12 de outubro de 2015

Tungsténio. Marcello Quintanilha (Veneta/Polvo)


Em todos os momentos da nossa vida, não vivemos apenas no presente. A qualquer momento da nossa experiência, decorrente da duração a que pertencemos, arrastamos connosco fantasmas do tempo passado, assim como do futuro. Encaixadas numa experiência humana do tempo, e na nossa inscrição física nesse fluido, pressupõem-se um passado havido e um futuro a vir. Como escreve Henri Bergson no seu incontornável Matéria e Memória, “Por mais breve que se suponha uma percepção, com efeito, ela ocupa sempre uma certa duração, e exige consequentemente um esforço de memória, que prolonga, uns nos outros, uma pluralidade de momentos”. (Mais) 

Um livro de banda desenhada, tal como qualquer outro projecto narrativo (não estamos a querer equivaler uma com o outro, tão-simplesmente sublinhamos que neste caso é essa a sua natureza), pode ser descrito simplesmente pela sua diegese. A intriga, o género, a sinopse. Mas pode ser igualmente explorado pelo modo como expressa essa mesma linha narrativa. A descrição do primeiro caso obrigará sempre a uma inexorável unidireccionalidade e a um aligeiramento, ou mesmo lisura, de toda a textura original do relato. Pensamos que Tungstênio/Tungsténio (a versão portuguesa apenas adapta o título à nossa grafia) perderá uma grande parte da sua valorização se for enfrentado somente pela parte da “estória”, já que Quintanilha explora formas narrativas que são possíveis de uma maneira especial na banda desenhada para expressar essa mesma percepção e duração. Há uma intriga, e nós avançamos nela, mas não é com a velocidade de uma queda ou uma linha sem interrupções. Bem pelo contrário, é um percurso que recorda exactamente o que Bergson chamaria de “a encosta de nossa vida passada”.

Todavia, comecemos pela superfície da linearidade. Um jovem, Caju, que vive de aparentes biscastes, sendo o da venda de drogas um deles, e que com jogos de cintura tenta ficar bem com Deus e o Diabo. Um sargento reformado, seu Ney, para quem essa vida anterior lhe pautaria para sempre a rectidão com que julga que todo o mundo se deveria regrar, para seu pesar. Um agente policial, Richard ou Richa, que paradoxalmente é um profissional na resposta pronta e sem medo face ao perigo criminoso, mas que na relação matrimonial escorrega nas mais banais das expectativas. Keira, mulher de Richa, que promete e ameaça continuadamente que abandonará o marido violento, até ao ponto dos amigos não mais acreditarem, mas que acaba sempre por cair novamente na sua órbita. E dois pescadores que apanham peixe à beira da praia à força de explosivos, e que são o gatilho de toda a acção que colocará estas personagens, num primeiro momento, num ponto nevrálgico de espaço e tempo, levando-os a convergirem, para depois descobrirmos os modos como as linhas das suas trajectórias são mais misturadas que julgávamos ao início.

Esta intriga poderá levar a muitas comparações, como se tem verificado, com alguns textos mais populares – as mais das vezes, do cinema. Por isso, referências como Pulp Fiction, Crash, etc. não são inéditas, se bem que essa técnica de várias histórias aparentemente singulares e autónomas a encontrarem elos de ligação mais íntimos, não simplesmente por partilharem um mesmo contexto espácio-temporal, mas por criarem relações complexas de causa-consequência que emergem das relações interpessoais em jogo, foram explorados por outros realizadores tais como Robert Altman ou Paul Thomas Anderson. Contudo, mais do que simplesmente indicar essas referências, importa perceber como é que essa estrutura se faz, ou mais, como opera. Ora Quintanilha resolve expor a cadeia de eventos, protagonizadas por essas personagens, numa disposição complexa, que tanto bebe do linear como do não-linear. Existe como que uma teleologia dos acontecimentos “principais”, digamos assim, que seriam possíveis de resumir redutoramente numa sinopse concentrada, mas todas essas linhas encontra-se constantemente interrompidas ou desaceleradas através da intervenção de vinhetas que remetem a outros episódios no passado, sob a forma de pequenas sequências ou de vinhetas singulares. Há algo (quase) de paradoxo de Zenão: quanto mais próximos estaremos da cúspide de determinada acção, mais lentamente chegamos a ela, concentrando-nos antes na intensidade da emoção da personagem, assaltada por todo um comboio de memórias que vem chocar com o acontecimento presente.

