8 de novembro de 2015

Esquadrão da Luz/Fell. Tomasi e Snejberg/Ellis e Templesmith (G. Floy)


Enquanto a G. Floy vai dando continuidade aos títulos mainstream da Image que têm construído o cânone actual dos “clássicos contemporâneos”, como Saga ou Fatale, é de notar como também não deixa de apostar em outros títulos sem continuidade, mas que alargam o acesso a esses mesmos pólos de produção do mainstream que não dos super-heróis. No caso presente, gostarísmos de nos debruçar brevemente num título novo, relativamente simples, que mistura vários géneros consabidos num projecto de alguma leveza, Esquadrão da Luz, e outro, já publicado há alguns anos, que mistura a novela de detectives a uma espécie de horror existencialista ou niilista, Fell: Cidade Selvagem. (Mais) 

Esquadrão da Luz. Peter J. Tomasi, Peter Snejbjerg e Bjarne Hansen. Com quase 200 pranchas de história, esta narrativa é porém não apenas célere como de uma navegação absolutamente suave. Não há quaisquer desvios da sua intriga, tudo concorre na mesma direcção. E nem sequer existem muitos afluentes, sendo todos eles de alguma maneira esperados e próprios na natureza do rio principal. Centrando-se num par de dias nos dias finais de Dezembro de 1944 algures nas frentes de batalha belgas, apesar de haver momentos em que os protagonistas se cruzam com vários grupos de pessoas, tudo serve sempre de peça à maquinaria central de Esquadrão de Luz. Um grupo de soldados americanos depara-se com um grupo de soldados alemães que são, na verdade, os últimos sobreviventes dos Nephilim, as criaturas bíblicas filhas de humanos e anjos caídos, liderados por um dos arcanjos-pai, os Grigori. Este possui uma arma temível, a espada de Deus, que lhe permitirá assaltar os portões do céu. Mas os soldados americanos têm nas suas fileiras o também lendário centurião que empunhou a lança que encurtou o sofrimento do Cristo na cruz, Marco Longino, e graças à sua própria liderança, serão eles a última linha de defesa do Céu.

É claro que são menos importantes os pormenores desse combate divino – quase todos os elementos são apresentados sem grande desenvolvimento, e muitos dos pontos são mesmo perfeitos MacGuffins – do que a rápida desenvoltura da narrativa. A título de exemplo, e como manda a lei destes grupos, os homens que compõem este último bastião têm personalidades perfeitamente distintas, desde o jovem quase-imberbe e nerd dos comics ao ensimesmado e deprimido protagonista, passando por todo um rol de temperamentos. Trata-se de um atalho, claro que sim, mas um atalho em que os elementos se encaixam depois numa elegância acabada para o propósito da história.

A tradução do título apaga o trocadilho existente no original, uma vez que Light Brigade tem pelo menos três leituras: a literal/militar, que descreveria um “batalhão de infantaria ligeira”, a metafórica/diegética, que aponta para o “poder da luz” deste grupo de soldados, e o famosíssimo poema de Tennyson, “Charge of the Light Brigade”. No poema de Tennyson, também se espera uma mortandade gloriosa face a um inimigo implacável e quase invencível, e que carregará qualidades épicas para esta outra obra. Não obstante, a tradução é até correcta, do ponto de vista numérico-militar, já que é um esquadrão que corresponde à dúzia de soldados que compõem a troupe desta história (seria curioso lança-la “contra” o episódio em que os soldados alemães ultra-corrigem um documento americano).

