Num seu pequeno
opúsculo de 2004, Les abus de la
mémoire, Tzvetan Todorov escreve o
seguinte: “Comemorar as vítimas do passado é gratificante,
ocuparmo-nos das do presente incomoda [dérange]”.
Esta é uma frase a qual, “ilustrada” pela situação hodierna
dos refugiados do Mediterrâneo (expressão terrivelmente redutora e
simplificadora), e contrabalançada com o exemplo-mor, a dos
refugiados da II Guerra Mundial (sobretudo judeus, mas não só),
deveria servir-nos de mote constante no momento de discutirmos ou
sequer ponderarmos a “longa história” que une todos os países e
povos envolvidos, numa tremenda e complexa rede de relações
políticas, económicas e sociais, servindo assim de antídoto a uma
cega, pateta e ignorante consideração das circunstâncias dos
últimos tempos, informada somente pelo egoísmo da nossa inscrição
individual no tempo. O que a banda desenhada e disciplinas contíguas
permitem, face a esses discursos englobantes, parece estar na mente
de Dominic Thomas, quando em African and
France: Postcolonial Cultures, Migration, and Racism
(citado neste volume por Michelle Bumatay, pg. 30), afirma que “um
dos maiores desafios da globalização do século XXI... [é] a
prática da humanização de assuntos económicos, políticos e
sociais complexos”. Os textos e casos de estudo que constituem os
objectos lidos
deste livro, se não o fazem directamente, contribuem para esse foco. (Mais)
A frase de Todorov é
citada por um dos ensaístas que se juntam neste volume,
conjuntamente dedicados ao estudo de todo um espectro de produção
de banda desenhada e cartoons
que se encontram sobre um denominador comum: a do “pós-colonialismo”.
A importância e complexidade deste termo é demasiado lata para ser
aqui explorada. Por um lado, deve-se ter em conta que esta noção,
quadro disciplinar ou conceptual veio permitir, parafraseando um
artigo de António de Sousa Ribeiro (“Pensamento pós-colonial”),
restituir a pluralidade do mundo tal como dos modos de conhecimento,
conduzindo consequentemente à “transmigração e recodificação
de conceitos centrais na análise da sociedade e da cultura”, tais
como o de tradução, de identidade, de memória, cidadania, etc. Por
outro lado, é necessário também ter em conta que a própria noção,
tendo sido criada no cadinho da intelectualidade Euro-Americana, não
deixa de ser um instrumento teórico que poderá dar azo à
emergência de determinadas dicotomias que colocaria o “centro
Euro-Americano” numa posição de privilégio, para começo de
conversa, da própria produção de discurso. O “pós” poderia
ser lido, por exemplo, como um marco de derradeira ultrapassagem dos
abusos dos poderes coloniais (as mais das vezes, mas não só, países
europeus) sobre as suas colónias (africanas, americanas, asiáticas),
ou então um mero indicativo cronológico, mas a “prioridade,
autoridade e determinação ocidental na sua concepção dos
projectos pós-coloniais de leitura, escrita e prática política”
(como ainda escrevem Mehta e Mukherji, 12) deve sempre estar na nossa
mente, de maneira a que se possa corrigi-los, ou matizá-los, de
alguma forma. Parte dessa inflexão é possível precisamente com o
emprego de noções ou correntes de pensamento alternativas, fundadas
em espaços fora do privilégio dos centros de pensamento
euro-americanos, e que revelam, quase sempre, uma mais apropriada
estrutura de análise de fenómenos ou situações localizadas.
O conjunto de ensaios que
encontramos neste livro tiram partido não apenas dos conceitos e
instrumentos teóricos consabidos desta área de estudos (Hall,
Spivak, etc.) como também procuram ser mais alertas para com as
situações específicas que analisarão.
