Este projecto da CCC
nasceu desde o primeiro momento como um diálogo com uma nova geração
de autores de banda desenhada que têm trabalhado no mundo dos
fanzines mas abertamente integrados numa economia de circulação de
ideias e práticas global. Se a nacionalidade ainda faz sentido em
termos de solidariedade e esforços de produção, em termos
temáticos, políticos e de método artístico, já nada os
enclausura nesse descritivo. Se o primeiro número era dos “meninos”
e o segundo das “meninas”, este recupera alguns dos autores,
concentrando-se no colectivo Clube do Inferno: Astromanta, Mao,
Hetamoé, e o único autor a dispensar nom de plume, André
Pereira. (Mais)
Este colectivo tem feito
um trabalho notável desde o momento em que apareceram, sendo sérios
na materialidade das suas publicações, nas suas estratégias de
comunicação e circulação, até mesmo nas suas colaborações fora
do colectivo ou fora do selo editorial que criaram, procurando mesmo
arregimentar as sinergias que vão conseguindo criar, as relações
que estabelecem, para a criação de uma contínua rede de trabalho.
Além disso, como é notório, e perfeitamente natural dado o tempo
inicial das suas obras individuais, há um desenvolvimento e
crescimento das prestações gráficas de todos os seus autores.
Nalguns casos, as transformações dos primeiros trabalhos e do que
agora se apresenta é radicalmente distinto. A curiosidade maior,
todavia, pelo menos a nosso ver, é que não há nenhum desejo da
parte dos autores em se confundirem: as vozes autorais (narrativas,
temáticas) são bem diversas e os estilos gráficos não poderiam
ser mais díspares. Se são uma “família” unida por estes
trabalhos conjuntos, em nada mais podem ser subsumidos a uma
mesmidade. E até mesmo cada gesto singular, se bem que possam ser
unidos nalguma continuidade, mostra-se interessado em explorar
direcções diferentes.
Como
nos números anteriores, QCDI (a presença concentrada
do Clube obriga à transformação da última letra da impenetrável
sigla) apresenta-se como uma antologia simples: num mesmo formato,
quatro autores participam com histórias de quatro páginas, em
formatos clássicos (página ímpar, spread, página final
par). Parece haver um princípio comum, indicado pelo título e por
uma nota final. Uma reflexão sobre o tardo-capitalismo actual, cujo
prometido estertor tem sido sentido pela forma como se tem imiscuído
em esferas várias (começando pelo da política, como temos
testemunhado na Europa, não nos escusando de sentir as vibrações
em Portugal). O título baseia-se num ensaio [os autores garantem "estar lá tudo"], mas se o medo é
sobre algo que ainda não sucedeu, aqui é infundado, pois estamos já
nele. O título parece ser já uma citação em
segundo grau de um famoso álbum dos Public Enemy. E a palavra de ordem fight the power ganha mais
eficácia se se torna um hino adaptável a todas as lutas, unidas e
solidárias pela sua existência, mais do que viverem isoladas na sua
contextualização específica e fechada. Tal qual o esforço de um
colectivo, de resto.
Astromanta apresenta uma
história em que seguimos uma personagem aparentemente abandonada na
angústia de todos os temas da sociedade contemporânea: o
desemprego, a precariedade, a economia falível, as consequências
mais distantes mas não menos prementes dos conflitos, mas também as
mais imediatas e finais. Um pouco no seguimento de The Day the Masses Left History, é uma espécie de ensaio
político-económico-social sob o disfarce de uma alegoria
fantasiosa. Ou será o contrário? “Token” bebe de uma tradição
de banda desenhada muito devedora aos Fort Thunder, pelo
preenchimento quase obsessivo de cada vinheta por texturas regulares,
em colagens, contras as quais se movimentam as personagens desenhadas
de forma muito estilizada e simplificada, numa herança de desenhos
animados low fi. A composição, numa implacável grelha de 4
x 5 vinhetas (ecos de Chippendale?), obriga a um avanço e
linearidade inescapável.