Sob que luz ler, então, este épico ultra-popular que mistura nazis e zombies, piadas sobre baseball e receitas bíblicas? Não temos de ler Esquadrão de Luz com princípios advindos de outras áreas de criação, mesmo no interior da banda desenhada. O que nos aborrece mais não é o facto de uma história não ser idêntica a uma outra ou não seguir os mesmos princípios conceptuais e formais. Por exemplo, poderíamos dizer que Esquadrão da Luz é uma obra fraca por não passar o “teste de Bechdel”, não existindo, aliás, quaisquer personagens femininas dignas desse nome. Mas será essa a crítica a fazer a um comic mainstream que trata de uma fantasia que mistura super-heróis, ficção militar, nazis e anjos de Jeová? Não essa inscrição no mainstream suficiente para lançar um certo caminho de interpretação que, não sendo propriamente uma defesa a essas ausências, mostra que a sua preocupação é outra, subsumida a princípios de entretenimento, a lógica das histórias, a ideia de passatempo até? Pois nessa concepção, Esquadrão da Luz trilha o seu caminho da maneira mais normalizada possível e, por isso, preenche os seus próprios requisitos.

É claro que estamos perante uma história de redenção, é claro que estamos perante uma história em que o maniqueísmo é respeitado, é claro que estamos perante uma ideia “americanizada” da distribuição do poder no mundo. Nesse sentido, voo cumprido. Mais incómodo é, na verdade, o facto de Deus ter sido aqui um pilantra egoísta e faccioso. Nós próprios vemos a narrativa do passado mítico a ser-nos contada, mas não há nada que aconteça que nos faça ver os Grigori como essencialmente “maus”. Deus é que não parece suportar a miscigenação. Esses factos, que não surgem como uma proposta que depois é debatida ou descoberta, mas é uma “verdade” que magicamente se implanta na mente dos soldados, não é empregue como possibilidade de criticar Deus ele-mesmo. Os heróis “do seu lado” simplesmente cumprem as regras do que estaria estipulado “em nome do bem”. Digam o que disserem os blurbs, convenhamos: Tomasi não é Ennis.      

A “leveza” e “imagem-acção” da obra são perfeitamente carregadas pelo trabalho de Snejbejerg, autor que une de forma brilhante, parece-nos uma certa escola da “linha clara” europeia a alguns princípios típicos da banda desenhada norte-americana. A figuração é clara, assim como as expressões corporais e faciais, e tira partido de todo o cardápio de enquadramentos, focalizações, ângulos e composição de página a tornar os significados directos, não havendo grande espaço para ambivalências. As cores, também elas convencionais mas competentes, de Bjarne Hansen, fazem integrar-se as imagens ainda mais naquelas tradições apontadas. Mesmo nos momentos menos naturais ou complexos, como em algumas cenas diurnas, o resultado é sempre icónico, como exige o título.

Fell: Cidade Selvagem. Warren Ellis e Bem Templesmith. Fell poderia ter vindo a ser algo maior do que resultou, mas ainda assim é uma óptima introdução ao cinismo costumeiro e contumaz do escritor, Warren Ellis. Aparentemente uma colecção de casos policiais resolvidos pelo detective protagonista, Richard Fell, na cidade para onde se acabou de mudar, Snowtown, Fell é na verdade uma radiografia (ou endoscopia?) às partes mais abjectas da vida nas grandes cidades do mundo ocidental, em que a empatia e vizinhança são palavras totalmente desprovidas de sentido.

Fell parece ser feito do mesmo pano do que muitas outras personagens de Ellis: uma figura solitária, cínica, com capacidades acima de ser humano médio e com maus fígados que os fazem cuspir insultos a todos os que o rodeiam. Fell sofre, porém, de um problema agravado, enquanto personagem. Em primeiro lugar, não teve lugar para se vir a desenvolver mais. Por outro, Ellis despacha a parte “detectivesca” com alguns laivos de passes de prestidigitador, que o leitor não pode de forma alguma seguir. Essa é uma prerrogativa da esmagadora maioria da escrita de detectives, claro, não se escusando a figura de Sherlock Holmes: a capacidade de afirmar verdades sobre a personagem a que o leitor ou espectador não teve realmente acesso, e não poderia seguir da mesma maneira (isto precisaria de ser corroborado pela análise dos textos, das cenas dos filmes, etc., mas fiquemo-nos por esta sumária ideia). Em Fell isso é por vezes levado a um ponto de hipérbole, uma vez que tem de funcionar nas duas dezenas de página que uma história leva a ser contada, e que se reveste muitas vezes de coincidências e proximidades pouco verosímeis, mas Ellis não pretende que percorramos o verosímil. Na verdade, os seus mundos, e o de Fell não é excepção, é composto particularmente por uma bílis niilista de onde poucos se redimem.

