Em
todos os momentos da nossa vida, não vivemos apenas no presente. A
qualquer momento da nossa experiência, decorrente da duração a que
pertencemos, arrastamos connosco fantasmas do tempo passado, assim
como do futuro. Encaixadas numa experiência humana do tempo, e na
nossa inscrição física nesse fluido, pressupõem-se um passado
havido e um futuro a vir. Como escreve Henri Bergson no seu
incontornável Matéria
e Memória,
“Por mais breve que se suponha uma percepção, com efeito, ela
ocupa sempre uma certa duração, e exige consequentemente um esforço
de memória, que prolonga, uns nos outros, uma pluralidade de
momentos”. (Mais)
Um
livro de banda desenhada, tal como qualquer outro projecto narrativo
(não estamos a querer equivaler uma com o outro, tão-simplesmente
sublinhamos que neste caso é essa a sua natureza), pode ser descrito
simplesmente pela sua diegese. A intriga, o género, a sinopse. Mas
pode ser igualmente explorado pelo modo
como expressa essa mesma linha narrativa. A descrição do primeiro
caso obrigará sempre a uma inexorável unidireccionalidade e a um
aligeiramento, ou mesmo lisura, de toda a textura original do relato.
Pensamos que Tungstênio/Tungsténio
(a versão portuguesa apenas adapta o título à nossa grafia)
perderá uma grande parte da sua valorização se for enfrentado
somente pela parte da “estória”, já que Quintanilha explora
formas narrativas que são possíveis de uma maneira especial na
banda desenhada para expressar essa mesma percepção e duração. Há
uma intriga, e nós avançamos nela, mas não é com a velocidade de
uma queda ou uma linha sem interrupções. Bem pelo contrário, é um
percurso que recorda exactamente o que Bergson chamaria de “a
encosta de nossa vida passada”.
Todavia,
comecemos pela superfície da linearidade. Um jovem, Caju, que vive
de aparentes biscastes, sendo o da venda de drogas um deles, e que
com jogos de cintura tenta ficar bem com Deus e o Diabo. Um sargento
reformado, seu Ney, para quem essa vida anterior lhe pautaria para
sempre a rectidão com que julga que todo o mundo se deveria regrar,
para seu pesar. Um agente policial, Richard ou Richa, que
paradoxalmente é um profissional na resposta pronta e sem medo face
ao perigo criminoso, mas que na relação matrimonial escorrega nas
mais banais das expectativas. Keira, mulher de Richa, que promete e
ameaça continuadamente que abandonará o marido violento, até ao
ponto dos amigos não mais acreditarem, mas que acaba sempre por cair
novamente na sua órbita. E dois pescadores que apanham peixe à
beira da praia à força de explosivos, e que são o gatilho de toda
a acção que colocará estas personagens, num primeiro momento, num
ponto nevrálgico de espaço e tempo, levando-os a convergirem, para
depois descobrirmos os modos como as linhas das suas trajectórias
são mais misturadas que julgávamos ao início.
Esta
intriga poderá levar a muitas comparações, como se tem verificado,
com alguns textos mais populares – as mais das vezes, do cinema.
Por isso, referências como Pulp
Fiction,
Crash,
etc. não são inéditas, se bem que essa técnica de várias
histórias aparentemente singulares e autónomas a encontrarem elos
de ligação mais íntimos, não simplesmente por partilharem um
mesmo contexto espácio-temporal, mas por criarem relações
complexas de causa-consequência que emergem das relações
interpessoais em jogo, foram explorados por outros realizadores tais
como Robert Altman ou Paul Thomas Anderson. Contudo, mais do que
simplesmente indicar essas referências, importa perceber como é que
essa estrutura se faz, ou mais, como opera. Ora Quintanilha resolve
expor a cadeia de eventos, protagonizadas por essas personagens, numa
disposição complexa, que tanto bebe do linear como do não-linear.
Existe como que uma teleologia dos acontecimentos “principais”,
digamos assim, que seriam possíveis de resumir redutoramente numa
sinopse concentrada, mas todas essas linhas encontra-se
constantemente interrompidas ou desaceleradas através da intervenção
de vinhetas que remetem a outros episódios no passado, sob a forma
de pequenas sequências ou de vinhetas singulares. Há algo (quase)
de paradoxo de Zenão: quanto mais próximos estaremos da cúspide de
determinada acção, mais lentamente chegamos a ela, concentrando-nos
antes na intensidade da emoção da personagem, assaltada por todo um
comboio de memórias que vem chocar com o acontecimento presente.