“Obscure Alternatives”,
de Hetamoé, permite a autora regressar ao seu emprego de várias
estratégias consabidas de alguma mangá, ainda que com algum ruído
gráfico devedor das experiências dos “art comics”. Se um leitor
se abandonar a olhar para as imagens, poderá acreditar estar a ver
um simples diálogo, delicodoce, ou blasé, entre elfos de uma
qualquer história de high fantasy, com alguns
elementos modernos. Mas o texto, uma voz narradora e um diálogo
pejado de tons emocionais carregados (cuja falta de diferenciação
material faz confundir, tecendo metalepses), cria uma espécie de
neblina poética que arranca essas imagens a uma experiência
demasiado concreta. A malha intertextual (com referências a Marx,
rituais satânicos, aspectos mais ou menos obscuros de certas
culturas populares japonesas) é densa, o que obriga a uma série
decifração das consequências da frição, precisamente, dos
(aparente) diferentes mundos que aí concorrem. No fundo, quase que
pode ser interpretado como sendo uma versão da peça de bunraku
Os amantes suicidas de Amijima sob o signo da famosa frase do
Manifesto Comunista, que Berman usou como título do seu famoso livro
sobre a modernidade, indubitavelmente aqui presente: “Tudo o que é
sólido se dissolve no ar”.
André Pereira, pela
primeira vez, parece introduzir temas correntes da realidade
(portuguesa, mas não só): manifestações, protestos, os usuais
queixumes contra a “ineficácia” das mesmas e das greves, a
opressão política feito por meios ou mais velados ou mais directos
(a polícia). No entanto, a forma como o autor assalta essa realidade
para a subsumir a um jogo social não é tanto uma fantasia próxima
dos seus temas mais usuais como uma perigosa e informada premonição
da maneira como até a própria expressão da dissensão poder
“recuperada” ou “co-optada” pela cultura do
tudo-é-concursável. Se tendo direito à nossa “opinião” (o
autor é inteligente em empregar esta palavra, que os políticos no
poder empregam para reduzir a voz activa dos cidadãos, a sua
capacidade de reivindicação, protesto, reclamação, queixa, a uma
mera doxa), ela só é expressável a esquadria pré-preparada
por aqueles que detêm o poder que desejamos contestar, em que medida
é essa uma verdadeira contestação? As opções de André Pereira
de composição, com vinhetas em formatos e distribuições oblíquas,
convida a uma mais fluida navegação entre os vários pontos
espaciais de intervenção, vogar de personagem a personagem, e
confundir tudo num plano simultâneo, e apenas aparentemente fornecer
uma ideia lúdica, que “doura a pílula” para, provavelmente, a
história (sem título?) mais negra de toda a publicação.
Mao é um autor que
incrementalmente tem demonstrado o seu interesse em termos de
explorar novos modos de distribuição e composição, obrigando a
protocolos de leitura e organização narrativa (ou para além dela)
pouco usuais. “Fantastic Proliferation” apresenta-se com uma
estrutura de encaixe, com uma sequência central rodeada por outra,
numa ideia de acções paralelas e simultâneas: apesar de existirem
relações, diegéticas mesmo, directas entre ambas as “faixas”,
há ao mesmo tempo uma autonomia representativa entre ambas. Podemos
dizer que uma das narrativas mostra um líder aparente, Cosimo,
abusando do seu poder junto a alguns dos que o rodeiam, e usando uma
pizza como arma de relações passivas-agressivas: afinal é usada
como modo de reconciliação ou afirmação do seu abuso? A outra
narrativa segue um monstro-pizza nas suas deambulações e
metamorfoses, uma monstruosa antropomorfia que já visitámos com um
dos livros de Bruno Azevêdo, mas aqui empregue para forma de
comentário. Existem pistas intertextuais, no trabalho de Mao, que
permitiriam adivinhar laivos autobiográficos, mas eles não são
significativos para a leitura desta história, sendo mais eficaz a
interrogação que a frase final, uma citação de Baudrillard,
obriga a fazer. Será uma das linhas narrativas um simulacro da
outra? São ambas uma “tradução” de algo “real”?
Provavelmente é um complexo jogo de espelhos, e jamais se chegaria à
“coisa” primária.
