5 de dezembro de 2015

Pacote da Big Planet/Retrofit Comics.

Se bem que a grande revolução da banda desenhada alternativa dos anos 1990 já tenha tido o seu momento de maior glória, não apenas no que diz respeito à própria produção, mas circulação, distribuição, apreciação crítica, mas de certa forma também no que diz respeito à criação dos textos em si, isso não significa que não existam momentos de quando em vez de maiores picos de novos agentes.  É provavelmente a distância e a idade que faz com que os entusiasmos se transformem em relação a novos títulos, autores e estilos, porque as coisas são vistas numa perspectiva mais alargada do que se se estivesse “inscrito” no momento (como se passou precisamente na década de 1990 para nós). Mesmo assim, é saudável tentar compreender algumas coisas mesmo que de uma forma necessariamente aproximativa e geral. É o que se passa com os livros produzidos pelas lojas Big Planet em parceria com a pequena editora Retrofit. (Mais) 

O acesso a estes títulos deve-se igualmente ao facto de que, paralelamente à edição em papel, ainda fundamental para a esmagadora maioria dos leitores “dedicados” de banda desenhada, a circulação em formatos digitais seja um complemento também essencial, em termos críticos, expositivos e económicos. A oferta parte de variadíssimos quadrantes, mas continuam a ser sempre os mesmos editores que atraem a atenção da esmagadora dos leitores, e até mesmo quando temos autores auto-publicando-se, mesmo que tenham um trabalho condigno, nem sempre conseguem chegar à atenção merecida. Além disso, a universalização da linguagem da banda desenhada, mesmo no seu avatar formal-económico da “graphic novel”, leva a que haja cada vez mais pessoas a elegê-la como o seu instrumento predilecto de expressão, mas que, não sendo “mestres ímpares do desenho”, “experimentandores” ou sequer “novos valores da literatura”, acabam por se encontrarem num meio-caminho entre os “populares pela mediocridade” e os “paladinos da arte”.~

Nietzsche ficaria bem aborrecido por esta nossa preocupação dos “competentes mansos”, por assim dizer, mas eles também criam a camada sólida na qual esta disciplina pode medrar. Seja virada para públicos especializados, como o infantil, seja elaborada no interior de preocupações específicas e genéricas, seja porque desejam explorar um tema qualquer através de instrumentos humorísticos, leves ou fantasiosos. Mas a fronteira entre a “literatura popular” e a “erudita” não é totalmente clara (uma dicotomia que tem toda a pertinência no território da banda desenhada), já que muitas vezes a primeira pode endereçar-se a questões abstractas e da condição humana mais profunda, revelando uma mundividência complexa, matizada e progressiva, e a segunda ater-se a princípios informados por um elitismo empedernido e ser conservador. Dito isto, mesmo os objectos verdadeiramente efémeros podem conter momentos de prazer e reflexão, não sendo incompatíveis ou incomensuráveis entre si. Mas adiante…

A maior parte destas publicações da Big Planet/Retrofit ronda as trinta e as cinquenta páginas, por vezes estendendo-se um pouco mais. Dessa forma, vivem numa lógica entre aquela da “graphic novel”, cujo objecto preciso é alvo de discussões correntes, e as dos comic books. Isto é, e simplificando de modo drástico, têm o formato e tamanho de um comic book ou pouco mais, mas seguem a ideia de uma publicação completa, autónoma, one shot. Isso não significa que não se possam seguir outras lógicas associadas ao mainstream, desde a existência de personagens recorrentes, ao respeito ou mesmo pesquisa de géneros específicos. Todavia, a maior parte dos exemplos que aqui trazemos à baila encosta-se mais àquelas tendências contemporâneas que, usando instrumentos gráficos afeitos aos “art comics”, ou a re-utilizações de estilos de uma convenção noutro contexto, ou estilizações descontraídas, procuram construir mundos ligeiramente fora das normas, sem com isso, porém, chegarem a entrar em territórios de experimentalismo ou de conquistas “culturais”, digamos assim, estrondosas. Enfim, toda uma geração de autores que usam a banda desenhada de forma livre para “contar histórias”, “criar divertimentos”, mas sem procurarem atingir “todos os públicos”.