Alguns pontos são menos felizes, já que Ellis não deixa de apresentar uma ideia do mundo algo simplista e até conservadora (as atitudes perante a inacção das autoridades, a relação com as armas, a falta de matização das relações humanas e da possibilidade de colaboração e gregarismo, etc.). Há um isolamento das personagens que apenas sublinha as características que Ellis pretende trazer a primeiro plano, eliminando tudo o resto (na literatura faz o mesmo). Mas Fell: Cidade Selvagem deve ser antes visto como uma espécie de microscópio quebrado, focado apenas no ponto da imagem onde o bolor se mais agarra à superfície.

Uma vez que este é um projecto inacabado, interrompido (como outros desta fase de trabalho de Ellis), não será surpreendente que não haja depois uma linha vermelha que unifique cada um dos episódios a um enquadramento maior, u que aprendamos de forma final a backstory de Fell ou que as pontas soltas (o assassino que escapa, a freira-Nixon, o relacionamento com Mayko, etc.) sejam cerzidas satisfatoriamente. Essa é, de resto, uma estratégia sobejamente conhecida, clássica, e que o próprio Ellis utilizou noutros dos seus títulos, de Planetary a Global Frequency, Moonknight e Desolation Jones (de novo, em alguns casos sem ter tido a oportunidade de nos levar à resolução): iniciar com episódios singulares, fechados em cada um dos comic books, deixando algumas linhas de desenvolvimento de número para número, e depois terminar com algo que reunifique todas essas partes. De resto, esta é uma estratégia típica de alguns programas seriais de televisão, em que se sopesam organizações episódicas plot-driven mas garantindo suficientes elementos character-driven.

Ben Templesmith é um autor com um grande séquito de fãs, mas a abordagem de design gráfico à la anos 1990s, em abusos de efeitos Photoshop/David Carson/Ray Gun dizem-nos pouco, uma vez que não disfarçam as grandes limitações figurativas do autor, que não é tão estilizado como Ted McKeever nem tão moldado como Al Columbia, apesar de viver num intervalo entre esses territórios. A iluminação artificial e a apertada malha cromática é, todavia, perfeitamente adequada a este espaço semi-construído. Aliás, é em grande parte a “incompletude” da cidade de Snowtown que a torna interessante e, talvez memorável. Sabemos que ela fica “do outro lado da ponte”, mas ao mesmo tempo que fica “a milhas de qualquer lado”. É uma cidade depressivamente urbana, fria e nocturna, mas estranhamento desprovida de multidões: as “outras pessoas” só aparecem quando Fell se lhes atravessa à frente, como se fosse ele o filtro que nos permitisse vê-las.

Avançando num ritmo staccato tipificado de alguma literatura policial, e que o próprio Ellis tem cultivado inclusive na literatura (Crooked Little Vein, Gun Machine), e que encontra no último capítulo uma forma diarística, feita de legendas narrativas sob a forma de post-its do detective, Fell é um dos títulos com menos “acção” do escritor, uma vez que é uma exploração das descidas mais frementes à baixeza do ser humano, tema favorito do autor.  

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de ambos os títulos, e pelo envio das imagens empregues. 

1 comentário:

  1. Olá, Pedro

    fala Marco Alves, da revista Sábado. Gostava de entrar em contacto contigo, mas não tenho o email. Se puderes, contacta-me por favor para marcoalves@sabado.cofina.pt

    Abraço

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