20 de julho de 2015

But I Just Found Out that my house is in flames. André Catarino (Célula & Membrana, etc.)

Podemos entender cada uma da categorias ou descrições de livros – fanzines, álbuns de banda desenhada, livros de artista, livros ilustrados, etc. - como “modelos”, como indica Pascal Lefèvre. Isto permite duas operações a um só tempo. Por um lado, o emprego de uma (ou outra) dessas expressões cria de imediato um horizonte de expectativas, um intervalo de pré-determinações, de modos de aproximação e de protocolos de leitura, que convida a um uso do objecto em si. Por outro, já no interior desse mesmo uso, ou leitura, o confronto com todos os aspectos que se apresentam como desviantes e, por isso, particularmente significativos. Se bem que criar uma associação quase mecânica entre o número de desvios à sua potência interpeladora, ou até mesmo inovadora”, seja um perigoso fetichismo, sobretudo se sub-argumentado, adivinha-se que qualquer escolho à sua fruição “natural” ou “normativa” aponte para a necessidade de um esforço maior de interpretação. Isso ocorre precisamente com este objecto. (Mais) 

But I just found out that my house is in flames é uma colecção de desenhos criados por André Catarino, numa publicação criada pelos esforços colectivos de Isabel Baraona, a Célula & Membrana, a associação a9)))) e ainda, aparentemente, com o apoio da plataforma Façam Fanzines e Cuspam Martelos, já que Catarino tem sido participante activo do fanzine Preto no Branco. O objecto em si pede por uma descrição física, já que, como veremos, ela é importante para a sua leitura global. A publicação apresenta-se com as folhas feitas no que se chama French fold, um modo de colocar as páginas em cadernos dobrados “para dentro”, não permitindo ver o seu interior. De certa forma, isto poderá recordar a prática hoje desusada de ter livros com cadernos por aparar, e que levava os leitores a terem de ser eles mesmos a irem abrindo as páginas. Mas neste caso a dobragem e “falta” de corte é propositada, criando uma espécie de fólio fechado, e obrigando o leitor a ter de cortar todas as páginas para revelar o interior. Desta maneira, formam-se assim dois objectos, de certa maneira: a publicação antes do leitor cortar as páginas, e a publicação depois dessa acção; uma publicação apenas com as páginas “externas” e depois uma outra com o dobro, incluindo aquelas que antes eram “internas”. Esse corte, que pode ser mais ou menos preciso, mais ou menos elegante, deixará marcas individuais nas páginas que depois jogarão com o que se apresenta.

Como Thomas A. Bredehoft escreve em The Visible Text, nenhum acto de leitura é “transparente”, mas existirão exemplos particulares que são mais eficazes do que outros na fabricação de um “modo complexo de interpretar o visível”. Não queremos afirmar que Catarino opere sobre o invisível, mas há nessa breve, momentânea ou passageira ocultação do interior um qualquer jogo que multiplica as expectativas e, logo, as capacidades e possibilidades interpretativas. Mesmo que essa multiplicação seja ela também momentânea, já que apenas na indeterminação ela se faça, e após o desvendamento, haja uma queda no concreto.

A relação mais importante aqui está, obviamente, na fabricação do sentido. Os desenhos não existem aqui com o propósito de ilustrarem um texto, ou sequer uma noção o conceito previamente apresentado. Os desenhos em si são o texto, ou pelo menos a matéria bruta, concreta, decisiva que, coordenados entre si, constituem o texto a ler. Há aqui uma escolha específica por criar uma cadeia de significados pelo título na capa, a ordem do livro, a sua forma, as fotografias das tábuas, os desenhos no interior e os próprios gestos a que o leitor se vê obrigado para a eles aceder. A tridimensionalidade do livro está garantida logo à partida. Não se trata de um mero veículo a transportar conteúdo. A manipulação (corte, etc.) é leitura.

Até certo ponto, esse intervalo entre uma coisa e outra, a indeterminação antes de cortar as páginas virgens e a concretude consequente é espelhado igualmente no jogo diferenciado das duas metades do título. Repare-se como a primeira metade da frase é escrita em letras maiúsculas, e a segunda em minúsculas. A oração em si, iniciada com uma conjunção adversativa, apresenta-se como subordinada a um qualquer discurso anterior, a que não temos acesso; mas logo se segue outra subordinada, introduzida pela conjunção, “that/que”, adjectivando-se, explicitando-se, o que o locutor da frase havia descoberto. Parece, à primeira vista, que o mais importante, o que é sublinhado, é o que o locutor descobrira, como se isso interrompesse um qualquer fluxo, não tendo nós alcance para saber qual. Estamos desde logo no interior da interrupção. A descrição do que provocara essa interrupção é o facto de uma “casa” estar “em chamas”. (o título trata-se de uma citação de um verso de uma canção dos The Black Angels, mas suspendamos as leituras intertextuais possíveis).