Nota final: agradecimentos
a Mao, pela oferta da publicação. Imagens retiradas do site do colectivo.
Não é a primeira vez (mas talvez seja a segunda) que o André Pereira trata temas da realidade. Ver o zine "9:2:5", http://www.clubedoinferno.com/zines/925/
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ResponderEliminarOlá Pedro,
ResponderEliminarJá agora, a sigla está mal soletrada no título e no corpo do texto, o que assim a torna o anagrama realmente impenetrável :-).
Tive a oportunidade de conhecer 3 destes quatro cavaleiros no festival de Beja e foi o que me trouxe de lá mais bem impressionado, não desprezando o resta da experiência é claro. Para mim é extremamente reconfortante, talvez não seja o adjectivo mais adequado sem mais explicações, encontrar 4 jovens autores de bd assim capazes de transmitir uma visão política das suas vidas e de tantos outros perante este cenário de abismo plural do melhor dos piores sistemas e no qual assistimos inertes ao evoluir da nossa democracia. Mesmo os que ainda participam colectivamente deste tipo de esforços culturais, não disfarçam o seu "pessimismo racional". Recordo-me muitas vezes da crise de identidade de Saramago entre o Tertuliano e o Daniel (Engels e Marx?). No "O Homem Duplicado" recorda-se a filosofia de Hegel, ela própria um "Livro dos contrários", da ideia de que a história repete-se sempre, pelo menos duas vezes (absolutamente necessário :-) e da sua diversão "marxiana". Marx repetiu a fórmula e redondamente transformou-a, parece-me, numa farsa às suas próprias tragédias. Apesar do seu pessimismo agarro-me ao contraditório "optimismo da vontade" deste género de autores. Se da primeira vez é uma tragédia e da segunda uma farsa, que a terceira, inferno ou apocalipse, venha em banda desenhada :-).
Por razões muito pessoais, em particular pelo meu activismo sindical e local onde trabalho, partilho do medo deste planeta capitalista e sou testemunha e participante das situações/metáforas que percorrem as quatro histórias. Talvez esteja influenciado por elas, mas, na minha opinião, estes autores têm qualquer coisa que merece que continuemos atentos.Só mais uma coisa, belíssima capa (ainda há esperança? não!) e excelente escolha de formato.
Será que neste espaço de comentários, fora da crítica, se achares a propósito, podes "confidenciar" como apreciaste pelo (teu) lado mais emocional este trabalho?
Obrigado e Abraço,
José
Olá a ambos, José e João.
ResponderEliminarComeço pelo mais óbvio: a correcção do título. Dizê-lo em voz alta, de forma ridícula, enquanto escrevia, não parece ter ajudado. Obrigado.
João, eu tinha já escrito sobre o "9:2:5" (http://lerbd.blogspot.pt/2013/07/zines-da-morta-sob-o-signo-do-sexo.html), e nele falo da maneira como me parece que o André Pereira trata a realidade, para mais autobiográfica, ou semi-, para alertar uma dimensão relativamente invisível, mas parece-me que esta história agora é ainda mais "engajada", uma palavra que parece estar fora de moda mas cada vez mais necessária, como indica o José Sá.
Não querendo retirar o mérito dos membros do Clube, existem outros autores que, aqui e ali, vão fazendo alguns esforços similares ou próximos, de atenção política para com a situação do país, ainda que de formas fantasiosas, quotidianas ou, bem pelo contrário, directas: José Smith Vargas, a malta do "Buraco", a Amanda Baeza no "Our Library", a antologia "Zona de Desconforto", já para não mencionar alguns dos autores a trabalhar em áreas aparentemente mais convencionais ou estabelecidas, como o cartoon político e/a caricatura mais virulenta. Mas sim, a questão da geração, se é algo irritante por uma questão de princípio, traz alguma esperança aos velhadas que já passaram do prazo de validade, como eu.
Sobre banda desenhada e política, haverá notícias em breve. Sobre o lado emocional, e conhecendo pessoalmente estes autores, é uma mescla de felicidade em estar presente no seu aparecimento e crescimento e de tristeza por não ter energia de estar mais envolvido ainda "na cena".
Abraços e obrigado,
pedro