7 de dezembro de 2015

Private Eye. Brian K. Vaughan e Marcos Martín (Panel Syndicate/Image)

Em termos de género (literário), a descrição desta banda desenhada é bastante simples e, por essa mesma razão, não se está a ser redutor (a menos que partamos da ideia, não totalmente errada, de que a própria categorização é redutora, e levanta problemas em si mesma). Private Eye é uma novela (aqui, no preciso sentido da palavra, de concisão narrativa e concentração actancial) de ambiente de ficção científica de intriga policial. Até à data, surgiram dois volumes (digitais) perfazendo uma história. (Mais) 

De acordo com alguns teóricos literários da ficção científica, como é o caso de Darko Suvin (“On the Poetics of the Science Fiction Genre”), a ficção científica apresenta um “enquadramento imaginativo alternativo ao ambiente empírico do autor”, isto é, partindo de um pressuposto de coincidência experiencial (societal, tecnológica, política, etc.) com o mundo habitado pelo autor e os seus leitores imediatos, mas para chegar a pequenas diferenças (daquelas mesmas ordens), que são usualmente, ainda de acordo com Suvin, mas já revelando um juízo de valor, “mais sábias”. Bom, este último ponto poderá ser discutível, já que o futuro ou a alternativa ficcionais apresentadas poderão tanto ter traços eutópicos como distópicos, mas seja como for ele terá sempre um qualquer grau de estranhamento mas que agirá enquanto reflexo da sociedade que lhe dá origem. Por outras palavras, as mais das vezes lemos ficção científica para melhor entendermos o nosso próprio mundo.

No entanto, de acordo com novas vozes desse (e outros géneros), a ficção científica actua melhor quando procura outros fins. China Miéville, cultor do género mas igualmente ensaísta profundamente informado pelas teorias dos estudos culturais, no seu ensaio em Red Planets: Marxism and Science Fiction, argumenta pela necessidade de se explorarem “alteridades”, papéis sociais diversos dos “scripts” que nós próprios desempenhamos no nosso mundo. Leitores de Miéville saberão quão distintas são as explorações de individualidade, sexualidade, política, etc. presentes nos seus romances. Até certo ponto, independentemente da centralidade da tecnologia em Private Eye, poder-se-ia argumentar que os papéis “alternativos” da pessoalidade estão na ordem do dia desta obra. Ficção social, então.

Esta série foi publicada em curtos episódios de umas 20 e tal pranchas cada. Estas pranchas têm um formato oblongo, o que permitia uma leitura mais confortável num ecrã de computador ou num tablet. Seja como for, a sua dimensão enquanto webcomic não significava qualquer elemento específico à multimedialidade permitida em ambientes digitais; nesse sentido, Private Eye não deixa de ser apenas uma colecção de pranchas, tais como poderiam existir num livro (e agora existem, num volume de capa dura pela Image), publicadas online. Nada de errado nisso, mas simplesmente o “salto” ou “mediação” entre uma possibilidade (papel) e outra (ambiente digital) não é aqui explorada de forma alguma. Dois factores são dignos, porém, de nota. Em primeiro lugar um aspecto económico, mais importante, mas que deixaremos a pessoas mais competentes para análise, é o facto de que Panel Syndicate é um projecto dos próprios autores (com outras séries lançadas, entretanto), sendo uma forma de conseguirem apoio financeiro dos seus esforços, com a informação acrescida de que Private Eye pode ser paga mas sem preço fixo: o leitor decide quanto pagar. Haverá escolhos nesta escolha? Sem dúvida. Mas ao mesmo tempo traz um lado estranhamente democrático e livre de tornar acessível ao mesmo tempo que assegura um apoio diverso.

Outro há aspecto curioso, que é a faceta ligeiramente metatextual da própria série, e essa sua existência digital, o que a torna mais pertinente do que no momento em que existe em papel. Permitam-nos um desvio. É recente a disponibilização da série televisiva (ainda é certo dizer isto?) The Man in the High Castle, baseada no romance homónimo de Philip K. Dick (re-traduzido para língua portuguesa recentemente por David Soares, na Saída de Emergência, cuja edição se aconselha). No interior dessa diegese, existe um autor lido à socapa pelos protagonistas, que escreve um romance de uma ficção alternativa à realidade que habita: uma vez que o romance de Dick se passa num mundo em que as forças do Eixo ganharam a 2º Guerra Mundial, esse hipotético e hipodiegético romance mostra um mundo em que foram os Aliados os vencedores (espelhando, de forma distorcida, o nosso mundo, sem bem que os paralelos não sejam assim tão paralelos, precisamente). Na adaptação da Amazon, esse romance passa a ser uma colecção de fitas de celulóide, um filme fragmentado – e MacGuffin de toda a intriga -, procurando então uma mise en abime visual no interior de um meio visual, onde antes existira um romance-dentro-do-romance.

Desta forma, não é particularmente surpreendente que ler uma ficção que vive afectada pela existência de uma rede compacta formada de Youtubes, Facebooks, Instragrams, Tinders, 4chans, tumblrs e netbanking deva ser lida precisamente nesse ambiente. Para fazer um like imediato, a compra por paypal antes de tudo, assegurar o rss mas, acima de tudo, estar absolutamente certo da rápida dissolução da atenção e da manobra, até mesmo do malabarismo, que teremos com todas as nossas “máscaras” sociais (que aumentam conforme o número de esferas distintas em que navegamos, e este verbo não é inocente no mundo online). Mesmo em blogs.

