10 de outubro de 2015

Graphic MSP: 2º fase. AAVV (Panini Comics)


Tendo discorrido longamente sobre a 1º fase da ditas “novelas gráficas” que reempregaram as famosas personagens criadas por Maurício de Sousa em novos enquadramentos criativos – e o emprego desta palavra, “fase”, não é de forma alguma alheio às estratégias de progressiva editorialização dos seus conteúdos pela Marvel; afinal, estes títulos são encomendas num contexto, e não fruto somente de uma vontade autónoma dos autores envolvidos, se bem que haja muitos movidos pelo desejo de “brincar com estes brinquedos” -, convido os leitores do Lerbd a remeterem-se a esses outros textos para regressarmos às mesmas considerações que conduzem aos novos títulos. Desta feita, a criação de expectativas faz-se de uma forma dupla, mas nenhum delas sobre uma ausência. Em primeiro lugar, tendo existido já uma experiência anterior, isto permite que se crie um horizonte de expectativas, para usar a expressão famosa de Jauss, mais pormenorizado. As regras do jogo, digamos assim, estão compreendidas, logo a parada é maior. Por outro, tendo em conta que de quatro títulos, dois repescam as mesmas personagens com a mesma equipa criativa, e outros dão início a um passo inédito, há uma perfeita distribuição do efeito de novidade e do de continuidade. (Mais)

Os novos títulos, continuando a ideia de apresentar livros com um título de uma só palavra, confirmando uma certa simplicidade e imediaticidade da sua leitura, confirmam aquela ideia de trazer alguma gravidade emocional e actancial às personagens unidimensionais de Maurício de Sousa pela criação de uma espécie de pátina nostálgica, ofertando-lhes uma espessura que nunca tiveram. Em parte, é isto o que explica o sucesso quase automático destes títulos junto aos seus leitores principais, o grande público brasileiro (e também algum português). E se esse sucesso não é imerecido – são as prerrogativas de projectos ditos “comerciais” feitos nas melhores qualidades desse território, nem sempre eles convidam a leturas mais cuidadas dos seus instrumentos expressivos e estruturais.
Há como que uma espécie de direccionalidade do gesto de recriação, mas que nunca se coalesce num total desprendimento da matéria original, o que é mais do que expectável, afinal de contas, uma vez que se está a trabalhar no interior de uma gravidade – as metáforas de Singularidade podem ajudar – que não permite um afastamento demasiado severo.

John G. Cawelti, que teorizou em vários dos seus escritos uma espécie de “ciclo de vida dos géneros” populares do cinema e outras áreas narrativas, explica de forma sucinta como eles “passam de um período inicial de articulação e descoberta, através de uma fase de autoconsciência  da parte quer dos criadores quer do público, até um tempo que os padrões genéricos se tornam tão bem conhecidos que as pessoas se cansam da sua previsibilidade. É nesse momento que as abordagens paródicas e satíricas proliferam e que novos géneros emergem gradualmente”. Se afunilarmos a produção MSP à banda desenhada infantil, diríamos que a sua possibilidade satírica se instalou de uma forma brilhante logo de imediato com autores iniciais como Busch, Dirks, McCay, e outros, tendo observado há tempo recente um recrudescimento, na verdade, de um abraçar descomplexado e bem-disposto desses mecanismos genéricos: Battling Boy é, por exemplo, um sinal desse “regresso”.

Estes objectos estão numa espécie de meio-caminho. Em caso algum estamos perante sátiras da Turma da Mônica e amigos, nem tampouco de uma desmontagem da ideologia que informa essa produção, ou sequer uma rasteira, menos ou mais inteligente, dos elementos que alimentam a máquina imaginativa dirigida aos mais jovens. É curioso notar como até mesmo na produção Disney (veja-se algum do material italiano que tem sido traduzido em Portugal) se criam narrativas que, de uma forma ou outra, subvertem alguns dos princípios moralizadores da produção original. Mas esse não é o caso nestes trabalhos. Podem procurar-se emoções ligeiramente mais complexas, mais tristes e negras, mas na verdade nada disso é um desvio do território usual da MSP. Há antes uma oferta de uma camada adicional de complexidade a nível narrativo, e igualmente artístico, que não está presente na produção mais corrente, fortalecendo dessa maneira metonímica toda a sua produção. Por outras palavras, estes livros vêm oferecer um filtro pelo qual se pode olhar, ainda que distorcidamente, para a produção do passado. Nisso, a Graphic MSP é muito efectiva.