Desta forma, é menos importante em Tungstênio a resolução, ordem ou relação dos eventos, do que a forma como eles são experienciados por cada uma das personagens na integração natural das suas vidas. A consciência das personagens não é propriamente eclipsada, tampouco dissolvida, mas é pelo menos representada de forma que se confunde com a da textualidade própria da banda desenhada (as vinhetas-chave que actuam como as memórias que assaltam as personagens, a “encosta”).

A banda desenhada não tem a mesma história de que a do romance, ou outros géneros literários. Se no romance, e isto é muito discutível, houve uma curva que levou de organizações lineares e cronológicas, narradores e personagens actancialmente claros e graus de veracidade límpidos para destruturações crónicas, narradores improváveis, personagens não-humanas e explorações cada vez mais impressionistas da consciência, até mesmo a experiências anti-consciência, a banda desenhada desde a sua origem trilhou caminhos bem mais desconexos (até pela sua menor idade). Enfim, aquilo que Viktor Sklovskij havia exposto como sendo a tarefa da arte: a de “tornar os objectos ‘desfamiliarizados’, tornar as formas difíceis, aumentar a dificuldade e a duração da percepção, uma vez que o processo de percepção é um fim estético em si mesmo e deve ser prolongado”. Desta forma, concordamos com um teórico como Johannes Fehrle, que considera que muitas das técnicas de “estranhamento” da literatura são parte integrante dos instrumentos da banda desenhada, não se podendo aplicar as noções de “narrativa não-natural” preconizadas por autores como Jan Alber, Brian Richardson, entre outros. Esses processos são “naturais” à banda desenhada.

Todavia, são precisamente aqueles termos de Shkolovsky em relação ao “prolongamento da duração” que nos assaltam a mente ao ler algumas das cenas de Tungstênio, como aquela de mais de 16 páginas centradas no ínfimo momento da porta fechando-se no apartamento de Keira, e na percepção desta desse fechamento, ao mesmo tempo que esse intervalo cada vez mais pequeno arrasta toda a sua vida passada em companhia com o seu marido. O que é mais importante? A acção da porta fechando-se? As memórias de Keira? O que essa porta, ao fechar-se, significa para Keira? Na verdade, o mais importante é a própria tessitura construída por Quintanilha de como essa porta, fechando-se, cerze os pontos nevrálgicos das memórias-chave de Keira dessa mesma relação, tornando-os blocos que a impelem a decisão em formação e, acima de tudo, à própria textualidade, irredutível, de Tungstênio.

Marcello Quintanilha, neste registo de franqueza e atenção para com personagens numa linha de realismo rés-do-chão (ainda que haja um grão de dramatismo e acção mais espectacularizado), numa trama urbana, com geometrias pessoais, e onde os traços de uma consciência social e política se entrevêem no dinamismo narrativo e interpessoal, mas sem ganhar contornos demasiado programáticos, instala-se numa linha que alinharia autores tais como Marcelo D’Salete, Pedro Franz, André Kitagawa, e alguns outros, talvez, que nos sejam desconhecidos.

Em termos visuais, há uma coerência no naturalismo com que se debruça sobre estas vidas: o desenho realista, anatomicamente lógico, com pormenores expressivos e individualizates das personagens, mas pejado de pequenos traços estilísticos que aumentam essa aproximação ao real – a visibilidade dos traços do pincel ou do lápis na textura do papel, a gestualidade das áreas negras ou brancas, contra um simples cizento digital para criar zonas de diferença cromática, a atenção para com o “peso” real dos corpos humanos sob a forma de suor, lágrimas, a focalização em gestos isolados e destacados da fluidez da acção, a interrupção por cenas “mudas” no meio da tempestade, a segmentação de um gesto ou acontecimento em intervalos menores – tornam Tungstênio “pesado”, grave, coincidente com a experiência. Os diálogos são quebrados, orais, urgentes, verídicos, e as onomatopeias maiores, traçadas rapidamente aumentam o “grão” das vozes das personagens.

Se a edição portuguesa é de capa brochada, ao passo que a brasileira se apresenta com uma forma cartonada, o papel matte da Polvo é mais agradável à captura dos gradientes de pretos e cinzentos das intrincadas tramas de Quintanilha, até por estarem impressas de forma mais sombria e sólida.

Nota final: agradecimentos à editora brasileira Veneta, pelo envio do livro, e à Polvo, pela oferta da sua edição. 

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