An Entity Observes All Things. Box Brown. O primeiro título é do autor-editor da Retrofit. As páginas de An entity apresentam-se nas mais diversas composições mas onde as figurações são minimais, geométricas e nas quais a expressão e a emoção não estão em primeiro plano. Constituído por uma dezena de histórias curtas que oscilam entre as 5 a as 20 páginas, todos estes relatos podem ser descritos como de “ficção científica”, já que envolvem o futuro, tecnologias fantásticas, robots, alienígenas, viagens espaciais e as implicações que tais desenvolvimentos teriam na sociedade humana. Mas todos estes ingredientes são usados em pratos de absurdo, aventuras oníricas ou até memórias de infância. No fim de contas, as explorações servem simplesmente para sublinhar a solidão ou isolamento de todas as personagens, e entendermos que pouco importa quão alargados os horizontes possam ser, se a valência de cada um se estreitar a si mesmo. Mesmo a “entidade” que na história homónima observa a Terra, e todos os seus fenómenos, de flores a conflitos globais, no fim de contas anseia poder encontrar algo que satisfaça a sua solidão, mas falhando.

The Unmentionables. Jack Teagle. Este autor britânico é conhecido entre alguns leitores portugueses, pelo menos desde que expôs na Dama Aflita, no Porto, há uns anos. Este pequeno livro não escapa à gravidade dos seus trabalhos mais conhecidos, nos quais as suas figuras desenhada com linhas simples, composições clássicas mas com uma ocupação do espaço com muitos elementos decorativos, um incessante e divertido diálogo, e uma misturada de géneros da cultura popular. Neste caso, um grupo de wrestlers decide lançar-se numa vida de crime, mas a campeã actual resolve fazer o contrário e fundar um grupo de heróis, que dá título ao livro. A continuar ou não, pouco importa, já que há menos peso na originalidade pretendida no que no abandono do prazer do momento.

Sea Urchin. Laura Knetzger. Mescla entre escrita diarística, shoju mangá, e carta escrita a si mesma em que se esgrimem preocupações diárias, emotivas, com os outros e o mundo, mas se procuram igualmente intrometer referências de vários quadrantes populares, este é um daqueles projectos que, mesmo que possa não conquistar um espaço espectacular nos anais da banda desenhada, mostra seguramente como ela é uma disciplina perfeitamente adequada a tornar-se um instrumento para a expressão pessoal, mesmo que seja quase uma catarse unilateral. Escrito de uma forma nada conduzida, e vertendo-se pelas mais diversas emoções e humores, ora abarcando apontamentos muito específicos ora reflectindo sobre a natureza humana de modo mais lato, as divagações da protagonista (tratar-se-á de uma autobiografia?) entram numa proverbial montanha-russa.  Não há uma construção centralizada num grupúsculo de amigos, por exemplo, de onde emergiria um conflito ou sequer uma intriga, mas antes uma incessante travessia de temas. Porém, acumulando-se, eles criam de facto um retrato complexo de uma jovem mulher, e que em termos sociais, sexuais, político e até filosóficos é bem mais criativo, feminista e interessante que todas aqueles trabalhos de maior sucesso comercial (Cathy, Maitês, etc.) que apenas confirmam um discurso heteronormativo. Sea Urchin pode mesmo ser lido como uma carta de uma amiga, ou mais, que nos abre a alma mesmo que lubridiada pelo humor. 