Bidu. Caminhos. Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho.
Apesar deste livro abrir e fechar em torno de Franjinha, criando um arco teleológico da aventura de Bidu em relação à sua “salvação” ou “descoberta” pelo menino, Caminhos estende-se sobretudo na personalidade desta personagem não-humana. É muito curioso que a característica principal de Bidu, isto é, a sua particular capacidade de pensamento, de comentários metalinguísticos e que quebram sistematicamente a dita “quarta parede” (em português, falar-se-ia de apartes no sentido precisamente teatral) sejam aqui preteridos em nome de uma outra natureza da pesquisa permitida à matéria gráfica da banda desenhada.

Todas as personagens humanas se expressam com balões de fala, com matéria verbal, mas sempre que testemunhamos os animais a falar, os mesmos balões são ocupados com outras tantas imagens icónicas, remetendo a todo um outro referencial de imediaticidade e visualidade clara. Essa distinção poderia tornar-se problemática, mas é tão-somente uma maneira de dar a entender uma possibilidade de percepção daquele mundo, mantendo ainda assim uma certa lógica realista em Caminhos. O valor original das histórias não se desfaz assim, mas há duas ou três forças que conduzem este título em direcções diferentes: se por um lado a “aventura” de Bidu se pauta como num álbum de banda desenhada “muda”, mais concentrada nas dinâmicas acções e os mecanismos entre as personagens, por outro, há também uma pesquisa por como Bidu irá preencher o desejo de Franjinha em ter um cão. Essa relação na verdade não existe: não há nada nas acções de Bidu que o tornem mais ou menos apto para ser o cãozinho de Franjinha, a não ser a força das circunstâncias, portanto é a concentração nas suas caraterísticas: a coragem, abnegação, capacidade de individualidade mas também de amizade, etc., que o tornam “digno” desse encontro final.

Há que colocar porém alguma água na fervura da ideia inicial. Dissemos que o próprio Bidu, e os restantes cães, não se expressam verbalmente. Mas no início da história e no seu final, surgem trechos de uma voz narradora desincarnada. É quase automático que a atribuamos a Franjinha, mas nada nessas palavras nos permitem associá-las sem quaisquer dúvidas à personagem humana. A voz fala do encontro com o melhor amigo, mas essa é uma fórmula que tanto poderia dizer respeito do humano para com o cão, como o seu contrário. Pensamos mesmo que a possibilidade da atribuição quer num caso quer no outro é mesmo o propósito dos autores, aos tornarem possível que essa voz, ou essas vozes, se confundam entre si, reforçando de maneira indelével a amizade que projectaríamos em ambos personagens. 

Os autores não se esquecem de integrar a aventura do cão azul no universo mais expandido da Turma da Mônica, no Bairro do Limoeiro, ao colocarem uma cena, brevíssima, secundária, da fuga de Franjinha, Titi e Jeremias de uma temível Mônica, que figurativamente assume todos os insultos clássicos que lhe são dirigidos (nesse aspecto, tal como ocorrera em algumas das histórias curtas das antologias MSP 50, há um ligeiríssimo teor subversivo, talvez). Aliás, a própria integração geral de Caminhos, procurando ser a “origem” do encontro de Franjinha e Bidu, encontrar-se-ia “antes” de todas as aventuras criadas pelo próprio Maurício de Sousa, já que foram precisamente estas personagens as que o colocariam na senda do seu pequeno império.

Os autores, que trabalham a quatro mãos, tiram todo o partido dos instrumentos gráficos de que estão munidos, desde a figuração livre, caricatural, que lhes permite criar variações marcantes das personagens conhecidas (sobretudo Bugu), à utilização de linhas coloridas para os contornos e traços e a ausência de linhas para as molduras das vinhetas, suavizando toda a composição, ainda que mantendo esta no interior de uma convencionalidade legível. O emprego dos tais balões de fala icónicos, com por vezes pequenas espirais para dar conta de uma musicalidade oculta, permite aos autores um trabalho de segundo nível, hipotextual, em relação às acções retratadas. E finalmente o uso pouco natural das cores, para precisamente acentuar efeitos emotivos em determinados momentos: a identificação imediata de todas as personagens, a súbita diferenciação de momentos do dia, o spread central na chuva, a suavidade do fim do dia, e até mesmo as onomatopeias que irrompem pelo espaço gráfico. O entardecer é utilizado no início e no fim da narrativa geral, e o modo como os autores criam um intervalo de gradações mas que caminham de uma cor complementar a outra (a saber, de um amarelo torrado a um violeta vivo) demonstra como essa pesquisa, mesmo que seja intuitiva, é conducente à carga emocional que se pretende vincar com este projecto.