A casa está presente em primeiríssimo lugar nas folhas “externas”, uma série de fotografias de grão denso de várias tábuas de madeira, que não apenas revelam os nós do corte, como traços e maleitas do seu uso: riscos, inscrições, mossas, desgastes. É difícil compreender se estas madeiras corresponderão a uma superfície horizontal (o soalho) ou vertical (as paredes). A navegação permitida pela publicação (recordemo-nos de que Walter Benjamin descreveu os desenhos como passíveis de ser vistos, ao contrário da pintura, de modo horizontal, e que é mais correcto do que ler uma colecção de desenhos do que na horizontal?) não nos ajuda a determinar uma direcção, e antes nos convida, corroborado pelo movimento de cortar as páginas” interiores”, a uma ideia de escavação para baixo. Estaremos a levantar o soalho para descobrir algo escondido, ou a arrancar as paredes para descobrir outro espaço contíguo? Um “lá fora”? Estaremos, ao abrir as páginas, a escapar?

Os desenhos em si revelam, na sua maioria, panoramas alargados, exteriores, onde se encontram casas, celeiros, edifícios rurais de formas entre a habitação humana e as tarefas agrícolas, ou misturas de ambas, todas de madeira, e uma caravana, e quase sempre em paisagens cheias de vegetação cerrada, por vezes altos pinheiros, aqui no sopé de ma montanha, ali à beira de um lago, na orla de uma floresta. Todas as casas estão aparentemente abandonadas. Algumas provavelmente há anos, outras mais recentemente, tudo completamente desprovido da presença humana, de decorações, de traços que fizessem adivinhar essa presença há pouco. Nalguns casos, essas habitações despejadas encontram-se de facto em chamas, noutros casos é possível que o fogo as tenha lambido há muito, noutras cenas ainda adivinha-se que se aproximam labaredas, gigantescas, ao sabor de potentes ventos e gordas nuvens negras, soltando aqui e ali faúlhas e pontinhos brilhantes, algo a queimar-se. Mas o que é mais visível são as ruínas (já feitas, à medida que se fazem, quase a fazer-se) e o pó denso e negro do carvão.

Catarino tem alimentado uma pesquisa aturada pelas ruínas contemporâneas. Se a fotografia é o modo usualmente escolhido para a colheita dos traços deixados pelo avanço tecnológico, a obsolescência planeada, ou os dejectos do que há décadas era visto como a promessa do futuro (possivelmente são o casal Becher o grande paradigma, mas já Atget havia explorado as fantasmagorias que a sua contemporaneidade prometia para o futuro), o desenho não tem sido prática abandonada. Como uma espécie de Piranesi dos nossos dias, Catarino poderá deambular as paragens dos baldios nas cidades, ou os espaços entre a malha urbana, para criar Vedute do se espalha nesses espaços fantasmagóricos. Mais próximo da nossa área, poderíamos recordar Martin Vaughn-James, por exemplo, mas Catarino abdica da matéria verbal a criar uma faixa suplementar, deixando que seja a série de desenhos a ditar as direcções possíveis.

No caso desta publicação, e com a excepção da caravana, que abre associações a outros espaços, sobretudo móveis, as ruínas não são nem urbanas nem industriais, mas desde logo isoladas no campo. É como se houvesse aqui uma promessa em se aproximar das ideias do bucólico para logo o negar através de um acto de violência (o fogo, o abandono). As páginas das tábuas – e recordemos como são tábuas “feridas” - assim não podem ser lidas como promessa de natureza, de conforto e singeleza mas antes como “pasto”, como “combustível” das chamas. O espaço “fechado” era afinal a única e fina membrana que nos separava da hecatombe que se ocultava por detrás.

A esmagadora maioria dos desenhos de André Catarino são feitos em esferográfica sobre papel, mas há também intervenções de aguarela, tinta-da-China e outros materiais. Apesar da resolução de algumas das imagens desta publicação não ajudarem, queremos acreditar que muitas destas imagens seguem essa prática de vários materiais. Tudo tem uma textura dramática, uma tactilidade que nasce da atenção para com cada tipo de superfície, e depois as tensões que nascem dos seus conflitos internos, se bem que tudo se prometa reduzir à mesma tonalidade e cinzas.


Se o substrato do gesto inicial de André Catarino se fica por esses materiais pouco nobres, garante-se assim também uma certa gravidade ou peso associado a um certo modus operandi, e até mesmo uma ética de trabalho, muito própria dos fanzines. Estes não podem ser entendidos somente como uma escolha determinada por questões financeiras ou de facilitismo de produção, mas antes uma opção consciente e plena de expressão, uma certa imediaticidade do acto. A sua aliança à da descoberta paulatina do leitor não podia ser mais exacta.  
Nota final: uma das imagens completas foi retirada do blog do artista.

2 comentários:

  1. Caro Pedro,
    muito obrigado pela recensão e respectiva partilha no blog. Fiquei bastante contente!

    Com os melhores cumprimentos,


    André Catarino

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  2. Olá, André.
    Eu é que agradeço as palavras. Desejo-te a continuidade de um excelente trabalho, e espero ver trabalho ainda mais musculado!
    pedro

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