Ikenaba. Yumi Sakugawa. Este livro arrola toda uma série de elementos que poderemos encontrar noutros relatos: uma espécie de confissão de uma jovem artista que detesta as sessões de “crítica” feita no curso das aulas, a sua escolha de criar uma performance-instalação em que se expõe numa insustentável intimidade é apenas lida à luz das teorias da arte em vigor, o que a coloca num movimento de fuga. Essa situação serve para pôr em primeiro plano problemas sociais e de poder que ocorrem nas escolas de arte no mundo anglófono, mas que de certeza têm ecos e paralelos nas nossas próprias (e como!), mas parece-nos que o objectivo principal é centrarmo-nos no mundo interior da protagonista que, para além da “nota de intenções” lida no início da sessão (e do livro) pelo professor, nunca diz uma única palavra. Desenhado de uma forma sumária – recorda um pouco o trabalho da Joana Estrela, mas com diferenças substanciais -, quase como apontamento primário, o livro inicia num tom estranho, quase caricato e que pensamos ser “leve”. À medida que a diegese avança, vai-se tornando mais grave, mais íntimo, profundo, mesmo sem Cassie jamais se expressar verbalmente. O final do livro é, a um só tempo, doce e trágico, mas isso também pode depender da interpretação do leitor. De toda esta fornada de livros da editora, Ikebana é aquele que mais  peso emocional poderá ter, mesmo no seu invólucro de aparência inocente e inócua.

Piggy. Niv Bavarsky. Curtíssimo livrinho com histórias ainda mais curtas, e imagens de apenas uma página que criam uma qualquer situação absurda, o trabalho de Bavarsky parece pertencer àquela categoria de artistas que têm uma urgência premente em dar a ver o seu trabalho, mais do que burilarem estruturas clássicas em termos de narrativa ou world-building, mas que mesmo assim atingem esse objectivo de modo oblíquo (como Raymond Pettibon, André Lemos, André Ruivo). Provavelmente Piggy é uma espécie de descanso entre o seu trabalho comercial mais intenso. Por isso existem histórias sem grande nexo, ou simples e abandonadas somente ao prazer da sua feitura, que poderão recordar alguma da animação psicadélica dos anos 1970-80, ainda que sem cor, e “diálogos” entre personagens que podem fazer pensar que encontramos aqui um pequeno ensaio sobre o conflito e o beco sem saída que ele representa.


Butter and Blood. Steven Weissman. Este autor fez parte da primeira geração de autores da fornada alternativa dos anos 1990, mas rapidamente se revelou como interessado em entrar por caminhos que nada tinham a ver com o confessionalismo árduo (na esteira de Dreschler, Barry, etc.), a intimidade das relações (Matt, Brown, Tomine, etc.), ou com o absurdo do quotidiano (Clowes, Bagge). Antes, repescando linguagens visuais e estilísticas que recordariam alguma banda desenhada infantil – como nos casos de Kochalka, Sala, e de certa forma Doucet -, Weissman colocava as suas personagens, muitas vezes crianças, em situações nada apetecíveis nessas esferas. Como no caso de Bavarsky, este volume de quase uma centena de páginas colecciona desenhos individuais, possivelmente projectos de ilustração, anedotas e gags de uma prancha, apontamentos e folhas arrancadas de diários gráficos. Os assuntos são vários, e encontraremos histórias ou situações com as suas personagens infantis consabidas, mas também gatos guiduchos, cães falantes, galinhas cowboy, spoofs dos Guns N’ Roses, em toda a espécie de humores. Há pelo menos uma história “grave”, “This Already Happened”, uma bonita história de memórias infantis, fins horríveis e redenção, mas a esmagadora maioria dos materiais parecem ser fruto de um punhado de minutos distraídos ao telefone ou então algumas horas mortas numa sala de espera. Isso não é, porém, um sinal de perigosidade ou problema, bem pelo contrário, são as circunstâncias que permitem ao autor desligar-se de certas responsabilidades e, assim, atingir um grau de “esvaziamento” conducente a objectos textuais estranhos, mas interessantes.
Nota final: agradecimentos a T. N. A. pelo "empréstimo" dos volumes sob forma digital.

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