Penadinho. Vida. Paulo Crumbim e Cristina Eiko.
Apesar deste título ter propósitos e uma abordagem estilística quase tão infantil quanto o livro de Bidu, ele reveste-se não apenas de alguns contornos algo mais sofridos – afinal, é uma “linda história de amor”, como se costuma repetir nestes romances – como é também o mais completo e terminado dos volumes em termos estritamente narrativos.

Narrativa concentrada por seguir à risca os princípios aristotélicos, a trama deste livro atravessa uma só noite (invertendo a noção proposta na Poética), desde o anoitecer até à madrugada, colocando nesses limites toda a geometria entre o herói, os seus coadjuvantes, o violão, os deuteragonistas, e o grande objecto da saga: a apaixonada, Alminha. Poder-se-ia debater que Vida obedece a um esquema demasiado simplista e até demasiado expectável, com uma figura feminina enquanto objecto da acção dos demais personagens masculinos, por exemplo, e onde a distribuição moral é clara. Não seria falsa essa leitura, mas o modo como o objecto deste livro abraça esse mesmo propósito desarma, quem sabe, parte desse avanço conceptual.

Os autores lançam mão não apenas de todas as personagens desta outra turma em particular – até certo ponto, os vários “conjuntos” do universo da MSP organizam-se por certos princípios agregadores -, como de todas as referências possíveis associáveis a este quadro de “fantasia negra”, que o autor original, Maurício de Sousa, chamara algures de “histórias de terrir”. De facto, as referências parecem beber das mais diversas fontes: o vilão chama-se Crowley, os personagens contam até 666 para jogar às escondidas, surgem demónios com nomes retirados de grimórios, mas também há toda uma bateria que parece associar-se quase de imediato a um corpus de animação japonesa, não sendo impossível traçar linhas directas com a produção dos estúdios Ghibli (acima de tudo, Sen To Chihiro), até mesmo por os traços de Crumbim e Eiko, lançados no papel juntamente, beberem largamente de uma linguagem contemporânea, fluida, esquemática, estilizada, informada pela mangá e animé. Tudo isto, portanto, articulado para uma direcção perfeitamente coerente.
Esta conjunção de “figuras clássicas do terror” e um género narrativo infantil não é, hoje, totalmente inédito, mas se a criação original de Maurício de Sousa não deixou de ser algo pioneira nesse sentido, sobretudo no Brasil, este projecto de Crumbim e Eiko é feita num contexto alargado em que existem produções tais como Addams Family, Casper, the Friendly Ghost, Melvin Monster, de John Stanley, a obra de Mercer Mayer, e os mais recentes Monsters Inc., AAAHH!! Real Monsters, Monster High, Foster's Home for Imaginary Friends, os livros (e consequentes adaptações) de Neil Gaiman, e todos os universos das novas séries de animação da Cartoon Network. Já para não falar, claro está, da produção japonesa de Mizuki às séries contemporâneas... Penadinho. Vida, contudo, como todo o projecto (aprovado editorialmente, recordemos) da Graphic MSP, pretende que se coloque a tónica mais na dimensão psicológica e emocional do que pura e simplesmente na acção e linearidade da aventura.

Esse resultado tem a ver com a relação amorosa mas jamais confessa de Penadinho por Alminha. A possibilidade da reencarnação desta última, isto é, a sua dissolução enquanto fantasma, alerta o protagonista para o perigo de um fim que não pensava ser possível, já que a vida-após-a-vida lhe pareceria eterna, não o sendo. Ao confrontar-se com a perda inevitável – e a “inversão” dessa perda ser para a vida, e não para a morte, torna essa ideia paradoxalmente menos macabra -, instalam-se todos os mecanismos previsíveis das dinâmicas de grupo necessárias ao ancoramento das alianças e conflitos das duas forças em jogo.

Vida é também, destes quatro livros, o mais visualmente dinâmico e diverso no interior. Os autores não seguem sempre a mesma linha, e exploram o que lhes é possível, ainda assim no interior de uma certa convencionalidade e legibilidade simples, a heterogenia dos estilos, composições e esquemas cromáticos. Há mesmo uma página que mostra um dos percursos percorridos pelos aliados como se se tratasse de um mapa de jogo de plataforma de 8-bit, aumentando a carga humorísticas desses mecanismos e referências. Mesmo as reviravoltas mais expectáveis funcionam sempre para recompensar os “pontos nevrálgicos” necessários para os leitores se sentirem confortáveis na leitura. Não procurado propriamente revolucionar a forma, Vida preenche esse limite da forma mais completa possível, o que não deixa de ser uma vitória para um livro desta natureza. 