Uma das vantagens de
Postcolonial Comics
sobre outros projectos similares ou comparáveis, tais como
Transnational Perspectives in Graphic
Novels, Multicultural Comics e os volumes de Mark McKinney,
alguns dos quais foram aqui abordados, curta ou alongadamente, é que
se apresenta aqui um leque diversificado de facto em termos de pólos
de produção. Nesse sentido, está próximo de Representing Multiculturalism in Comics and Graphic Novels,
também da Routledge. Se existirão alguns autores ocidentais, como
Jean-Philippe Stassen (com a história Les
visiteurs de Gibraltar, publicada na
magnífica revista de jornalismo ilustrado XXI)
e Joe Sacco, estes encontram-se como que concentrados na primeira
secção do livro, juntamente com Tezuka Osamu (um foco em Adolf),
intitulada “Geografias de contacto: Gibraltar / Malta /
Ásia-Pacífico” (traduzimos). Como reconhecerão os leitores de
Mary Louise Pratt, a primeira parte daquele subtítulo bebe do
conceito dessa teórica das “zonas de contacto”, por elas
descritas enquanto zonas de encontro, e por vezes conflitos mesmo, de
duas culturas distintas, muitas vezes em relações de poderes
assimétricos, das quais o colonialismo é um dos exemplos textuais
de Pratt. É nesse sentido que as obras desses autores são
analisadas, e a banda desenhada “Kushinagar” de Sacco é estudada
de forma muito curiosa por Sam Knowles, tomando em conta todo o
edifício formal do trabalho, mas também as questões da sua
recepção, sobretudo da maneira como se torna possível na sua
distribuição online.
Ao considerar os comentários deixados online, seriamente, Knowles
procura precisamente sublinhar uma questão importantíssima, que é
a de como outras comunidades que não a “nossa” lerão um
determinado trabalho, e como não deveremos defender-nos tão-somente
indicando que “o outro não entende”, mas sim procurar as razões
dessa diferença de percepção e compreensão.
As outras três secções
estão divididas por áreas geográficas mais determinadas. Em
primeiro lugar países africanos que foram colónias francófonas,
como a Argélia [v. adiante], o Gabão e o Congo, depois a Índia, e finalmente o
“Médio Oriente”. Se alguns dos ensaios agregados nestas partes
são dedicados a títulos e obras singulares, alguns deles tentam
tomar em conta contextos ou tendências mais alargadas. É o caso de
Véronique Bragard, sobre a representação do passado congolês na
banda desenhada contemporânea (títulos tais como Kongo e
Africa Dreams), o de Pramod K. Nayar sobre a representação de
terroristas-revolucionários (apenas a distinção dessa palavra,
associada a dois momentos ou posições distintas, é uma tensão
permanente entre a linguagem e a política) na banda desenhada
indiana, o e Jeffrey John Barnes sobre a produção de cartoons
editoriais da Palestina judia e árabe entre 1939 e 1948,
revelando-se muitos dos primeiros passos a certos esquemas de
representação, o de Massimo Di Ricco, sobre um movimento
pan-arábico, por assim dizer, de artistas de banda desenhada entre
países tais como o Líbano, o Egipto e a Argélia [v. erro de palmatória nos comentários]. Encontraremos
aqui alguns autores mais conhecidos, talvez, como Zeina Abirached, de
cujo novo livro falaremos atempadamente, mas uma panóplia de autores
menos correntes.
Como vemos, a maior parte deles, assim como o de Ann Miller sobre Morvandiu e outros, foca sobretudo em questões de "representação", o que não é de surpreender num volume informado por uma disciplina oriunda do grande campo dos Estudos Culturais. Mas isso não significa que haja alguma distracção da parte formal ou estrutural, sobretudo nos mais brilhantes artigos com close readings (Miller, Bragard, Knowles, etc.). O último artigo, de Lena Irmgard Merhej, é também o menos comum em termos de método, e concentra-se na produção de banda desenhada de temática madura do Líbano, necessariamente de pequenas editoras. Bebendo de “teoria visual, narratologia da banda desenhada e semiótica social, assim como uma técnica de visualização muito específica na qual a manipulação digital da imagem é central”, a autor destaca as imagens que, no corpus eleito, mostra pessoas armadas, para depois criar uma estrutura visual analisável. Afecta à teoria da multimodalidade visual fundada por Kree e van Leeuwen, seria este texto um excelente exemplo para discussão (já que nos perguntamos a validade deste tipo de abordagem não-holística) da sua exequibilidade e produtibilidade.
