si, iniciada
com uma conjunção adversativa, apresenta-se como subordinada a um
qualquer discurso anterior, a que não temos acesso; mas logo se
segue outra subordinada, introduzida pela conjunção, “that/que”,
adjectivando-se, explicitando-se, o que o locutor da frase havia
descoberto. Parece, à primeira vista, que o mais importante, o que é
sublinhado, é o que o locutor descobrira, como se isso interrompesse
um qualquer fluxo, não tendo nós alcance para saber qual. Estamos
desde logo no interior da interrupção. A descrição do que
provocara essa interrupção é o facto de uma “casa” estar “em
chamas”. (o título trata-se de uma citação de um verso de uma
canção dos The Black Angels, mas suspendamos as leituras
intertextuais possíveis).
A casa está
presente em primeiríssimo lugar nas folhas “externas”, uma série
de fotografias de grão denso de várias tábuas de madeira, que não
apenas revelam os nós do corte, como traços e maleitas do seu uso:
riscos, inscrições, mossas, desgastes. É difícil compreender se
estas madeiras corresponderão a uma superfície horizontal (o
soalho) ou vertical (as paredes). A navegação permitida pela
publicação (recordemo-nos de que Walter Benjamin descreveu os
desenhos como passíveis de ser vistos, ao contrário da pintura, de
modo horizontal, e que é mais correcto do que ler uma colecção de
desenhos do que na horizontal?) não nos ajuda a determinar uma
direcção, e antes nos convida, corroborado pelo movimento de cortar
as páginas” interiores”, a uma ideia de escavação para baixo.
Estaremos a levantar o soalho para descobrir algo escondido, ou a
arrancar as paredes para descobrir outro espaço contíguo? Um “lá
fora”? Estaremos, ao abrir as páginas, a escapar?
Os desenhos
em si revelam, na sua maioria, panoramas alargados, exteriores, onde
se encontram casas, celeiros, edifícios rurais de formas entre a
habitação humana e as tarefas agrícolas, ou misturas de ambas,
todas de madeira, e uma caravana, e quase sempre em paisagens cheias
de vegetação cerrada, por vezes altos pinheiros, aqui no sopé de
ma montanha, ali à beira de um lago, na orla de uma floresta. Todas
as casas estão aparentemente abandonadas. Algumas provavelmente há
anos, outras mais recentemente, tudo completamente desprovido da
presença humana, de decorações, de traços que fizessem adivinhar
essa presença há pouco. Nalguns casos, essas habitações
despejadas encontram-se de facto em chamas, noutros casos é possível
que o fogo as tenha lambido há muito, noutras cenas ainda
adivinha-se que se aproximam labaredas, gigantescas, ao sabor de
potentes ventos e gordas nuvens negras, soltando aqui e ali faúlhas
e pontinhos brilhantes, algo a queimar-se. Mas o que é mais visível
são as ruínas (já feitas, à medida que se fazem, quase a
fazer-se) e o pó denso e negro do carvão.
Catarino tem
alimentado uma pesquisa aturada pelas ruínas contemporâneas. Se a
fotografia é o modo usualmente escolhido para a colheita dos traços
deixados pelo avanço tecnológico, a obsolescência planeada, ou os
dejectos do que há décadas era visto como a promessa do futuro
(possivelmente são o casal Becher o grande paradigma, mas já Atget
havia explorado as fantasmagorias que a sua contemporaneidade
prometia para o futuro), o desenho não tem sido prática abandonada.
Como uma espécie de Piranesi dos nossos dias, Catarino poderá
deambular as paragens dos baldios nas cidades, ou os espaços entre a
malha urbana, para criar Vedute do se espalha nesses espaços
fantasmagóricos. Mais próximo da nossa área, poderíamos recordar
Martin Vaughn-James, por exemplo, mas Catarino abdica da matéria
verbal a criar uma faixa suplementar, deixando que seja a série de
desenhos a ditar as direcções possíveis.
No caso
desta publicação, e com a excepção da caravana, que abre
associações a outros espaços, sobretudo móveis, as ruínas não
são nem urbanas nem industriais, mas desde logo isoladas no campo. É
como se houvesse aqui uma promessa em se aproximar das ideias do
bucólico para logo o negar através de um acto de violência (o
fogo, o abandono). As páginas das tábuas – e recordemos como são
tábuas “feridas” - assim não podem ser lidas como promessa de
natureza, de conforto e singeleza mas antes como “pasto”, como
“combustível” das chamas. O espaço “fechado” era afinal a
única e fina membrana que nos separava da hecatombe que se ocultava
por detrás.
A esmagadora
maioria dos desenhos de André Catarino são feitos em esferográfica
sobre papel, mas há também intervenções de aguarela,
tinta-da-China e outros materiais. Apesar da resolução de algumas
das imagens desta publicação não ajudarem, queremos acreditar que
muitas destas imagens seguem essa prática de vários materiais. Tudo
tem uma textura dramática, uma tactilidade que nasce da atenção
para com cada tipo de superfície, e depois as tensões que nascem
dos seus conflitos internos, se bem que tudo se prometa reduzir à
mesma tonalidade e cinzas.
Se o
substrato do gesto inicial de André Catarino se fica por esses
materiais pouco nobres, garante-se assim também uma certa gravidade
ou peso associado a um certo modus operandi, e até mesmo uma
ética de trabalho, muito própria dos fanzines. Estes não podem ser
entendidos somente como uma escolha determinada por questões
financeiras ou de facilitismo de produção, mas antes uma opção
consciente e plena de expressão, uma certa imediaticidade do acto. A
sua aliança à da descoberta paulatina do leitor não podia ser mais
exacta.
Nota final: uma das imagens completas foi retirada do blog do artista.
Caro Pedro,
ResponderEliminarmuito obrigado pela recensão e respectiva partilha no blog. Fiquei bastante contente!
Com os melhores cumprimentos,
André Catarino
Olá, André.
ResponderEliminarEu é que agradeço as palavras. Desejo-te a continuidade de um excelente trabalho, e espero ver trabalho ainda mais musculado!
pedro