Astronauta. Singularidade. Danilo Beyruth.
Uma vez que Beyruth havia criado em Magnetar uma estrutura conceptual sólida e diferenciada para o Astronauta, “arrastando” essa personagem para um contexto de aventuras mais convencional mas com os necessários contornos eco-filosóficos da versão original, em Singularidade o autor centra-se numa acção mais linear e dirigida, sem grandes desvios desse caminho. Tal como ocorre noutras das suas obras, como as aventuras curtas do Necronauta ou o seu weird western Bando de dois, Beyruth é um autor que lança as suas personagens de imediato no calor da acção, sendo a partir da fricção dos eventos que surgirão as consequências da construção psicológica das personagens.

Todavia, ao contrário de Magnetar, em que as condições de isolamento do Astronauta eram conducentes à exploração de uma aventura “interior”, constituída de memórias, receios e até mesmo algum princípio de paranóia, aqui a missão envolve mais duas pessoas, a saber, uma psicóloga que deve avaliar o protagonista e um membro de uma instituição científico-militar de outra nação (os Estados Unidos, ainda que não de forma explícita), de dúbios intuitos. Desta forma, a intriga de Singularidade permitirá criar uma geometria de tensões entre estas personagens. Todavia, essa geometria não ganha jamais uma configuração demasiado complexa. Bem pelo contrária, ela é clara desde a partida e segue alguns passos expectáveis. Mas nenhuma dessas passagens-chave, mesmo que tornem a história linear e formulaica, retiram os factores de excitação e deslumbre que o autor gere para preencher o seu propósito de entretenimento. Singularidade, aliás, tem momentos de maior acção e espectacularidade do que Magnetar, tornando-o um complemento curioso se pensarmos nos livros como um conjunto (eventualmente a continuar).

Nalguns aspectos, poder-se-ia pensar que este é o título mais “adulto”, mas isso deve-se à forma como são geridas as emoções das personagens. Estas são todas adultas – poder-se-ia pensar que também as de Penadinho o são, mas essoutro mundo, criado assim, segue um género de humor de tal maneira que a idade não é um factor – e as tensões que surgem nessas relações são mais “negras”: irritação, mentiras, desilusões, etc. A introdução da possibilidade sexual entre o Astronauta e a sua psicóloga é clara, mas não particularmente explorada (é até desviada com a costumeira “fantasma” da paixão do protagonista, e reduzindo essa personagem a uma mera lady in distress). Mas essa “maturidade” é atingida mais por essas dimensões superficiais do que propriamente pela seriedade ou gravidade dos sentimentos esgrimidos.

Tal como noutros títulos deste projecto, é como se a Beyruth fosse dada a oportunidade de abrir os arquivos da personagem, a “Bíblia” existente dela, e pudesse rearranjar os elementos dessa história como lhe bem aprouver no interior da sua versão. Nesse sentido, estes projectos seguem aquela tendência identificada por Geoff Klock e outros teóricos que tem informado a banda desenhada mainstream de superheróis desde o final dos anos 1980: a possibilidade de reempregar elementos arquivísticos – personagens, temas, objectos, histórias, etc. - da longa história das personagens para reescrevê-los num tom mais “adulto”, ou pelo menos informado por abordagens de géneros bem distintos do usual. Neste caso, as histórias infantis passam a ter um teor advindo de uma tradição que associa Flash Gordon às curtas da Métal Hurlant, passando por Incredible Science Fiction e Tales to Astonish: histórias centradas na acção, elevando uma qualquer noção científica como “excusa narrativa” para colocar em movimento todos os elementos. Quanto aos elementos, e como é exposto no material adicional no fim de cada volume, que remete precisamente para esse tal arquivo e história das personagens originais, Beyruth aproveita sobremaneira linhas que Maurício de Sousa havia lançado na sua tira de 1965, tendo sido reelaborada em 1985 já nas revistinhas.

No caso presente, e tal como o título indica, a noção científica eleita é a possibilidade de estudar um buraco negro, ou singularidade, primeiro ponto que leva a missão a partir com o Astronauta, único capaz de controlar a sua própria nave, e as duas outras personagens. Quando se aproximam do fenómeno (seguindo muito de perto, mas sucinta e simplificadamente, as descrições de Stephen Hawking com as correcções providenciadas pela teoria quântica), rapidamente entram em contacto com o problema do “segundo acto”: uma nova espacial alienígena e, claro, misteriosa, permitindo a que a rivalidade entre os dois personagens, masculinos (digamos que a gestão “Bechdel test”, como se aventada cima, destes títulos deixa algo a desejar), seja o mais sublinhada possível.