Desta
forma, é menos importante em Tungstênio
a resolução, ordem ou relação dos eventos, do que a forma como
eles são experienciados por cada uma das personagens na integração
natural das suas vidas. A consciência das personagens não é
propriamente eclipsada, tampouco dissolvida, mas é pelo menos
representada de forma que se confunde com a da textualidade própria
da banda desenhada (as vinhetas-chave que actuam como as memórias
que assaltam as personagens, a “encosta”).
A
banda desenhada não tem a mesma história de que a do romance, ou
outros géneros literários. Se no romance, e isto é muito
discutível, houve uma curva que levou de organizações lineares e
cronológicas, narradores e personagens actancialmente claros e graus
de veracidade límpidos para destruturações crónicas, narradores
improváveis, personagens não-humanas e explorações cada vez mais
impressionistas da consciência, até mesmo a experiências
anti-consciência, a banda desenhada desde a sua origem trilhou
caminhos bem mais desconexos (até pela sua menor idade). Enfim,
aquilo que Viktor Sklovskij havia exposto como sendo a tarefa da
arte: a de “tornar os objectos ‘desfamiliarizados’, tornar as
formas difíceis, aumentar a dificuldade e a duração da percepção,
uma vez que o processo de percepção é um fim estético em si mesmo
e deve ser prolongado”. Desta forma, concordamos com um teórico
como Johannes Fehrle, que considera que muitas das técnicas de
“estranhamento” da literatura são parte integrante dos
instrumentos da banda desenhada, não se podendo aplicar as noções
de “narrativa não-natural” preconizadas por autores como Jan
Alber, Brian Richardson, entre outros. Esses processos são
“naturais” à banda desenhada.
Todavia,
são precisamente aqueles termos de Shkolovsky em relação ao
“prolongamento da duração” que nos assaltam a mente ao ler
algumas das cenas de Tungstênio,
como aquela de mais de 16 páginas centradas no ínfimo momento da
porta fechando-se no apartamento de Keira, e na percepção desta
desse fechamento, ao mesmo tempo que esse intervalo cada vez mais
pequeno arrasta toda a sua vida passada em companhia com o seu
marido. O que é mais importante? A acção da porta fechando-se? As
memórias de Keira? O que essa porta, ao fechar-se, significa para
Keira? Na verdade, o mais importante é a própria tessitura
construída por Quintanilha de como essa porta, fechando-se, cerze os
pontos nevrálgicos das memórias-chave de Keira dessa mesma relação,
tornando-os blocos que a impelem a decisão em formação e, acima de
tudo, à própria textualidade, irredutível, de Tungstênio.
Marcello
Quintanilha, neste registo de franqueza e atenção para com
personagens numa linha de realismo rés-do-chão (ainda que haja um
grão de dramatismo e acção mais espectacularizado), numa trama
urbana, com geometrias pessoais, e onde os traços de uma consciência
social e política se entrevêem no dinamismo narrativo e
interpessoal, mas sem ganhar contornos demasiado programáticos,
instala-se numa linha que alinharia autores tais como Marcelo
D’Salete, Pedro Franz, André Kitagawa, e alguns outros, talvez,
que nos sejam desconhecidos.
Em
termos visuais, há uma coerência no naturalismo com que se debruça
sobre estas vidas: o desenho realista, anatomicamente lógico, com
pormenores expressivos e individualizates das personagens, mas pejado
de pequenos traços estilísticos que aumentam essa aproximação ao
real – a visibilidade dos traços do pincel ou do lápis na textura
do papel, a gestualidade das áreas negras ou brancas, contra um
simples cizento digital para criar zonas de diferença cromática, a
atenção para com o “peso” real dos corpos humanos sob a forma
de suor, lágrimas, a focalização em gestos isolados e destacados
da fluidez da acção, a interrupção por cenas “mudas” no meio
da tempestade, a segmentação de um gesto ou acontecimento em
intervalos menores – tornam Tungstênio
“pesado”, grave, coincidente com a experiência. Os diálogos são
quebrados, orais, urgentes, verídicos, e as onomatopeias maiores,
traçadas rapidamente aumentam o “grão” das vozes das
personagens.
Se
a edição portuguesa é de capa brochada, ao passo que a brasileira
se apresenta com uma forma cartonada, o papel matte da Polvo é mais
agradável à captura dos gradientes de pretos e cinzentos das
intrincadas tramas de Quintanilha, até por estarem impressas de
forma mais sombria e sólida.
Nota final:
agradecimentos à editora brasileira Veneta, pelo envio do livro, e à
Polvo, pela oferta da sua edição.
Excelente livro de BD obrigatório
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