Como vemos, a maior parte deles, assim como o de Ann Miller sobre Morvandiu e outros, foca sobretudo em questões de "representação", o que não é de surpreender num volume informado por uma disciplina oriunda do grande campo dos Estudos Culturais. Mas isso não significa que haja alguma distracção da parte formal ou estrutural, sobretudo nos mais brilhantes artigos com close readings (Miller, Bragard, Knowles, etc.). O último artigo, de Lena Irmgard Merhej, é também o menos comum em termos de método, e concentra-se na produção de banda desenhada de temática madura do Líbano, necessariamente de pequenas editoras. Bebendo de “teoria visual, narratologia da banda desenhada e semiótica social, assim como uma técnica de visualização muito específica na qual a manipulação digital da imagem é central”, a autor destaca as imagens que, no corpus eleito, mostra pessoas armadas, para depois criar uma estrutura visual analisável. Afecta à teoria da multimodalidade visual fundada por Kree e van Leeuwen, seria este texto um excelente exemplo para discussão (já que nos perguntamos a validade deste tipo de abordagem não-holística) da sua exequibilidade e produtibilidade.
Voltando às
palavras das editoras, estes “ensaios.... viajam extensamente e
também no seio de histórias e campos textuais específicos” (13),
e é esse círculo expansivo que dá um grande valor a este volume,
para não falarmos de contribuições mais dedicadas quer a um corpus
particular quer mesmo à pertinência de uma metodologia disciplinar,
como são os estudos ou o próprio conceito do pós-colonialismo, e a
possibilidade de encontro frutífero entre uma abordagem formal e
outra social, sobre a banda desenhada. Desta forma, e como escreve
Knowles, a obra de Sacco opera uma “meta-narrativa [sobre] da
supressão da comunicação em torno desta existência: os obstáculos
à informação” (51). Até certo ponto, poder-se-á dizer que a
esmagadora maioria dos textos de banda desenhada abordados neste
volume criam um espaço de política, de conquista de expressão, de
voz própria, que cria espaços não apenas de contacto, sendo-os,
mas de uma possível resistência. Regressando às editoras, mais uma
vez, lemos na introdução, “estes guiões [scripts]
utilizam gramáticas visuais, imagens-texto, e performances gráficas
que reconstituem “imagens-funções” convencionais em textos
sociais e sistemas políticos estabelecidos, e portanto, talvez,
reveem narrativas competidoras de resistência ou de direitos” (3).
Ao contrário do que certos círculos intelectuais menos informados
perpetuam em termos de percepção social da banda desenhada, este
campo específico não é constituído ou nivelado pelo “mesmo”,
existindo espaços diferenciados e dignos de conquista política. Não
querer ver isso é um desserviço, menos à banda desenhada em si, do
que aos autores que a elegeram como seu veículo.
Nota final: agradecimentos
à editora, pela oferta do volume.
Olá Pedro,
ResponderEliminarUma excelente entrada e muito a propósito, até na sua contradição interna, com as recensões (detesto foneticamente esta palavra) recentes a obras "postcolonials" como o "Árabe do Futuro" e o "PYongYang". E digo contradição porque, pegando no teu último parágrafo, aquelas duas obras, atendendo à tua posição sobre as mesmas, poderão também ser, de certa maneira, "um desserviço aos autores que a elegeram (bd) como seu veículo", contribuindo, talvez, para o que "certos círculos intelectuais menos informados perpetuam em termos de percepção social da banda desenhada". Desta vez de avaliação no sentido oposto, pelo acolhimento desproporcional ao mérito, mas igualmente redutor do género.
Continuo a acreditar, como o Harvey Pekar (que já não continua :-), que, tendo a bd a capacidade de juntar o melhor escritor ao melhor desenhador, é o veiculo de comunicação por excelência (exagero? assim é o amor). A bd já é desde há muito - Portugal é dos melhores exemplos se nos lembrarmos do Bordalo - o veículo de excelência para falarmos de política e das distorções à liberdade de expressão e de afirmação das pessoas e dos povos face à hegemonia dos poderes instalados.
A bdteca global estará proxima de se encontrar perfeitamente divida em metades iguais de temas políticos e quase políticos. Se calhar não há quase espaço para a ausência da política. Já vi a bd fazer política nos espaços mais óbvios, como nos cenários menos esperados. Já vi fazê-la em óperas siderais, mas usando também vidas simples. Lembrando o Cole Porter numa música extremamente política, "se todos o fazem, vamos fazê-lo também". Até eu o faço.