Pensamos que enfrentar Singularidade como uma narrativa de aventura de ficção científica, linear e descomplicada, de teor juvenil, é uma melhor atitude do que partir do pressuposto que estaríamos perante um projecto de maior complexidade e inventabilidade. Por exemplo, é relativamente fácil identificar alguns dos mecanismos episódicos da trama narrativa, como espelhando tantos outros da cultura popular – o interrogatório psicológico do herói que o incomoda, como é feito a Martin Riggs em Lethal Weapon ou Bond em Skyfall; o protocolo oculto de uma missão espacial, como em 2001, Alien, Event Horizon; o contacto com uma civilização tecnológica superior e desaparecida Alien, Total Recall, Mission to Mars, Prometheus -, em vez de imaginá-la como plataforma de modos originais.


Turma da Mônica. Lições. Vitor e Lu Cafaggi.
Como no caso anterior, repetia-se aqui a equipa e a atribuição das personagens, e também se estabelece uma história que, até certo ponto, é autónoma da anterior. O ponto em que se suaviza essa dependência encontra-se em um dos dois factores que tornam Lições um projecto ligeiramente mais arriscado que o anterior, e até que os demais. Esse primeiro factor está no da introdução do tempo, uma vez que estamos perante a ida da turma para a escola, e tudo o que isso acarretará em função do “crescimento”.

O segundo factor, intimamente relacionado com esse, está na introdução do conflito central da narrativa, e que traz uma dinâmica inesperada a Lições. Não pode ser inocente a escolha dessa palavra, até por eufonia com Laços, tal como não será de todo inocente que a capa, por mais estudos diferentes que tenha havido, siga o mesmo esquema que o título anterior, mas de “moral” bem diferente. Se aquilo que simplifica a acção e dinâmica de grupo é, precisamente, a sua existência enquanto grupo, em que as forças se vão complementando, qual é a grande crise que se pode instalar no seu seio? É quebrá-lo. Os “laços” que os uniam é nesta história “quebrado”, então, devido a uma falta escolar de todos os personagens, e que leva os pais a tomarem decisões radicais, levando Mônica a mudar de escola, Cebolinha a ter terapia da fala, Cascão em aulas de natação e Magali a seguir um curso de boas-maneiras. Cada um desses comportamentos instituirá uma tensão que os afasta centrifugamente do magnetismo que os une (seja por amizade genuína ou por rivalidades e picardias, mas que podem ser vistas também como outra forma de expressar essa amizade genuína), e o modo como isso os força a todos a estudarem a hipótese de terem de viver sem esses amigos de sempre.
Claro está que, para que uma história funcione de modo clássico, esse conflito tem de ser informado pelos paradoxos naturais das vontades das personagens (medo da água, resistência a “corrigir” comportamentos, uma mania demasiado forte, etc.), levando então aos eternos desequilíbrios que colocam em movimento todas as peças para que se regresse a um estado inicial, mesmo que depois se revele algum grau de aprendizagem. Dessa forma, é muito inteligente a maneira como os dois autores introduzem não tanto uma diferença abissal em relação ao comportamento clássico destas personagens, mas as colocam numa berma do pior sentimento possível: a dúvida. A imagem de Cascão a contemplar mergulhar o pé na água da piscina, a uma distância de um cabelo, é uma perfeita metáfora desse mecanismo.

Os irmãos Cafaggi tiram partido dos mesmos métodos do livro anterior, mas com diferenças de grau. Lições é um livro pesado em termos de diálogos, o que não deixa de ser surpreendente já que potencialmente seria aquele que, pautado pela vontade de chegar a um público mais alargado e jovem, se poderia escudar dessa estratégia. Mas a verdade é que no burilar desses diálogos que muitas das personagens conseguem expressar as suas angústias, medos e dúvidas, o que nem sempre é um facto explorado na banda desenhada para crianças – mormente aquela infantil e comercial da própria MSP -, ainda que seja uma cada vez maior constante noutros territórios, como os livros ilustrados.

Há também um conjunto de referências que engrossam a integração no universo, como dissemos a propósito de Bidu. Caminhos, nomeadamente ao introduzir-se uma peça teatral escolar, Romeu e Julieta, que relembrará alguns leitores do projecto da MSP em torno dessa peça, numa versão onde os papéis principais eram distribuídos pelo Cebolinha e Mônica. Essa é sempre, pelos vistos, uma decisão editorial, ou pelo menos uma estratégia facilitadora da parte da editora, precisamente para atingir aqueles objectivos indicados acima na pequena introdução.

Nota final: agradecimentos a Maria Clara Carneiro, pelo favor imenso de comprar e enviar por correio estes títulos. 

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