Narrativamente a série passa-se num futuro relativamente próximo, no último quartel do século XXI após um desastre tecnológico. Aparentemente a dependência da internet de todas as pessoas atingiria um tal grau que todas as suas vidas estariam presentes na “nuvem”. Não apenas as informações bancárias e curriculares, como todos e quaisquer segredos, desde o historial de navegação a fotografias, até às compras que se fazem. O que é irónico, naturalmente, é que, pelo menos no que diz respeito ao Primeiro Mundo, não já qualquer diferença da nossa experiência. O desastre é que essa nuvem, ou bolha, rebenta, e todos os tais segredos, as “segundas vidas”, ficam expostos: as consequências são desastrosas para as vidas profissionais, familiares e amorosas, e uma nova sociedade rearranja-se. Já não há internet (levando a toda uma série de piadas que apenas os utilizadores dela compreenderão, ao mesmo tempo que apre(e)ndem a futilidade dessas preocupações, e todas as pessoas assumem identidades secretas. Estas expressam-se desde as maneiras mais tranquilas – uma máscara de dominó, uma leve pintura – até formas mais circenses e espectaculares – fatos completos de furries, super-heróis, estranhas criaturas tiradas de um espectáculo dos Mummenschanz.

É neste universo que encontraremos um jovem “detective privado” que aceita casos pequenos a resolver. Uma vez que as forças policiais passaram a estar misturadas com a imprensa – é chamada de Fourth Estate/Quarto Poder -, é natural que os detectives privados (e o termo de gíria “private eye” passa a ter uma sentido quase literal) sejam conhecidos como paparazzi. A estrutura da história segue todos os passos clássicos de um policial. Começamos por ver Patrick Immelman ou P.I. (get it?) a resolver um caso bastante simples, mas que serve para introduzir a personagem, o seu mundo e os seus métodos de trabalho. Depois chega a mulher misteriosa (e numa progressão do Bechdel test, esta mulher estará interessada noutra mulher, a sua irmã, e a dimensão amorosa-sexual não tem o papel que costuma ter, aliás, há surpresas e desvios ao longo da narrativa nesse campo), com um caso aparentemente simples, mas que se revelará como muito complicado e alargará o escopo da acção para uma conspiração de impacto global. E todos os elementos que vão sendo apresentados, mesmo aqueles que parecem secundários, têm um peso na máquina total. Private Eye possui, portanto, uma escrita (e desenho, etc.) inclinada: quer dizer, todos os elementos concorrem para uma leitura titilante que nos leva a perseguir o prazer das descobertas e a unidireccionalidade total da intriga.

Nesse aspecto, Brian K. Vaughan está aqui no seu melhor. A concentração da intriga e das personagens permita que o modo de construir o mundo é muito controlado. É também uma oportunidade para jogar com toda uma série de flutuações e referências: não faltam, sobretudo nas pranchas em que se permite uma navegação da atenção por todo o espaço interior dos quartos, citações a filmes, livros e discos, através da sua própria presença nas cenas. Cria-se assim um ambiente referencial que servirá aos leitores contemporâneos perceber que tipo de ligações culturais os autores procuram. Também no nível visual, a linha claríssima de Marcos Martín (e as cores de Muntsa Vicente) permite uma nítida legibilidade das cenas, mesmo as mais cheias, e as cenas de acção, ao mesmo tempo que tempera com referências a outras bandas desenhadas, a culturas várias, à moda contemporânea, etc. Uma espécie de jogo de Onde está o Wally? (como em Top Ten, de Moore e Ha) cultural que servirá para estender lateralmente o mundo de Private Eye.

Tudo está maus subsumido a um programa linear da narrativa do que a uma exploração multidimensional. Private Eye não descontrói todos os pressupostos da sociedade, mesmo que explore questões de alteridade: esta alteridade é já aquela que exercemos no nosso tempo e sociedade, há apenas um pequeno desvio ficcional. No que diz respeito à concentração na economia da distribuição de papéis (protagonista, antagonista, deuteragonista, etc.) e na estrutura aristotélica (unidade de tempo e espaço, episódios encadeados, clara resolução da intriga após clímax, promessa de desdobramento pelo suspense futuro, etc.), é nítida o seu lavrar enquanto convenção literária (daí a sua categorização como novela). Nada de problemático, aqui. Bem pelo contrário, são até factor de estabilização de certas categorias (narrativa, representação, individualidade, etc.) mesmo após o que poderia ser visto como uma crise de desmontagem delas mesmas.


A acção em si não tem contornos de grandes revoluções, tratando-se de uma intriga internacional e tecnológica que tem neste mundo toda a sua pertinência e sentido, mas não é muito mais do que uma tentativa de revitalizar fórmulas consabidas. Não se trata da grande premissa de Y: The Last Man ou Ex Machina, que também estavam mais interessadas nas relações humanas tecidas entre as personagens, no cadinho da ficção científica e de super-heróis. Acima de tudo, parece-nos sobretudo nessa forma de progressão e extensões de referências, textuais-visuais – e nas piscadelas de olho em tantas direcções, como os Marlboro de marijuana, que também recordam outra referência ao romance citado de Dick –, que Private Eye é um bom exemplo de ficção popular tirando total partido dos instrumentos de género para chegar a um “enquadramento imaginativo alternativo” ao dos nossos dias, ainda que com muitas dendrites. Que máscaras e segredos temos nós, final? 

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