Aquele Abraço,
José
P. S.: Quando os primeiros portugueses chegaram à Argélia perceberam mal o nome do povo e trocaram as letras. Tenho reparado no meu local de trabalho, o aeroporto, e noutros fóruns que os portugueses estão a corrigir esse erro histórico relativamente ao país e à sua capital e aproximam-se do grafismo internacional. Também é o teu caso? Não resisti, sei que não levas a mal :-DDD
Olá, José. Comecemos pelo fim. Ai! Este foi o som da palmatória a dar-me com força na mão. Apanhei também um "Índia" de acento trocado, mas se esse erro se deve a bater no teclado à pressa, esse outro por ti caçado é mesmo estroinice de estar a falar em inglês/francês e "traduazar" (é mesmo isso) à força. As minhas desculpas, corrigido.
ResponderEliminarQuanto à "contradição", não sei se o é. Não posso, claro, estar aqui a desfazer-me em pormenores para apontar as diferenças dos gestos, métodos e resultados entre artistas & obras que levariam a essa diferença de leitura, mas o mais importante é que cada obra de arte tem de suscitar os seus próprios instrumentos críticos. É natural que um crítico, enquanto indivíduo com formação própria e individualidade, tem os seus instrumentos preferidos e correntes - os meus são facilmente identificáveis, para começo, os advérbios de modo -, mas ele ou ela devem ter em atenção de forma especial a própria obra, e não fomentar um uso automático de grelhas idênticas sobre textos de contornos diversos. Esse uso automático seria, exacto!, uma "recensão", do latim "recensare", que significa "contar, enumerar"... Levo muito a sério (demasiado?) a ideia de "crítica", a qual se alia a vocábulos tais como "decidir", "separar", "juízo" e "crise", mesmo que se revista de um tom mais grave. Mas essa é a tarefa do crítico; como dizia Walter Benjamin, "mortificar a obra".
Quando a parte dessa minha última frase, foi em parte infeliz, pois estava a pensar em algo a "quente", e era uma espécie de resposta a alguém em concreto... talvez revisite esse ponto. Não sei é se percebi a tua distorção dos termos da minha frase: eu estava querer afirmar como certos intelectuais que não estão familiarizados com a banda desenhada - a banda "desdenhada", como diz o Isabelinho - é que a nivelam, dizendo ser "tudo bêdê", e por isso falham em encontrar as diferenças entre autores musculados em termos teóricos e políticos... não sei se fui claro...
Abraços,
pedro
Pedro,
ResponderEliminarQuanto à distorção, referia-me à responsabilidade interna ao género daqueles intelectuais que, pensando prestar um grande serviço à bd, pegam nos árabes do futuro para os elevar à nona-essência do género, afastando a demais massa crítica não especializada, que, perante o embuste, encontram também assim uma oportunista certificação para a redução da bd a um género de baixo nível intelectual. Faltarão mais críticos do teu calibre? Será mesmo essa a pergunta a fazer? Primeiro, há pessoas dificilmente reproduzíveis :-) e depois, não sei, mas parece-me ser colocar o problema ao contrário. Que razões estarão na base desta formatação de que falas? Será que a BD tem uma má relação com o poder? Por vezes penso que só pode ser isso.
Abraço,
José
Essa pergunta vale o prémio final. Refiro-me à questão do papel da banda desenhada e do poder, já que a outra não faz sentido, recusando eu qualquer "calibre". Limito-me a pensar de forma série sobre a banda desenhada, como muitas outras pessoas (começando com o Domingos Isabelinho, mas passando por algumas outras pessoas, no nosso país, que escapam à gravidade do "repetição de nota de imprensa" ou "encómio formatado"). Sobre esse outro assunto então, temos o Groensteen com o seu "Un object culturel non-identifiée", o Baetens nos seus muitos artigos sobre as relações entre a banda desenhada e a literatura, o Smolderen no seu questionamento da história da banda desenhada e o seu permanente relacionamento com outros meios/media, as histórias sociais de J.-P. Gabillet, da recepção de Mel Gibson, o edifício da sociologia da banda desenhada de Martin Barker e os que se seguiram, as relações interartes do Bart Beaty e mais uma catrafada de outros escritores. Da minha parte, diria: a banda desenhada cria (criou?) espaços de felicidade na infância e adolescência de muitas pessoas, e conspurcá-la com coisas sérias é abdicar dessa nostalgia. Uma forma de defender a infância é insistir que os espaços felizes não passam disso. É uma ideia.
ResponderEliminarpedro
No jornalismo, sobre a banda desenhada, vou fazendo o que posso.
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